MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Da quase democracia ao Estado policial

 




A diferença entre a civilização e a barbárie, a humilhação ou a dignidade cívicas, a abundância ou a miséria econômica, está em quem tem o poder de decidir. Fernão Lara Mesquita:


A democracia como a conhecemos chegou a uma encruzilhada decisiva.

O dado curioso é que, ao contrário do que registra a História a respeito do movimento que, reino por reino, arrancou a humanidade ao feudalismo, a mudança política em que acaba por traduzir-se o processo em curso hoje não é o resultado de uma batalha de idéias, como sugere a gritaria da imprensa da privilegiatura, é só a consequência inevitável da mudança econômica estrutural que o precedeu.

A incapacidade dos defensores da democracia no Ocidente de entender essa diferença essencial – e assim, de atacar a causa do problema – tem sido o fator mais determinante da vitória dos seus inimigos. A crescente monopolização das economias ocidentais pelo vertiginoso processo de fusões e aquisições de empresas desde o surgimento da internet ao longo dos últimos 40 anos para enfrentar a invasão dos seus mercados pelos produtos dos monopólios do “capitalismo de estado” semi-escravocrata chinês, com seus corolários de forte “achinezamento” da remuneração do trabalho, de concentração desenfreada da riqueza, de esclerose da mobilidade social e, consequentemente, de perda de apoio popular ao capitalismo democrático que, pervertido por esse processo, é cada vez mais um jogo de cartas marcadas, é que está determinando que o Poder Político, encarnado no Estado, rompa as amarras que a democracia lhe tinha imposto.

A esperança é de conter com ele a ganância, que sempre parece mais próxima às vitimas do Poder que a sua forma de encarnação politica. Mas a História nos diz que essa é uma esperança vã. A política e a econômica são as duas pernas do Poder, o mais virulento patógeno da corrupção. Elas andam sempre no mesmo passo e, portanto, só podem ser contidas concomitantemente.

Durante milênios o Poder Econômico foi, na verdade, um subproduto do Poder Político. Era a espada, e só a espada – e nunca a capacidade de produzir – que o garantia. Partiu dessa constatação a democracia moderna que, pela primeira vez na História, tratou de separar os dois: “nenhum poder e nenhum dinheiro que não seja fruto do trabalho e do merecimento (traduzido por ‘convencimento’ na seara da politica)”. A primeira arrancada da revolução democrática foi garantir a propriedade sobre o resultado do trabalho a quem nele investiu esforço e dividir em três o Poder Político, submetendo-o a pesos e contrapesos (checks & balances). Mas antes que passasse um século já se tinha tornado claro o quanto era inútil amarrar uma perna da fera e deixar livre a outra. Foi só na virada do século 19 para o 20 que a revolução democrática consolidou-se, ao tratar de dividir e submeter a checks & balances também o Poder Econômico com as reformas antitruste da Progressive Era nos Estados Unidos.

Para que essas reformas se impusessem foi preciso armar a mão do eleitor das ferramentas de democracia direta – recall, referendo e inciativa de leis – para fazer frente, com o peso da maioria, à mão armada de dinheiro da minoria opressora na disputa pelos – digamos – “corações e mentes” dos legisladores. Ao limitar por lei a ocupação de mercados, mesmo que por competência, por uma única empresa, é que se garantiram os direitos individuais que o cidadão só pode desfrutar nas condições de trabalhador e consumidor. Pois é impossível a afluência econômica do proletário, que só tem de seu a força de trabalho que vende ao Capital, a menos que esteja garantida competição bastante para que os melhores trabalhadores sejam disputados com aumentos de salários e a preferência do consumidor pela redução de preços. Onde só ha um patrão e um fornecedor, nenhuma liberdade inscrita na lei é mais do que palavras ao vento.

Sempre foi este, mais que a força armada, o mais temível instrumento de opressão e controle tanto das monarquias absolutistas quanto das ditaduras socialistas que são continuidades umas das outras. Em ambas o rei é o dono de tudo e desafia-lo significa morte. E se havia duvidas sobre qual desses “ovos” veio antes da respectiva “galinha”, ela está absolutamente dirimida hoje pela tomada de assalto da maior potência militar do planeta “por dentro”, via o “achinezamento” da economia americana, quando as sentenças que decidem as coisas já não são as emitidas pela Suprema Corte imaginada pelos “pais fundadores” depois do devido processo, nem a Constituição que ela garante, mas sim as das “supremas cortes” privadas dos marks zuckerbergs da vida que banem sumariamente do espaço publico, hoje privatizado, e têm força para calar, junto com os representantes em que ela vota, metade da população dos Estados Unidos da América.

