A esquerda domina a academia e alimenta o pensamento geral de que o
Estado precisa tomar conta de tudo, afirma Helio Beltrão, criador do
Instituto Mises, em entrevista à revista Veja, que o qualifica como "a
cabeça da direita" - reduzindo o liberalismo a uma ideologia:
Embora não tenha um cargo no governo de Jair Bolsonaro, o engenheiro
Helio Beltrão formou e capacitou quadros hoje instalados em ministérios e
no Congresso Nacional por meio do Instituto Mises. Com nome que
homenageia o economista austríaco Ludwig von Mises (1881-1973), a
escola se dedica a dar cursos para disseminar os princípios da economia
liberal, cujos pilares fundamentais são a pregação do Estado mínimo, do
livre mercado e da propriedade privada. Ao lado do atual ministro Paulo
Guedes, Beltrão foi membro-fundador do Instituto Millenium, outro think
tank liberal. Filho de Hélio Beltrão (1916-1997), ministro da
Previdência Social e da Desburocratização durante o período do último
presidente da ditadura militar, João Figueiredo, ele se apresenta como
um “ultraliberal”. Para Beltrão, Bolsonaro é um “liberal emprestado, não
de verdade”, mas que “soube captar como ninguém a vontade da população
de se livrar dos pensamentos da esquerda”.
Como avalia o desejo — depois revisto — de Jair Bolsonaro de regular o preço do diesel?
Foi um grave erro. Não cabe ao acionista majoritário ou ao presidente
da República controlar a empresa. A verdade é que ele teve uma ação
instintiva por medo de perder sua alta popularidade. O erro custou caro.
Afinal a empresa perdeu 32 bilhões de reais de valor de mercado em um
único dia. Bolsonaro reviu a decisão e permitiu o aumento. Ele não pode
cometer equívocos desse tipo, se bem que houve um erro anterior.
Qual? A questão da reforma da Previdência. Não existe uma
vontade de formar uma coalizão junto ao Congresso. O que se vê é uma
articulação a distância, como se ele quisesse omitir-se na
responsabilidade que pertence ao presidente. Atuando dessa forma,
Bolsonaro põe em risco a reforma em si. O mercado sofreu com a tentativa
de taxar o diesel, mas o problema de percepção em relação ao governo
vem da desarticulação no capítulo da Previdência.
O presidente barrou o aumento do diesel para evitar briga com os caminhoneiros. Isso é um equívoco?
É um erro reagir às pressões da sociedade. Fica a sensação de que ganha
aquele que chora mais. O Poder Executivo federal não deve ficar refém
de um determinado grupo. Na verdade, o governo deveria remover os
obstáculos às exportações de caminhões usados. O excesso de caminhões
que rodam no Brasil torna o frete muito barato. A categoria também
sugeriu a possibilidade de o BNDES recomprar caminhões usados, o que não
faz sentido algum.
Além de interferir na questão do diesel, Bolsonaro se mostra
contrário à privatização do Banco do Brasil e da Caixa. Também é um
erro? Bolsonaro é um liberal emprestado. Mas está aprendendo a ter
simpatia pelas ideias. Vamos ver até onde isso vai. Paulo Guedes, sim, é
favorável à privatização dos bancos estatais. Uma leitura no mercado é
que o presidente trouxe Guedes para o seu time porque precisava dele
dentro da composição; outra é que acredita mesmo nos fundamentos do
liberalismo. Talvez a resposta certa esteja no meio do caminho. Os
freios do presidente são mais ligados à viabilidade política, não à
crença econômica. Embora liberal no discurso, Bolsonaro se mostra
nacionalista quando fala de China e Amazônia. Mas ao menos ele está
dando aval a Paulo Guedes.
O Instituto Mises formou, além de Eduardo Bolsonaro, quadros do
governo atual como Letícia Catelani, ligada ao chanceler Ernesto Araújo.
Como a sua escola se transformou no reduto da nova direita do Brasil?
