O país vive uma espécie de transe bolsonariano. Contra e a favor. Fernando Schüler para a revista Veja:
Para
quem acompanha política brasileira há algum tempo, não é difícil
perceber que alguma coisa estranha vem acontecendo. Basta uma passada
pelos jornais da semana. Em uma matéria, leio que instituições “estão em
colapso” e que o Exército virou uma “milícia”, ao não punir o general
Pazuello. Em outra, a Karol Conká reclama que a raiva contra ela
“deveria ter ido contra o Bolsonaro”. Nos debates da Copa América, leio
conclamações para que os jogadores “entrem para a história”,
desobedecendo a convocação, no melhor estilo Mel Gibson discursando
naquela batalha contra os ingleses, em Coração Valente.
O
país vive uma espécie de transe bolsonariano. Contra e a favor. Alguns
diriam que não há novidade. Que nossa relação obsessiva com presidentes
vem de longe. Além do lulismo onipresente, tivemos o Fora Collor, Fora
FHC, Fora Dilma e mais recentemente o impagável “Primeiramente, fora
Temer”. Verdade. Mas nada que se compare ao que vivemos nestes últimos
tempos.
O
antibolsonarismo obsessivo fez da linguagem hiperbólica um estilo
nacional. Estamos sempre a um passo do “abismo”, como li, dias atrás, na
mesma página em que se noticiava a retomada econômica e a chance de o
PIB crescer acima dos 5% no ano. Na lógica do transe político, um dado
da realidade que “desencaixe” da retórica soa como um (imperdoável) ato
de traição.
O
mesmo raciocínio funciona para o outro lado. A retórica do líder
providencial contra o “sistema” e que só não faz mais porque “não deixam
o capitão trabalhar”. O ódio e a paixão política são primos em primeiro
grau. Seu traço comum é a suspensão do juízo crítico. De um lado, a
denúncia permanente de tudo o que sai do governo; de outro, seu elogio
incondicional. O detalhe é que o juízo crítico é exatamente o que se
espera dos cidadãos em uma democracia. Ou não?
Dias
atrás testei essas coisas com um apoiador fervoroso do atual
presidente. Fiz algumas perguntas. Alguém impediu o governo de ter
alguma política educacional? Ou uma política consistente, na área
internacional, podendo ter cumprido, desde o início, a promessa de uma
diplomacia “não ideológica”? A lista vai longe. A questão relevante é
sobre o tipo de debate político que se criou no país. Bolsonaro
inaugurou no campo da direita uma lógica de passionalidade que só se via
do outro lado do espectro político, desde a transição. A retórica
salvacionista e “antissistema”, a política pautada pelos temas
comportamentais. A lógica “identitária”, como diz o professor Carlos
Pereira, dependente da retórica bélica para reforçar continuamente laços
de lealdade e a “sensação de aconchego e pertencimento”.
Em
polos opostos, a mesma atitude. Qual seria a grande diferença entre o
sujeito que fica meses em uma barraca iglu em frente à Polícia Federal
de Curitiba, acordando cedo para gritar “bom dia, presidente!”, e o cara
que vai gritar “mito, mito” a cada vez que Bolsonaro desce em um
aeroporto? A turma dirá que um está certo e outro errado. Mas desconfio
que há também alguma passionalidade nessa resposta.
Comportamento
passional, no mundo político, é tanto comum como sem sentido. Basta
comparar com o modo como agimos, em geral, no mercado. Ninguém adere
“incondicionalmente” a um posto de gasolina, por exemplo. Se surgir a
informação de que o combustível lá não é essas coisas, você vai
pesquisar para saber, e não sai gritando “Ipiranga, Ipiranga!”. Por que
agimos assim na política? A maioria, de fato, não age. Quem o faz é a
minoria que tem o gosto muito particular da política. Estudos mostram
que esse contingente pode somar de 15% a 20% dos eleitores. São os
ativistas. Eles andam hoje nas vias digitais. E dão o tom da democracia
polarizada.
A
moderação é uma ideia que perdeu espaço na cena pública, e mesmo parte
da imprensa entrou nisso. Por uma questão de mercado, em primeiro lugar.
Na transição para o meio digital, o jornalismo foi mimetizando o modus
operandi das redes sociais. Seu estilo, estridência e tribalismo. Ainda
me lembro quando perguntei a um blogueiro, coisa de dez anos atrás, por
que ele não escrevia coisas mais ponderadas. “Não dá engajamento”,
respondeu na lata. À época o fenômeno estava se desenhando. Hoje é quase
regra. Ele mesmo virou um tipo pop, mistura de jornalista/ativista que
ganhou um enorme espaço. Um sintoma e um fator a mais para a exasperação
da democracia.
Há
uma penca de problemas nisso tudo. O primeiro é a inutilidade. A enorme
perda de energia e chances de consensos mínimos em um país cheio de
coisas importantes a resolver. Outro é o “vale qualquer coisa contra
esse demônio”, tema bem pontuado pelo diplomata Gustavo Maultasch. Na
presença do grande mal, afrouxamos nossos critérios, éticos ou
programáticos. Na urgência de defender o grande redentor, toleramos os
seus pecados. O desempenho pífio na pandemia, o familismo, a volta do
Centrão e seus velhos hábitos. No outro lado, tolera-se esquecer a
corrupção do passado recente e cultiva-se o autoengano sobre as
reformas. A oposição, que votou contra o teto de gastos, as reformas da
Previdência e trabalhista, e agora combate a reforma administrativa, é
em quem se confia para salvar o Brasil.
Outro
problema é a preguiça. Perdemos o sentido de complexidade do mundo
político. Reduzidos ao pró ou contra Bolsonaro, está tudo de antemão
explicado, correto? Dias atrás ouvi um debate sobre o drama da educação
na pandemia, e a conclusão debitava a culpa, como previsível, ao governo
federal. O detalhe é que são os estados e municípios que gerenciam as
redes de ensino básico. Não teriam lá sua dose de responsabilidade? A
revista The Economist tocou nisso em uma matéria recente. “Bolsonaro não
é a única razão pela qual seu país está em um buraco”, dizia o texto.
Os exemplos são velhos conhecidos. Na lógica da guerra política, eles
desaparecem. O mundo se torna simples e confortável. Combina com nossos
instintos, nos permite vociferar à vontade, até as próximas eleições.
Max
Weber se preocupava com essas coisas na Alemanha conflagrada do final
da I Guerra. Sua angústia era como “fundir na mesma alma a paixão e o
senso de proporção”. Weber trata do político. Sua virtude é preservar
uma saudável “distância em relação às coisas e aos homens”. Nisso ele se
distingue do “diletante esterilmente excitado”. O ponto é que a
revolução tecnológica nos transformou a todos em pequenos políticos. E a
angústia de Weber passou a nos dizer respeito também.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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