Em texto publicado na
Veja da próxima semana, o jurista Modesto Carvalhosa apresenta nove
motivos pelos quais o ministro do STF Gilmar Mendes "deve ser apenado
com a perda do cargo e a inabilitação para o exercício da função pública
por oito anos":
Em sessenta anos de
atividade jurídica, nunca presenciei tamanha influência do Supremo
Tribunal Federal na vida dos brasileiros, nunca vi seus julgamentos
despertar tanto interesse, quando não perplexidade ou mesmo indignação
nas ruas. Basta referir o recente pedido de habeas-corpus de Lula,
afinal negado, não sem a cerrada pressão popular, depois de uma sessão
precedida e permeada de lances próprios da série televisiva House of
Cards.
Há quem diga que essa
exposição é saudável, que a democracia periga menos se o povo souber de
cor o nome dos onze ministros e ignorar quais sejam os chefes
militares. Mas saber de cor não é necessariamente ter apreço ou
respeito. Às vezes, é bem o contrário. Desde o advento de sua TV
Justiça, e sobretudo a partir de quando julgou a ação penal do mensalão,
o STF só tem feito aparecer, com espaço crescente, em todo o
noticiário.
Se antes comentávamos
os torneios retóricos disputados no Parlamento por tribunos como Carlos
Lacerda, Afonso Arinos, Gustavo Capanema, Octavio Mangabeira, Flores da
Cunha, Pedro Aleixo, Paulo Brossard, Franco Montoro, hoje, empobrecido
como está o nível intelectual do Congresso, questões um pouco mais
sofisticadas transferiram-se para a Suprema Corte, onde,
lamentavelmente, nem sempre ganham o tratamento desejável, porque ao
exame jurídico se sobrepõe o critério político numa expressão inferior,
que o jejuno em ciência do direito, sem nenhuma dificuldade, percebe
como artimanha típica de velhas raposas, e não sinal de prudência e
devoção à Justiça.
É o caso da Segunda
Turma, sempre ela: como que para justificar todas as críticas que vem
recebendo, ela decidiu, com os indefectíveis votos de Gilmar Mendes,
Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, tirar do juiz Sergio Moro trechos
das declarações de executivos da Odebrecht que incriminam Lula. Que
ultraje! A isso é que se chama brincar com a segurança constitucional.
Bruscas mudanças
hermenêuticas, inopinados pedidos de vista, processos engavetados ad
kalendas graecas, prescrições a mancheias, longas viagens em classe
executiva, concorridas palestras, colóquios no estrangeiro,
descerramentos de estátuas, hermas e placas, homenagens, assessores,
garçons, copeiros, motoristas, cafezinhos, coquetéis, banquetes,
entrevistas a todos os órgãos de mídia e, é claro, a constante
reclamação de que a rotina é exaustiva e sobre-humana…
Ninguém pode negar
que isso tudo cansa. Pode cansar inclusive a democracia! Mas, antes que
esta venha a perecer, é preciso administrar-lhe os devidos remédios,
naturalmente os disponíveis no quadro constitucional, a exemplo do
impeachment. Assim, para os casos extremos de crime de responsabilidade,
todo cidadão, no exercício de seus direitos políticos, está legitimado a
denunciar ministro da corte suprema ao Senado Federal, casa a que
compete afastar o magistrado.
Foi o que fizemos
Luís Carlos Crema, Laercio Laurelli e eu em face de Gilmar Mendes, cuja
postura nos últimos tempos mostrou ser inevitável a providência que a
Lei Nº 1079 e a Constituição oferecem, qual seja, o pedido de
impeachment. Nossa petição tem quase uma centena de páginas e, como
diria Vieira, não pede pedindo, senão também protestando, argumentando e
provando que o ministro Gilmar Mendes seja apenado com a perda do cargo
e a inabilitação para o exercício de função pública por oito anos.
Motivos não faltam. Vejamos:
1. Gilmar telefonou
espontaneamente a Silval Barbosa, ex-governador de Mato Grosso, horas
antes preso em flagrante na Operação Ararath, hipotecando-lhe
solidariedade e prometendo interceder a seu favor junto ao ministro
Toffoli, que relatava o inquérito. Silval Barbosa é, nas palavras do
ministro Luiz Fux, o protagonista de uma delação monstruosa.