Não foi por acaso. Em A Revolta de Atlas, livro da americana Ayn Rand,
publicado pela primeira vez em 1957, há um recrutamento secreto das
pessoas mais capacitadas. É um dos poucos livros em que o empresário é
herói, e não vilão. Inspirei-me nesse recrutamento imaginado por Ayn
Rand para reunir mentes inteligentes. Há mais de dez anos, existia no
Brasil um grupo no Orkut chamado Liberalismo, que contava com 3 000
participantes. Pensando num projeto de longo prazo, entrei naquela rede
social para descobrir quem eram os melhores entre os interessados no
tema. Quando lancei discussões sobre a economia nacional, o dono da
comunidade ficou irritado comigo. Então saí do grupo, mas criei outro,
chamado Liberalismo Verdadeiro. Os bons migraram para mim. Foi uma
ebulição. Os jovens de 16 anos queriam saber de economia e como ascender
na vida com o trabalho, mas sem esse ranço da esquerda. Decidi criar o
Instituto Mises em 2007 porque as faculdades de economia do Brasil, em
geral, são ruins e tomadas por ideologias.
Quais ideologias? Até pouco tempo atrás, a Universidade
Federal do Ceará tinha as disciplinas Marx 1 e Marx 2. As faculdades não
falam da teoria austríaca dos ciclos econômicos, ensinam apenas os
estudos de John Maynard Keynes, para quem tudo é questão de subdemanda.
Keynes fez suas linhas mestras em cima dos ciclos recessivos, tendo como
um dos principais remédios o investimento por parte do governo. O
Estado seria o fiador. A esquerda domina a academia e alimenta o
pensamento geral de que o Estado precisa tomar conta de tudo.
Qual o efeito disso? A mentalidade anticapitalista faz com que
os empresários virem vilões. Viceja certa teoria da exploração amparada
na luta de classes. A cada geração esse raciocínio torto muda de nome:
antes era rico contra pobre, depois veio o branco contra os não brancos,
agora é homem contra mulher. Sempre existe um que explora o oprimido.
Daí a teoria austríaca questiona: o empresário explora de fato? A pessoa
escolheu sair do campo, onde morreria de fome, pegou suas coisas de
modo voluntário e foi trabalhar na cidade. Se não foi obrigada, como
pode haver exploração? É uma bobagem, que precisa ser deixada de lado em
favor do livre mercado.
Qual a principal forma de defender o livre mercado? Apoiando o
Estado mínimo. O Estado não pode ter privilégios. Hoje, ele tem o
monopólio dos Correios. Tem o monopólio da exploração dos rios e do
subsolo. Mas onde o governo tem monopólio o país quebra a cara. Usando o
método de Mises, o Estado só deveria fazer aquilo que entregaria com a
eficiência da iniciativa privada.
Nesse contexto, qual deve ser o papel do BNDES? O BNDES
deveria acabar. Paulo Guedes sabe disso, porém há obstáculos políticos
para fechar as portas do BNDES. Mas ele já avisou: vai pedir a devolução
do dinheiro emprestado. E também não vai mais emprestar dinheiro do
Fundo de Amparo ao Trabalhador e do Tesouro.
Há hipocrisia entre os empresários “liberais” que recorrem aos empréstimos do BNDES? Não, é a regra do jogo. Se meu competidor pega juros baratos, tenho de defender os direitos dos acionistas e fazer o mesmo.
O presidente Bolsonaro, depois de muito vaivém, disse que o Brasil permanecerá no Acordo de Paris. É bom que permaneça?
Tenho problemas com esses acordos multilaterais. Na filosofia liberal, a
disputa funciona assim: você causou um dano, aquele que sofreu mostra o
nexo causal e busca seus direitos na Justiça. É muito complicado um
país já ser penalizado e taxado por algo que ele nem poluiu.
O senhor contesta o aquecimento global? Não, mas ele foi causado pelo homem?
