Favoritos à reeleição aproveitam-se de erros crassos dos constituintes de 1988 e da ditadura dos partidos. José Nêumanne para o Estadão:
Se
as pesquisas de opinião estiverem fazendo previsões minimamente
razoáveis, é muito provável que a disputa pela Presidência da República
levará ao segundo turno a inevitável reeleição do petista Lula da Silva,
condenado por corrupção nas instâncias iniciais do Judiciário, ou de
seu inimigo preferencial, o capitão-terrorista Jair Bolsonaro. Ambos são
caudatários da crença fanática de seguidores e da composição
conveniente dos tribunais superiores, que jogaram no lixo inúmeras
evidências da existência de uma prática sistêmica da corrupção das
gestões sob comando de um partido soit-disant de trabalhadores. E de
prosélitos que desconhecem o sentido dicionarizado da palavra mito
(mentira) e não dão a mínima para promessas de campanha nunca realizadas
pelo outro, como, por exemplo, o fim da reeleição.
Essa
autêntica praga da frágil democracia praticada no Brasil, a bem da
verdade, não decorre da enxundiosa e defeituosa Carta Magna vigente. Mas
da primeira das muitas emendas que lhe foram impostas para atender a
conveniências das duas organizações partidárias que tomaram as decisões
importantes dos últimos anos: a negação do princípio democrático do
rodízio no governo, tão importante quanto os pleitos que escolhem os
mandatários, a duração dos mandatos e a autonomia harmônica dos Poderes
da República. A versão bananeira do mandato executivo de oito anos com
um recall no meio, praticada nos Estados Unidos desde a fundação, tem
característica injustificável de perene permanência no poder: lá o chefe
do governo se mantém no poder uma vez e, depois, se recolhe à
necessária aposentadoria. Cá, um chefão partidário pode se reeleger
permanentemente com um quadriênio de intervalo. Daí a eventualidade de
reeleição inexorável no segundo turno da próxima eleição.
Neste
oposto do “país das maravilhas”, visitado na ficção por Alice,
personagem do britânico Lewis Carroll, criou-se a figura, indesejável e
extintora da igualdade de oportunidades propiciada pelos pais fundadores
ianques, do presidente perpétuo. O erro, cometido para atender ao
interesse especial de um grupo no poder no segundo mandato
pós-Constituição de 1988, condenará a Pátria espoliada ao eterno
empobrecimento pela corrupção consensual, vil e demolidora, que fará
desfilar nos palanques de festas cívicas figuras execráveis de figurões
de uma elite bilionária e insensível. Elas se apropriam de forma
criminosa até de conceitos nobres, como a liberdade individual e de
conquistas societárias, denominadas de sociais, na apropriação até do
sentido das palavras, como no domínio do Grande Irmão de George Orwell,
em 1984.
O
ano começa sob o signo duplamente absurdo de um comandante perpétuo,
que afasta e, depois, volta a entronizar o sócio, apontado como
adversário. O PT, que pareceu se extinguir nas últimas eleições,
ressuscita pelas mãos do vitorioso do pleito federal de 2018, que, por
sua vez, se mantém no palanque e na perspectiva da subida da rampa do
palácio pela necessidade do falso oposto. Como nos espetáculos de humor
macabro, um é a escada do outro, que, no capítulo seguinte da farsa
dolorosa, assumirá o trono subindo nos ombros que agora o sustentam.
O
resultado é desastroso, trágico como a vingança de Medeia contra Jasão.
A polarização forçada, que gera a alternância dos opostos, produz o
empobrecimento democrático (permita o trocadilho irônico e infame) de
toda a Nação, que paga caro demais o preço da ilusão. O sonho de
Bolsonaro e Lula é um mandato futuro, sabe-se lá em qual ano, ou em que
decênio, quiçá em que século, se considerarmos que ambos têm herdeiros,
alcançar o absolutismo, encarnado pela Rainha de Copas, de Alice, que
mandava decepar a cabeça de quem a contrariasse.
A
colheita nefasta dessa permanência vai deixando ruínas por onde passa:
os prejuízos da Petrobrás, o desmantelamento da instrução pública, a
negação do excelente serviço de saúde estatal, o desemprego crônico em
níveis insuportáveis, a falência do Estado e das empresas, a miséria do
povo e o empobrecimento da classe média são a falência visível deste
anti-Alice no país dos absurdos. O recuo no combate à corrupção, a
negação a tradições que se consolidavam, como os esquemas de imunização
do SUS, abatidos pela crença tétrica do bolsonarismo mortal, a
devastação descarada do meio ambiente, o recrudescimento da violência
urbana e rural e outros efeitos diretos do abandono do estatuto do
desarmamento são flagrantes ocultos na propaganda de charlatães e
homicidas militantes.
O
Brasil, depois de submetido à dicotomia da corrupção partidária e
ideológica e à demolição negocista miliciana, só sairá dessa profecia,
que nem Cassandra ousaria apregoar, se aproveitar mais esta chance de
evitar a marcha da desabalada correria de um rebanho tresmalhado de
cordeiros rumo ao pélago final. Será um desperdício irreparável adiá-la
por mais um quadriênio. Pode não ser o caso de gritar agora ou nunca,
pois nações não se extinguem, mas os exemplos de Argentina, Venezuela e
Haiti não devem ser desprezados. Quando a doença se manifesta, não é
possível prevenir, há que remediar. E já.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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