2. Gilmar votou
contra a prisão do secretário da Casa Civil e da Fazenda desse mesmo
ex-governador. Éder de Moraes Dias, segundo a Polícia Federal, foi o
principal operador do esquema de corrupção descoberto na Ararath.
3. Gilmar teve
inúmeros encontros privados com o presidente Michel Temer, fora da
agenda oficial, alegando velha amizade, e, ainda assim, com voto de
minerva no Tribunal Superior Eleitoral, absolveu a chapa Dilma-Temer de
abuso de poder político e econômico na última campanha, de maneira a
preservar o mandato do amigo. Nesse processo, a ex-mulher de Gilmar,
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug, emitiu parecer favorável a Temer, que
depois viria a nomeá-la conselheira da Itaipu Binacional, sem contar que
o presidente ainda tornou um primo de Gilmar, Francisval Dias Mendes,
diretor da Agência Nacional de Transportes Aquaviários.
4. Gilmar, agindo
como verdadeiro soldado do PSDB, a despeito de ser o relator de quatro
entre nove inquéritos contra Aécio Neves, aceitou o pedido deste para
convencer o senador Flexa Ribeiro a seguir determinada orientação no
tocante a projeto de lei de abuso de autoridade.
5. Gilmar,
desprezando o fato de que sua atual mulher trabalha no escritório que
defendia os interesses do notório Eike Batista, mandou libertá-lo da
prisão.
6. Gilmar, por três
vezes, livrou do cárcere Jacob Barata Filho, milionário do setor de
transportes do Rio de Janeiro, cuja filha se casou com o sobrinho de
Guiomar Mendes, mulher do ministro. Mais: Francisco Feitosa, irmão de
Guiomar, é sócio de Barata.
7. Gilmar mandou
soltar o ex-presidente da Federação das Empresas de Transporte de
Passageiros do Rio Lélis Marcos Teixeira, cliente, como Barata, do
escritório de advocacia integrado pela esposa do ministro.
8. Gilmar votou no
processo de anulação da delação premiada dos proprietários do grupo
J&F, a despeito de a JBS haver patrocinado com 2,1 milhões de reais
eventos do Instituto de Direito Público (IDP), empresa da qual o
ministro é sócio.
9. Gilmar determinou a
soltura do ex-presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso José
Riva, conhecido como “o rei da ficha suja no Brasil”, que foi defendido
por Rodrigo Mudrovitsch, não só professor do IDP mas também advogado do
ministro em outra causa.
Nos episódios
expostos, Gilmar julgou e, pior, beneficiou quem não poderia julgar,
quando era ao menos manifestamente suspeito. Gilmar, sem nenhum pejo,
exerceu atividade político-partidária. Gilmar, enfim, procedeu de modo
incompatível com a honra, a dignidade e o decoro de suas funções. Da
conduta do ministro resultaram violados dispositivos da Constituição, do
Código de Processo Penal, do Código de Processo Civil, do Código
Eleitoral, da Lei Orgânica e do Código de Ética da Magistratura Nacional
e dos Regimentos Internos e Códigos de Ética dos Servidores do STF e do
TSE.
Em síntese, Gilmar
descumpriu seus deveres de neutralidade, independência e imparcialidade,
isto é, cometeu os crimes de responsabilidade descritos nos incisos 2, 3
e 5 do artigo 39 da Lei Nº 1 079/50, razão por que deve perder o cargo
e, por oito anos, ficar inabilitado para o exercício de função pública.
O Supremo Tribunal
Federal é uma das mais sagradas instituições do regime democrático. Por
isso mesmo, às necessárias garantias de que é cercado deve corresponder
por parte de todos os seus ministros o perfeito domínio da arte do bom e
do justo.
* Modesto Carvalhosa é jurista e professor aposentado de direito da Universidade de São Paulo (USP)
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2018, edição nº 2580
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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