Se sim, que se demonstre isso na Justiça. O mundo está se aquecendo nas
últimas duas décadas, sim. Mas aquece, esfria, aquece, esfria… Agora, o
aquecimento vai prejudicar mais do que beneficiar?
Qual é o benefício do aquecimento global? As áreas temperadas poderiam virar tropicais e ter mais capacidade agrícola.
Por outro lado, fauna e flora de localidades como Groenlândia, Alasca e Finlândia, por exemplo, poderiam ser extintas.
O que se sabe é que sempre houve mudança climática. O meu ponto é
simples: causou algum dano? Prove na Corte. Se o Acordo de Paris está
punindo agora, por meio de intervenção e impostos, algo que acontecerá
no futuro, sou contra. Quem se prejudica é o pobre, o que vale também
para essa história do canudo de plástico. Só querem permitir o uso da
versão biodegradável, muito mais cara. O pobre acaba sendo o maior
prejudicado.
O senhor apoia a exploração de minério na Amazônia? Não vejo
problema. A Amazônia não acaba nunca, quem vai para lá sabe disso. Mesmo
uma mina aberta trará um desenvolvimento enorme. Emprega pessoas,
desenvolve a região, requer a construção de estradas…
Abrir estrada em área nativa não é um problema? Não acredito
que o governo saiba cuidar de área pública. O que questiono não é a
preservação, mas sim o governo responsabilizando-se pelo espaço — não
vai funcionar nunca, tanto que há desmatamento. Devemos nos inspirar no
modelo do Chile, onde quem preserva, com regras claras, é a iniciativa
privada.
Como o senhor vê a influência de Olavo de Carvalho no governo?
Ele foi decisivo para combater as ideias erradas do esquerdismo
radical, mas tem sido negativo. Na medida em que sua influência vai na
linha da ruptura e da não compreensão do processo político, torna-se
perigosa. A visão dele e de seus seguidores radicais é que Bolsonaro tem
aliança com o povo, e que quem estiver atrapalhando essa visão
precisará ser tratorado — não importa que seja o Congresso. Eles tentam
suplantar as regras de uma República. Essa turma que se vê iluminada não
tem sabedoria, pois vai quebrar a cara por brigar com uma força mais
poderosa: o Congresso. Existe um viés conspiracionista, como se houvesse
um conjunto de pessoas escondidas atrás da cortina que planeja
maquiavelicamente a tomada socialista da Terra. Afirmar que as urnas
poderiam ser fraudadas nas eleições deriva dessas teorias que não têm
sentido. Também senti vergonha de quem disse que o Jean Wyllys deixou o
Brasil por ter articulado o atentado contra Bolsonaro.
Bolsonaro chegou a declarar, em seu discurso de posse, que o Brasil é socialista. É mesmo? Sim,
é o que mais há por aqui. Temos um pouco de mercado, você pode comprar e
vender, mas a definição tradicional de socialismo diz que quem tem mais
capacidade para produzir deve ajudar aquele com necessidade. Seria a
socialização dos bens e dos meios de produção. O antissocialismo seria
ter livres trocas, sendo elas voluntárias. Nessa métrica, não podemos
soltar um pum sem precisar de um alvará ou reconhecimento de firma.
Somos regulados desde o nascimento até a certidão de óbito. Há o imposto
progressivo. Quanto mais se ganha, maior a alíquota que se paga — isso é
socialismo. Você compra um carro na Flórida, e o imposto se dá pelo
peso do veículo, que impacta o solo. O IPVA no Brasil se dá pelo valor
do carro. Outro exemplo: o Brasil é o único país que conheço onde não há
express line em aeroporto.
O que seria express line? Quando está na classe executiva do
avião, você pega uma fila diferenciada nos aeroportos. Eu fui a Myanmar
esses tempos, e foi assim, como é em todo o mundo — exceto no Brasil. O
cara que paga mais tem uma fila diferente. Esse absurdo, a fila comum, é
um exemplo, sem dúvida, do socialismo no Brasil.
Publicado em VEJA de 1º de maio de 2019, edição nº 2632
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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