O direito de recall do governador, dos deputados, de qualquer funcionário eleito e também dos juízes das cortes estaduais é garantido pelo artigo 2º da Constituição da Califórnia desde 1911. Fernão Lara Mesquita:
Terça-feira
passada, dia 8, esgotou-se o prazo para que os signatários do recall do
governador democrata da Califórnia, Gavin Newsom, eleito em 2018 com
61,9% dos votos, convocado pela cidadã Orrin Heatlie, moradora do
condado de Folson, se arrependessem e retirassem sua adesão ao processo.
O
direito de recall do governador, dos deputados, de qualquer funcionário
eleito e também dos juízes das cortes estaduais é garantido pelo artigo
2º da Constituição da Califórnia desde 1911 quando a Proposition 8,
apresentada por iniciativa do povo daquele estado, foi aprovada em
votação direta. Funcionários do Poder Executivo podem ser desafiados
para recall com a apresentação de uma petição iniciada por qualquer
cidadão com endosso de mais 64 eleitores e assinada pelo equivalente a
12% dos votos recebidos pelo funcionário visado na sua última eleição.
Para deputados e juízes são requeridas assinaturas correspondentes e 20%
dos votos recebidos (naquele estado os juízes também são diretamente
eleitos e passam por eleições de re-confirmação a cada quatro anos).
A
campanha contra Newsom tinha de conseguir 1.495.709 assinaturas e
levantou 2.161.349. Dessas, 441.406 foram impugnadas e 1.719.943 foram
validadas pelo Secretário de Estado, o funcionário encarregado de
organizar todas as eleições, as do calendário ou as “especiais” como são
as de recall convocadas a qualquer momento pelo povo ou as de reposição
de representantes eleitos mortos ou demissionários antes do fim de seus
mandatos, entre outras.
A
legitimidade da REPRESENTAÇÃO é a chave mestra da democracia. E sendo
assim, qualquer alteração no quadro de representantes eleitos, na
americana, só pode ser feita diretamente pelo povo e dentro do sistema
de voto distrital puro, o único que permite saber exatamente quem
representa quem no sistema. Cada representante só pode se candidatar
pelos votos de um único distrito. Uma vez eleito representante daquela
parcela do eleitorado (municipal, estadual ou federal), os eleitores
daquele distrito permanecem donos do mandato temporariamente concedido a
ele e podem retomá-lo a qualquer momento.
No
caso de Newsom o Secretário de Estado tem até dia 22 de junho próximo
para confirmar que as assinaturas restantes são suficientes e, a partir
dessa data, 180 dias para marcar a votação, o que a coloca em outubro ou
novembro próximos. Na cédula haverá duas perguntas: 1) Gavin Newson
continua ou não no cargo? para a qual é requerida uma resposta
majoritária (50% +1); 2) Quem deve sucedê-lo?, para cuja eleição não ha
quorum, vence o candidato mais votado na lista que já aparecerá na mesma
cédula. Até o início deste mês, 51 candidatos já tinham iniciado
campanhas pela sucessão de Newsom.
Não
é exigida nenhuma razão especial para um recall. Basta que os eleitores
não se sintam bem representados. O texto da petição protocolada junto
ao Secretário de Estado mas dirigido aos eleitores menciona a ausência
das políticas de encaminhamento do problema agudo dos sem-teto no
estado, tema da campanha eleitoral, e as politicas de racionamento de
água e oferecimento de santuário a imigrantes ilegais adotadas pelo
governador, entre outros. Mas foi o “tratamento autoritário” que ele deu
à pandemia, que começou depois de protocolada a petição, que influiu
decisivamente no desenvolvimento da coleta de assinaturas. A suspensão
das aulas, que criou um enorme problema para as mães que trabalham fora
de casa, os lockdowns e “deslizes” cometidos pelo governador como um
flagrante num restaurante sem máscara depois de ter proibido a falta
delas, entre outros, têm sido mencionados como fatores que aumentaram a
animosidade contra ele.
Do
lado dos opositores do recall a acusação é de que tudo não passa de uma
tentativa reacionária dos partidários “do negacionismo” de Donald
Trump. A tentativa é de “nacionalizar” a contenda e estigmatizar os
oponentes. Já para os patrocinadores esse tipo de argumento é “cortina
de fumaça”, o mero exercício do direito de recall, que Newsom
subestimou, e a quantidade de assinaturas obtidas “já fizeram o
governador abrandar seu tom autoritário e passar a dar aos
californianos, com muito mais humildade, as satisfações que eles
merecem”.
As
ferramentas de democracia direta (recall, referendo, iniciativa,
confirmação de juiz) são o que restou incólume da democracia americana
depois que a Primeira Emenda deixou de valer para as redes sociais.
Estou juntando, no pé do artigo, um link para um debate do recall de
Newsom. Infelizmente não ha tradução mas vale para quem tem domínio do
inglês e quiser assistir um pouco de democracia ao vivo. Ali se verá que
a humanidade e suas paixões são as mesmas em toda a parte. Os
argumentos, as falhas de caráter e as mentiras e quase verdades dos dois
lados são idênticas às que você já conhece, ainda que proferidas em tom
bem mais civilizado que as que se ouve na patética CPI da pandemia da
qual o eleitorado brasileiro é mero espectador impotente.
A
diferença (entre a civilização e a barbárie, a humilhação ou a
dignidade cívicas, a abundância ou a miséria econômica, está em quem tem
o poder de decidir a parada.
Lá,
por mais que a questão nacional esteja subjacente e o alvo visado tenha
sido eleito ha apenas dois anos e meio por ampla maioria, isso não é da
conta, nem dos partidos, nem dos representantes eleitos no Congresso
Nacional, nem muito menos da Suprema Corte. E, claro, quem vive numa,
não precisa gastar saliva arvorando-se em dono da democracia. Basta
praticá-la. O mandato de Newsom não pertence a ele, é emprestado e,
portanto, este é um assunto a ser resolvido entre o governador e os
californianos, os que votaram e os que não votar nele na última eleição.
Qualquer
que seja a decisão, ela será indiscutivelmente LEGÍTIMA, tanto quanto a
que se tomar aqui, seja qual for, será indiscutivelmente ILEGÍTIMA.
Lá
isto encerrará a discussão até que surja a próxima e, até lá, a paz
será restabelecida. Aqui, engolir-se-á em seco e continuarão o chororô e
o ranger de dentes, por todas aquelas razões que o ministro Barroso e
os nossos “políticos” jejunos de democracia continuarão fazendo questão
de não entender enquanto o povo não tiver o poder de demiti-los, e mais
todas as outras que decorrem inevitavelmente dessa falsificação
grosseira que é este sistema de força bruta e privilégios
institucionalizados que faz o favelão nacional e a pilha de cadáveres da
guerra em que ele vive mergulhado crescerem mais um pouco a cada dia, e
que os brasileiros mais mal intencionados insistem em chamar de “estado
democrático de direito”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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