As massas se agitam quando sentem falta daquilo que consideram “de direito” ou essencial, mas a sua agitação peca pela falta de lógica. Ricardo Vélez-Rodríguez para o Instituto Liberal:
Data
de 1928 o clássico livro do filósofo espanhol José Ortega y Gasset
(1883-1955) intitulado A rebelião das massas, que conta com bela edição
brasileira publicada pela Martins Fontes (tradução de Marylene Pinto
Michael, 2ª ed., São Paulo, 2002, 300 páginas). O livro continua
atualíssimo, haja vista que nos deparamos constantemente com a tal
“rebelião das massas” nas invasões de terras pelo MST, nas manifestações
multitudinárias de jovens descontentes (muitos deles pertencentes à
geração “nem-nem”), nas badernas dos black blocs, no fechamento de ruas
pelos “trabalhadores sem teto”, nas arruaças protagonizadas por
universitários porque um deles foi preso com maconha no campus da
Universidade, no sucesso atordoante de anônimos youtubers que em mágicos
posts arrebanham milhões de seguidores, nos palanques messiânicos em
que os “salvadores da Pátria” de plantão oferecem felicidade e riqueza
sem esforço, nas operações de “enriqueça-se quem quiser e como puder”
que tomaram conta das estatais dominadas pelos companheiros (remember
Petrobrás e outras) no lastimoso ciclo lulopetista, etc.
Lembro-me
de que, no início da minha vida profissional de professor de filosofia,
em meados de 1968, pouco antes de assinar o primeiro contrato como
docente na Universidade, desempenhava as funções de vendedor da editora
Aguilar, em Medellín, na Colômbia. Tinha conseguido tal emprego em
janeiro desse ano, por intermédio de amigos espanhóis. Não vendi nada,
mas li muito. Uma das obras mais vendidas era justamente a do citado
filósofo espanhol. Afinal de contas, a Colômbia, em 68, era uma espécie
de caixa de ressonância das ideias revolucionárias que transitavam na
Europa. Como não podia deixar de ser, Maio de 68 impactou fortemente meu
país natal, especialmente no meio universitário. A rebelião das massas
de Ortega formava parte do cardápio obrigatório para os que queriam ter
da revolução uma ideia menos romântica do que a apregoada pelos
marxistas de todos os matizes.
Porém,
volto ao relato da minha profissão de vendedor fracassado. Tentando
sensibilizar a bibliotecária da Universidade EAFIT, em Medellín, numa
tarde calorenta de Julho de 68, para que a Universidade comprasse a
coleção de Museus que era a peça de ouro da editora Aguilar, ouvi a
seguinte conversa entre as secretárias da biblioteca: “A Carmencita vai
casar no fim do mês, mas ainda não foi liberada pela Universidade das
suas aulas, pois o Diretor do Departamento de Humanidades não conseguiu
quem a substituísse”. De imediato pedi à bibliotecária para que me
guardasse a pesada pasta de livreiro e me apresentei no gabinete do
Diretor de Humanidades. Evidentemente, escondi a minha ocupação de
vendedor que, se revelada, teria me garantido um chute no traseiro de
parte dos burocratas universitários. Falei que era professor de
Filosofia, formado pela prestigiosa Universidade Javeriana de Bogotá, e
que estava em Medellín para tentar uma vinculação como professor em
algum centro de estudos superiores. O Diretor falou-me, surpreso: “Veja
como são as coincidências da vida, professor. Justamente estava à
procura de um docente da área de humanas, para que substituísse uma
professora que vai se casar no final do mês”. Acertei a papelada em
questão de dias e fui contratado para a vaga da professora Carmencita,
que lecionava a disciplina: “Humanismo de la Técnica”. O programa que me
foi apresentado partia justamente da análise da obra de Ortega, A
rebelião das massas.
Na
época, os estudantes colombianos não queriam saber de Ortega. Achavam
que o pensador espanhol era um burguês que falava para os burgueses, mas
que não explicava nada da luta de classes que se vivia em escala
latino-americana e mundial. Os meus alunos reagiram mal à sugestão de
leitura da obra de Ortega contida no programa. O semestre transcorreu
numa briga entre a maioria dos meus alunos, influenciados pelas ideias
marxistas, que achavam a obra uma excrescência da mentalidade burguesa, e
eu, que, como professor – embora simpatizante do marxismo -, devia
zelar para que o programa fosse desenvolvido a contento. Resumo da
ópera: a obra foi lida, mas nas provas abri espaço para que quem
dissentisse da mesma fundamentasse os seus arrazoados numa bibliografia
complementar, de autores marxistas, que lhes passei.
Jovem
professor, ainda dependente das ideias de Karl Marx (1818-1883),
ignorava, por esse tempo, que Ortega era profundo admirador dos liberais
doutrinários franceses, os quais considero como autores do que de mais
interessante se escreveu no século XIX. Somente viria a ler sob esse
viés liberal a obra de Ortega anos depois, (em 1973-1974) quando, tendo
abandonado o marxismo sob a benfazeja influência do meu saudoso
orientador no mestrado em Pensamento Brasileiro da PUC-RJ, Antônio Paim
(1927-2021), estudei as obras dos doutrinários, notadamente as de
François Guizot (1787-1874), a quem Georgi Plekhanov (1856-1918), o
grande estudioso russo da formação do marxismo, considerava o pai da
sociologia moderna e formulador do conceito de “luta de classes”, que
iria inspirar a obra de crítica econômica de Marx .
