Quando e se as coisas não se resolvem rapidamente, como está a acontecer, a Rússia pretende, no mínimo, congelar o conflito (“sim à paz”), situação que lhe permitiria normalizar factos consumados. José António Rodrigues do Carmo para o Observador:
Em
13 de Agosto, na CNN, o general Carlos Branco desvalorizava, como é
hábito, os avanços ucranianos, e dizia que é a hora da mesa de
negociações. En passant sugeria que o Ocidente não tinha mais meios para
ajudar a Ucrânia.
No
mesmo dia, na mesma estação, o general Agostinho Costa falava da
corrupção endémica na Ucrânia, do sistema “em colapso” e, sintetizando,
tentava passar, como vem fazendo há quase dois anos, a mesma ideia de
uma Ucrânia em fim de ciclo e condenada à derrota.
Por cá, o PCP lança sistemáticas campanhas pelo “Sim à paz”.
Nestes
dias e semanas, esta ideia é também recorrente na propaganda russa
virada ao Ocidente, e as declarações de uma plêiade de dirigentes, a
começar no próprio Putin, apontam todas no mesmo sentido: a Ucrânia está
a colapsar, a Rússia oferece a “paz” e o Ocidente está a atiçar o
“conflito”, fornecendo material de guerra à Ucrânia.
Que
a propaganda resulta, mede-se pelo modo como toda uma horda, desde o
Papa a Lula da Silva, passando por várias criaturas que quotidianamente
nos assolam em certas televisões, repetem a mesma “sabedoria”
panfletista.
O que se pretende com esta campanha?
Para perceber a lógica russa e dos seus propagandistas, é preciso ir um pouco atrás:
A
implosão da URSS foi traumática para Putin, que, em Dresden, viu o seu
mundo desabar, enquanto agente do KGB habituado, como muitos outros
membros da nomenklatura russa, a pensar a URSS como potência de primeira
grandeza, com um destino manifesto.
Nesses
anos de desespero, várias nações e povos quebraram os laços com a
Rússia, as instituições desmoronaram-se e as próprias Forças Armadas
entraram num plano inclinado de desmoralização, corrupção,
desinvestimento e degradação!
A
sua falta de operacionalidade ficou à vista na desastrosa primeira
guerra da Chechénia, que obrigou a Rússia a aceitar momentaneamente a
derrota, só readquirindo o controlo do território na viragem do milénio,
numa campanha sangrenta sem regras e sem limites.
Por
essa altura no Iraque, em 1991 e 2003, forças tecnologicamente
avançadas, lideradas pelos EUA, esmagaram em pouco tempo e com perdas
negligíveis, enormes exércitos iraquianos, organizados segundo a
doutrina soviética.
Os
campos de batalha mostravam aos russos que algo de muito importante
tinha mudado na arte da guerra e obrigaram as suas lideranças políticas e
militares a uma dura introspecção.
Vladimir
Putin tinha chegado ao poder, propondo-se restaurar a grandeza russa e
ultrapassar/reverter os humilhantes resultados da desintegração da URSS.
Afinar o instrumento militar era essencial para pôr ordem no interior,
controlar os países limítrofes que tinham feito parte da URSS, olhar
para o “Mundo Russo” e, quiçá, visar outros horizontes.
Que horizontes?
Na velha dicotomia entre Thalassocracias (potências marítimas) e Epirocracias (potências terrestres), Mackinder escreveu:
“– Quem dominar a Europa Oriental domina o Heartland;
– Quem dominar o Heartland domina a Ilha Mundo;
– Quem dominar a Ilha Mundo domina o Mundo.”
Alexander
Dugin, mistura de Rasputin e Cardeal Richelieu, oriundo do ex-Partido
Bolchevista, um dos homens que mais profundamente moldou o pensamento de
Putin, é um estudioso da geopolítica, da qual tem uma visão assaz
determinista. Para ele o território da Rússia, da URSS e do Império
Russo é o “Heartland”, da Eurásia, o poder geopoliticamente dominante da
“Ilha Mundo”, vasto território contínuo que engloba a Europa, a Ásia e a
África. É claro que esta visão ignora as realidades da China e da
Índia, mas isso são outras histórias.
Para
Dugin, a Rússia tem o direito natural de procurar o controlo desse
imenso espaço, e, sendo a óbvia adversária das potências marítimas,
necessita das alavancas só ao alcance de um poder central e autoritário.
