O mundo woke tem o poder de causar dano, afetar a imagem de marcas e pessoas. Por isso a ordem, dita à boca pequena: tomem cuidado. Fernando Schüler para a revista Veja:
William
Kelley era um jovem escritor, 24 anos, quando publicou, no início dos
anos 60, um ensaio, If you’re woke, you dig it, no The New York Times. O
artigo é usualmente visto como ponto de partida do uso da palavra woke
no vocabulário político e cultural americano. O artigo de Kelley não
tinha um sentido militante. Ele simplesmente viu uma frase escrita no
linguajar típico da cultura negra de Nova York, no metrô, e se
surpreendeu que ela fosse rotulada como “linguagem beatnik”. Daí seu
convite, na verdade bastante amistoso, para que as pessoas ficassem
ligadas. E o secreto orgulho: “O negro americano sabe que pode criar a
linguagem mais excitante do inglês atual”
O
termo woke explodiu com o Black Lives Matter, após o assassinato de
Trayvon Martin, em 2012, e Michael Brown, em Ferguson, dois anos depois,
e na onda de protestos que se seguiram. “Stay woke” virou hashtag,
título de filmes e livros sobre o movimento. Sua ideia central: é
preciso estar alerta. Há algo muito errado se passando com a violência
policial, com a insensibilidade humana, com velhos preconceitos. Ninguém
que preste atenção àquelas imagens da morte de George Floyd discordaria
disso.
Há
outro caminho que dá conta da ascensão da cultura woke. É uma história
um pouco mais longa e nos remete ao período posterior à queda do muro de
Berlim, o fim da Guerra Fria e a vitória da globalização econômica. A
pregação socialista se tornou um exercício vazio e o velho mundo da luta
social organizada em torno dos sindicatos se tornou obsoleto. A
economia do conhecimento e a expansão das classes médias colocaram no
centro da pauta política o que Francis Fukuyama chamou de “valores
pós-materiais”. Gradativamente, saiu de cena o líder sindical, o
dirigente social-democrata, com sua agenda pragmática de melhoria
econômica, e entrou em cena o ativista de classe média, em geral
vinculado ao mundo universitário. A velha retórica da luta de classes
saiu de moda e ingressaram no palco os temas de gênero, raça e
orientação sexual. E a questão ambiental. Velhos sindicalistas tornam-se
peças de museu, enquanto Greta Thunberg mobiliza multidões, cruzando o
oceano em um veleiro e passando pitos nos adultos da sala, em infinitas
conferências sobre o clima.
Muito
já se escreveu sobre isso. Mark Lilla chamou a atenção para a
fragmentação que o fenômeno de “identitarização” das lutas sociais vem
produzindo sobre o mundo progressista. A velha esquerda se sente
incomodada, mas não tem lá muita alternativa. Tempos atrás assisti a um
velho militante reclamar que enquanto “todos se preocupam com banheiros
trans”, a miséria corre solta e os temas do mundo do trabalho (a menos
que mexam com alguma “identidade”) simplesmente não mobilizam mais
ninguém.
Interessante
é observar a atual mutação na qual as empresas e a publicidade, o mundo
da arte e do jornalismo se ajustam rapidamente aos trejeitos do
ativismo woke. Sua popularização, diz a jornalista Beth Daley, fez com
que uma ideia vital passasse a ser “cinicamente aplicada a qualquer
coisa, de refrigerantes a lâminas de barbear”. As empresas criam áreas
de ESG (Environmental, Social and Governance), onde cabe qualquer coisa
“do bem”; implantam “comitês de diversidade”, para ditar a adequada
composição identitária em eventos e contratações; fazem marketing
contratando ativistas para vender artigos de luxo, e por aí vai.
Será
uma atitude cínica? Não creio. É apenas o mercado. A revista The
Economist observou como a ocupação crescente do mercado de trabalho por
parte da geração woke, formada na última década ou um pouco mais, vem
afetando as empresas. Mas a verdade é que as organizações simplesmente
respondem a uma demanda dos consumidores. No Brasil, 79% deles se
declaram simpáticos ao “posicionamento político e social” das marcas. E
mais: os ativistas são barulhentos e formam grupos de pressão no mundo
digital. As empresas têm medo. Assim como muita gente no jornalismo, nas
universidades, nas organizações civis. O mundo woke tem o poder de
causar dano, afetar a imagem de marcas e pessoas. Os ativistas sabem
disso, o mercado também. Por isso a ordem, dita à boca pequena: tomem
cuidado.
Há
ainda uma dimensão mais ampla desse fenômeno: a cultura woke como parte
do ethos contemporâneo. Algo na linha do que li em um dicionário, por
estes dias: ser woke é “agir de modo pretensioso, mostrando quanto você
se preocupa com algum tema social”. A conotação, nessa nova mutação, é
negativa. Lembra o dito melancólico de Umberto Eco, em seus últimos
dias: os idiotas da aldeia ganharam, com a internet, ares de “sábios
universais”. A tese diz o seguinte: sempre tivemos o hábito de meter a
colher na vida dos outros. A diferença é que antes fazíamos isso em
reuniões de família ou em um pub, depois de algumas cervejas. Hoje
ganhamos poder, só não mudamos a nossa cabeça. Entre uma e outra série
da Netflix, pedimos que alguém seja demitido do jornal, que um blogueiro
seja preso, atacamos o touro dourado da Bovespa, pregamos um boicote a
este ou àquele produto, talvez porque o dono da empresa ande do lado
político que eu não gosto.
Dispondo
de poder, as pessoas passam a agir como pequenos políticos. É natural
que façam isso. A “sinalização de virtude” é apenas uma estratégia de
marca pessoal. Na bem-humorada definição do escritor negro Damon Young,
você é woke “se recicla seu lixo”, ou se “retuíta alguma coisa sobre as
virtudes da reciclagem”. No fundo, é tudo muito barato. Você sequer
precisa frequentar o SUS. Apenas escrever “viva o SUS” na sua timeline.
O
pulo do gato é separar o joio do trigo. Saber o que são demandas de
justiça e o que não passa de raiva e espuma, na guerra política. O que é
a luta por direitos e o que não passa de sua caricatura. Só dispomos do
bom senso para fazer essa distinção. Lembro de Barack Obama em um
debate. O mundo é “complicado e cheio de ambiguidades”. E julgar os
outros, no Twitter, pode ser divertido e “fazer você se sentir bem, mas
não é algo sobre mudar as coisas de verdade”.
O
que talvez precisemos é de um duplo woke. Pessoas antenadas para a
injustiça social, mas com um espelho de bom tamanho à frente. Olhos bem
abertos para os defeitos do mundo, que não são poucos, e igualmente para
seus próprios defeitos. Daí, quem sabe, menos dispostas a meter o dedo
na cara dos outros, e mais a dialogar e persuadir, como é próprio das
boas democracias.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 1 de dezembro de 2021, edição nº 2766
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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