Mutações virais são dados da natureza. O que impressiona é a negligência, a despeito do conhecimento já produzido sobre o coronavírus e da dor que o patógeno já causou. Editorial do Estadão:
À
vista de todos que se dispõem a enxergá-los, os fatos acabam com as
ilusões de quem acredita que a pandemia de covid-19 é uma tragédia
superada. O mundo está diante da ameaça de uma nova onda de infecções
pelo coronavírus e é extremamente importante que cada indivíduo mantenha
o máximo de cuidado a fim de evitar o pior. A esta altura, todos sabem o
que deve ser feito.
Há
poucos dias, cientistas identificaram na África do Sul uma variante do
Sars-Cov-2, chamada B.1.1.529, que pode ser mais transmissível do que as
cepas já identificadas e até mesmo resistente às vacinas disponíveis no
momento. A Pfizer já iniciou testes de eficácia de seu imunizante
contra a nova variante. Outros laboratórios devem seguir o mesmo
caminho. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que “levará
semanas” até que os riscos da B.1.1.529 sejam plenamente conhecidos.
Em
primeiro lugar, o surgimento de uma nova e ameaçadora variante do
coronavírus não deve surpreender ninguém. Mutações virais são dados da
natureza. O que impressiona, portanto, não é a biologia, mas a
incompreensão humana e a reiterada negligência, a despeito de todo o
conhecimento já produzido sobre o vírus e, principalmente, de toda a dor
que o patógeno já causou.
Por
definição, uma pandemia desconhece fronteiras geográficas. Seu fim
depende fundamentalmente da soma de esforços entre países. A brutal
desigualdade na distribuição de vacinas abriu flancos para que o
coronavírus seguisse circulando livremente entre populações de países
mais pobres, menos imunizadas. A isso se soma o individualismo de muitos
cidadãos que têm fácil acesso às vacinas em países ricos ou de renda
média, mas que simplesmente se recusam a recebê-las por uma série de
razões, quase todas egoístas. Combinados, esses dois fatores facilitam
muito o ciclo natural do coronavírus.
Mas
a realidade se impõe. Fruto da iniquidade na distribuição de vacinas ou
da irresponsabilidade dos que podem, mas não querem recebê-las, o mundo
agora tem de lidar com a nova ameaça. Mercados globais entraram no
“modo pânico” diante da incerteza do que vem pela frente. Novos
fechamentos serão determinados por governos mundo afora? Haverá mais
pressão sobre os sistemas de saúde, mal saídos do maior teste de
estresse da história recente? Ninguém sabe.
Esse
quadro de incerteza global provocado pela nova variante do coronavírus
deveria levar o governo federal a adotar medidas de precaução para
proteger a saúde e a vida dos brasileiros. Para isso, no entanto, o
presidente Jair Bolsonaro precisaria ser outra pessoa, alguém mais cioso
de suas responsabilidades como chefe de Estado e de governo, e não este
homem desprovido de quaisquer atributos técnicos e morais para estar no
cargo que ocupa. A apoiadores na entrada do Palácio da Alvorada,
Bolsonaro se limitou a dizer que os brasileiros “têm de aprender a
conviver com o vírus”.
A
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) cumpriu o seu papel e
recomendou o fechamento imediato das fronteiras brasileiras para
viajantes não vacinados e para qualquer pessoa que chegue da África do
Sul e mais cinco países do continente africano. O governo federal é
contra a medida, sabe-se lá por que razões. Científicas não são.
Contrário
à exigência de certificado de vacinação para estrangeiros que vêm ao
Brasil, na trilha do negacionismo de seu chefe, o ministro da Justiça,
Anderson Torres, chegou a afirmar que “vacinas não impedem a transmissão
da doença”. Do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, não se ouviu nem um
pio. É esse o grau de pusilanimidade e subserviência de dois dos mais
importantes ministros de um governo que fez do descaso uma política
pública.
A
diretora-geral assistente da OMS, Mariângela Simão, afirmou que “o
mundo vive o começo de uma quarta onda de covid-19”. O País foi citado
no alerta. “São preocupantes as discussões sobre a abertura do carnaval
no Brasil, condição extremamente propícia para o aumento da transmissão
comunitária do vírus”, disse a diretora da OMS.
Do
governo Bolsonaro não se espera nada. Só a responsabilidade dos
cidadãos e dos governos subnacionais pode evitar que o Brasil
experimente os horrores de um recrudescimento da pandemia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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