A
parte etnonacionalista do pensamento de Dugin busca raízes nas ideias
do obscuro filósofo fascista Ivan Ilyin, tão admirado por Putin, que ele
mesmo tratou da trasladação dos seus restos mortais para Moscovo. O
revelador artigo de Putin “On the Historical Unity of Russians and
Ukrainians”, escrito em 2021, assenta nas ideias imperiais e
geopolíticas de Dugin e Ilyin.
É
esta cosmovisão de Putin o real motor desta guerra, não o “cerco” da
Rússia, nem a “desnazificação”, nem a expansão da NATO, como pretende a
propaganda do Kremlin, ecoada pelos seus admiradores e serventuários,
como os generais do nosso Exército já aqui analisados.
Para
além da geopolítica, muitos russos parecem sentir, por via da
propaganda e do condicionamento cultural, não só uma forte hubris
imperial, mas também um compromisso emocional com o “Mundo Russo”, vago
espaço civilizacional definido pela geografia, língua, cultura,
história, religião e etnicidade.
Há
dias, Nicolay Vavilov, um conhecido propagandista russo, dizia, no show
televisivo de Olga Skabeyeva (a “Boneca de Ferro de Putin”), que
“Berlin, Dresden, Praga, Ljubljana, Paris, serão nossos”, “é assim que
as coisas são”, “a Rússia é o maior país do mundo”.
Putin tinha pois uma visão, objectivos, poder, narrativa, mas não a ferramenta militar adequada.
Precisava também de uma estratégia.
Em termos teóricos, a que foi decantada é simples de entender:
Perante
um caso concreto, subverter, preparar, amaciar e utilizar as forças
convencionais para levar a cabo um ataque poderoso e súbito. Criar um
facto consumado. Perante a ameaça de uma intervenção convencional,
escalar para desescalar, e negociar a partir daí, em posição de força.
Nesta
estratégia de escalar para desescalar, a aposta massiva nas munições
nucleares tácticas tem uma lógica própria. Destinam-se a neutralizar as
forças da NATO que poderão vir em reforço (concentrações de unidades,
porta-aviões, etc.), sem atacar território americano, no pressuposto de
que seria irracional para um presidente americano arriscar uma guerra
termonuclear, como retaliação a um ataque nuclear limitado.
Isto
porque, no Ocidente, as armas nucleares são vistas apenas como
dissuasoras, ao passo que a Rússia as encara também como usáveis numa
guerra limitada, quer seja efectivamente, quer para fazer a gesticulação
ameaçadora que acompanha o lançamento do ataque convencional ou as suas
posteriores fases.
Em
Fevereiro de 2013, um ano e meio antes de os “pequenos homens verdes”
terem ocupado a Crimeia, o general russo Valery Gerasimov, então CEME,
publicou um artigo no “Military Industrial Courier” que resume o que se
convencionou chamar a “doutrina Gerasimov”, admirada por alguns generais
russófilos do nosso exército e que, grosso modo, antecipou os
movimentos da Rússia na Ucrânia, em 2014 e 2021.
Não
sendo uma verdadeira doutrina, e descrevendo o modo como o EM russo
interpretou os métodos ocidentais de fazer a guerra, é, todavia, o nosso
melhor insight para o actual pensamento militar russo.
Para
Gerasimov, as revoluções coloridas na Europa, a Primavera Árabe e as
operações militares no Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria ilustraram uma
nova forma de alcançar objectivos político-militares, que passa
essencialmente pelo uso de meios não militares e métodos indirectos,
prévios ao conflito. Este não é declarado, começa simplesmente com
forças já desenvolvidas, eventualmente em exercícios, combinando medidas
não militares e militares, para subjugar o adversário antes de combater
ou, se o combate se tornar inevitável, assegurar rapidamente os
objetivos e depois desescalar enquanto se negoceia.
Esta
ênfase no pre-conflict shaping, a necessidade de permanecer “invisível”
o mais tempo possível, a rápida captura dos objectivos uma vez revelada
a força, e depois a rápida desescalada e negociação a partir de uma
posição de força, é o novo modus faciendi russo, testado em jogos de
guerra, nos sucessivos exercícios Zapad, e em 2008 na invasão da
Geórgia.
O
combate em si mesmo já não se resume à destruição de pessoal e
material, captura de posições inimigas e território, etc., mas procura
essencialmente a rápida destruição de infraestruturas críticas civis e
militares, de forma a reduzir o potencial militar e económico do
inimigo.
As
operações decorrem simultaneamente em todos os ambientes, físico,
virtual, informacional, etc., para levar o inimigo a acreditar que não
tem qualquer hipótese de prevalecer.
Isto,
já há muito a ser feito pelos americanos, era, do ponto de vista de
Gerasimov, o caminho que a Rússia teria de seguir para alcançar os seus
objectivos.