A
rebelião das massas parte de um dado estatístico que foi destacado por
Werner Sombart:(1863-1941): as massas estão aí e ocupam todos os
lugares. Esse dado tinha sido identificado, antes, pelos liberais
doutrinários, como responsável pelo clima de massificação que já, desde
finais do século XVIII, era perceptível pela Europa afora, notadamente
na França do período revolucionário. O fato foi registrado por
Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), bem como por François
Guizot, e se tornou dado central das análises do discípulo deles, Alexis
de Tocqueville (1805-1859). Para este, a luta pela liberdade devia ser
livrada no contexto democrático que constituiu o clima dos novos tempos.
Em
relação ao dado destacado por Sombart, escreve Ortega: “Há alguns anos,
o grande economista Werner Sombart destacava um dado muito simples, que
é estranho não estar presente para todos que se preocupam com os
assuntos contemporâneos. Esse dado tão simples é suficiente para
esclarecer nossa visão da Europa atual ou, pelo menos, dar-nos a pista
para toda a sua compreensão. O dado é o seguinte: desde o início da
história europeia no século VI até o ano de 1800 – portanto, no decorrer
de doze séculos-, a Europa não conseguiu ultrapassar a cifra de 180
milhões de habitantes. Pois bem: de 1800 a 1914 – ou seja, em pouco mais
de um século – a população europeia cresceu de 180 para 460 milhões!
Creio que o contraste destas cifras não deixa nenhuma dúvida quanto aos
dotes de proliferação do último século. Em três gerações, ele produziu,
de maneira gigantesca, uma pasta humana que, lançada como uma torrente
sobre a área histórica, a inundou. Repito que bastaria esse dado para
compreender o triunfo das massas e tudo quanto ele reflete e prenuncia.
Por outro lado, também deve ser somada a isso a parcela mais concreta
referente ao crescimento da vida já mencionado” [ob. cit., p. 80].
E
conclui a respeito Ortega: “(…) Paralelamente, esse dado mostra-nos que
a admiração com que destacamos o crescimento de países novos, como os
Estados Unidos da América, é infundada. Ficamos admirados com seu
crescimento populacional, que em um século chegou a cem milhões de
homens, quando o maravilhoso é a proliferação da Europa. Eis aqui outra
razão para acabar com a ilusão de ter havido uma americanização da
Europa. Nem sequer o traço que poderia parecer o mais evidente para
caracterizar a América – a velocidade de crescimento de sua população –
lhe é peculiar. A Europa cresceu no século passado (XIX) muito mais que a
América. A América foi feita pelo que transbordou da Europa” [ob. cit.,
ibid.].
Vivemos,
portanto, desde finais do século XVIII, tempos de massificação. Nestes,
as massas são conscientes da sua força. Já não é a história o palco dos
grandes heróis. As massas ocuparam o seu lugar. A respeito do
protagonismo das massas, escreve Ortega: “De repente a multidão
tornou-se visível, instalou-se nos lugares preferenciais da sociedade.
Antes, não existia, passava desapercebida, ocupava o fundo do cenário
social; agora antecipou-se às baterias, tornou-se o personagem
principal. Já não há protagonistas: só há coro” [ob. cit., p. 43].
Quem
integra essa tal de “massa”? – Ortega responde: “A massa é o conjunto
das pessoas não especialmente qualificadas” [p. 44]. “Massa é o homem
médio (…). Massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor” [p.
45]. No texto a seguir, relaciona “massa” com o império da vulgaridade:
“A característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar,
tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda
parte. Como se diz nos Estados Unidos: ser diferente é indecente” [p.
48].
As
massas se agitam quando sentem falta daquilo que consideram “de
direito” ou essencial, mas a sua agitação peca pela falta de lógica.
Destroem justamente o meio que lhes garantiria adquirir o de que
necessitam. Nas manifestações urbanas a que assistimos a diário, vemos
as massas tocando fogo nos ônibus para reclamar passagens mais baratas.
Ou destruindo escolas para exigir melhor educação. Uma “contradictio in
terminis“, diriam os escolásticos. A respeito, escreve Ortega: “nas
agitações provocadas pela escassez, as massas populares costumam
procurar pão, e o meio que empregam costuma ser o de destruir as
padarias. Isto pode servir como símbolo do comportamento que, em
proporções mais vastas e sutis, têm as massas atuais para com a
civilização que as alimenta” [p. 91]. Esse comportamento obtuso provém
de uma tendência niilista decorrente do imediatismo que anima as massas.
A respeito, Ortega frisa: “Abandonada à sua própria inclinação, a
massa, qualquer que seja, plebeia ou aristocrática, tende sempre, no afã
de viver, a destruir as causas de sua vida” [p. 91, nota 2].
Esse
niilismo decorre do fato de a massa se sentir autossuficiente e dona da
sua vida. “O homem massa – frisa Ortega – jamais teria apelado para
qualquer coisa fora dele se a circunstância não o tivesse forçado
violentamente a isso. Como as circunstâncias atuais não o obrigam, o
eterno homem-massa, de acordo com a sua índole, deixa de apelar e se
sente senhor de sua vida” [p. 95].
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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