A
grande diferença é que, enquanto o Ocidente encara o uso de medidas não
militares como uma forma de evitar a guerra, a Rússia considera-as
doravante como uma parte da guerra.
Esta
estratégia, gerida com maestria e intencionalidade por Putin, conferiu à
Rússia, apesar de não ter as melhores cartas, a possibilidade de
retornar, nos últimos anos, a uma certa proeminência nas relações de
poder.
Quando
e se as coisas não se resolvem rapidamente, como está a acontecer na
Ucrânia, a Rússia pretende, no mínimo, congelar o conflito (“sim à
paz”), situação que lhe permitiria normalizar factos consumados e ganhar
tempo, prolongando a confrontação em vez de a tentar ganhar. Esta “paz”
passa normalmente por um cessar-fogo sem condições e infindáveis
negociações. Foi o que aconteceu na Geórgia e na primeira invasão da
Ucrânia. É também o que está a tentar fazer agora.
Quanto à Ucrânia, no fim de 2021, tudo estava pronto:
A
gesticulação nuclear para dissuadir qualquer intervenção convencional
da NATO, um núcleo renovado de forças convencionais já desenvolvidas nas
fronteiras da Ucrânia, em “exercícios” (Zapad 21), extensivo uso de
hackers, relações com crime organizado, manipulação da imigração,
propaganda, manipulação mediática, alianças com “idiotas úteis”,
controlo de líderes partidários e comentadores ocidentais, redes de
informação, assassínios, sabotagens, mentiras deliberadas, versões
imaginativas dos factos, falta de compromisso com a realidade objectiva,
mensagens inconsistentes, enfim, o menu completo da “guerra híbrida”.
A
amalgamar tudo isto, a capacidade de cavalgar o fio da navalha,
permanecendo no limiar do horizonte de detectabilidade, e na zona de
negação plausível, de modo a inibir qualquer preparação ou acção militar
preventiva.
Quando
o ataque russo começou, precedido de recorrentes negações de que tal ia
acontecer, a ideia era obter a claudicação rápida do governo ucraniano,
a instalação de um poder fantoche em Kiev e a expedita anexação de
territórios que lhe interessavam.
No papel parecia plausível, mas Putin sobrestimou a sua mão e subestimou o adversário.
A
operação não foi rápida, a Rússia deixou-se atolar numa guerra de
dimensões inesperadas, mas continua a tentar fazer, mesmo neste cenário
de pesadelo, aquilo que a sua estratégia determina: consolidar os factos
consumados (o terreno ucraniano que ocupa), congelar o conflito (é por
isso que as suas antenas no Ocidente, como o PCP ou os generais
pró-russos, pedem a “paz” e a “mesa das negociações”) e negociar a
partir dessa situação vantajosa.
A
verdade é que, se a Rússia conseguir estes objectivos, a sua estratégia
permanecerá intocável e vencedora, e é inevitável que volte a
utilizá-la na consecução da grandiosa visão geopolítica de Putin, o que
seria desastroso para o espaço civilizacional a que pertencemos.
Se
a estratégia falhar, a Rússia terá de retrair, ver-se-á cada vez mais
confinada ao seu espaço de soberania, com menos influência cultural, sem
dimensão demográfica para escapar ao vórtice gravitacional da perda de
poder, rodeada por espaços tecnologicamente mais desenvolvidos, mais
populosos e mais poderosos.
Uma
vez perdida, por eventual transição energética, a caixa registadora que
garante dólares e euros, a Rússia, ou muda por dentro, ou tenderá a ser
um gigantesco estado pária, de quem todos desconfiam, à imagem da
Coreia do Norte, protegido por detrás das suas armas nucleares e
fazendo, de vez em quando, notar a sua existência, pela mero lançamento
de mísseis, ou anúncio de uma nova arma invencível.
Como
é evidente, é do nosso máximo interesse que a estratégia russa falhe e,
para que isso aconteça, há que jogar a cartada mais lógica: apetrechar
atempadamente a Ucrânia com o que necessita para expulsar a Rússia dos
territórios que ocupa. Só isso refutará a sua estratégia, só isso a fará
desistir dos seus sonhos imperiais, só isso manterá a Ucrânia e os seus
vastos recursos fora do alcance da nomenklatura russa e, por
conseguinte, só isso assegurará a paz na Europa!
Neste momento, o que se passa na Ucrânia, mais do que uma guerra de atricção, é uma luta de vontades.
O problema é que Putin ainda acredita que a dele é mais forte que a dos ucranianos ou a do Ocidente.

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