As ondas de choque que o desaparecimento da referência planetária de democracia emitiu mundo afora são da ordem de animar quase-democracias capengas como a do Brasil a converterem-se em estados policiais onde um tribunal de monocratas que ninguém elegeu arvora-se em polícia do pensamento, prende dissidentes, mesmo eleitos pelo povo, e faz o país inteiro retroceder às condições da Contra-Reforma. Afinal, o que são os interrogatórios violentos sobre os decretos que não foram baixados e as palavras que não se converteram em atos da CPI da Covid senão a criminalizacão dos “pecados por pensamentos e palavras”, de que é impossível obter prova conclusiva que justificavam os ferros em brasa na carne da Inquisição, ficando “as obras” concretas dos verdadeiros criminosos invariavelmente perdoadas, senão o revival do inferno de que a Reforma Protestante, mãe da democracia, livrou a humanidade?

A ver se conseguiremos sair disso sem uma epidemia de guerras-civis ou um período de trevas das proporções dos que o mundo já viu em fases anteriores de concentração do poder de comunicação e de repressão à “dissonância” comparável ao que está posto hoje, nos tempos do domínio de toda a civilização ocidental por uma igreja totalitária, até que as instituições democráticas reajam e a rede virtual onde hoje transcorre a vida politica e econômica da humanidade, se torne, como está destinada a se tornar um dia, um serviço público com o mesmo grau de neutralidade prescrito pela emenda que, não por acaso, foi a primeira acrescentada à primeira constituição democrática que a humanidade conheceu: “O congresso (isto é, o Poder Político) está proibido de fazer leis imponto a prática de uma religião ou proibindo o livre exercício da fé; ou reduzindo a liberdade de expressão e de imprensa; ou o direito do povo de reunir-se pacificamente e de peticionar o governo para obter a reparação de agravos”.

Terça-feira passada, dia 8, esgotou-se o prazo para que os signatários do recall do governador democrata da Califórnia, Gavin Newsom, eleito em 2018 com 61,9% dos votos, convocado pela cidadã Orrin Heatlie, moradora do condado de Folson, se arrependessem e retirassem sua adesão ao processo.

O direito de recall do governador, dos deputados, de qualquer funcionário eleito e também dos juízes das cortes estaduais é garantido pelo artigo 2º da Constituição da Califórnia desde 1911 quando a Proposition 8, apresentada por iniciativa do povo daquele estado, foi aprovada em votação direta. Funcionários do Poder Executivo podem ser desafiados para recall com a apresentação de uma petição iniciada por qualquer cidadão com endosso de mais 64 eleitores e assinada pelo equivalente a 12% dos votos recebidos pelo funcionário visado na sua última eleição. Para deputados e juízes são requeridas assinaturas correspondentes e 20% dos votos recebidos (naquele estado os juízes também são diretamente eleitos e passam por eleições de re-confirmação a cada quatro anos).

A campanha contra Newsom tinha de conseguir 1.495.709 assinaturas e levantou 2.161.349. Dessas, 441.406 foram impugnadas e 1.719.943 foram validadas pelo Secretário de Estado, o funcionário encarregado de organizar todas as eleições, as do calendário ou as “especiais” como são as de recall convocadas a qualquer momento pelo povo ou as de reposição de representantes eleitos mortos ou demissionários antes do fim de seus mandatos, entre outras.

A legitimidade da REPRESENTAÇÃO é a chave mestra da democracia. E sendo assim, qualquer alteração no quadro de representantes eleitos, na americana, só pode ser feita diretamente pelo povo e dentro do sistema de voto distrital puro, o único que permite saber exatamente quem representa quem no sistema. Cada representante só pode se candidatar pelos votos de um único distrito. Uma vez eleito representante daquela parcela do eleitorado (municipal, estadual ou federal), os eleitores daquele distrito permanecem donos do mandato temporariamente concedido a ele e podem retomá-lo a qualquer momento.

No caso de Newsom o Secretário de Estado tem até dia 22 de junho próximo para confirmar que as assinaturas restantes são suficientes e, a partir dessa data, 180 dias para marcar a votação, o que a coloca em outubro ou novembro próximos. Na cédula haverá duas perguntas: 1) Gavin Newson continua ou não no cargo? para a qual é requerida uma resposta majoritária (50% +1); 2) Quem deve sucedê-lo?, para cuja eleição não ha quorum, vence o candidato mais votado na lista que já aparecerá na mesma cédula. Até o início deste mês, 51 candidatos já tinham iniciado campanhas pela sucessão de Newsom.

Não é exigida nenhuma razão especial para um recall. Basta que os eleitores não se sintam bem representados. O texto da petição protocolada junto ao Secretário de Estado mas dirigido aos eleitores menciona a ausência das políticas de encaminhamento do problema agudo dos sem-teto no estado, tema da campanha eleitoral, e as politicas de racionamento de água e oferecimento de santuário a imigrantes ilegais adotadas pelo governador, entre outros. Mas foi o “tratamento autoritário” que ele deu à pandemia, que começou depois de protocolada a petição, que influiu decisivamente no desenvolvimento da coleta de assinaturas. A suspensão das aulas, que criou um enorme problema para as mães que trabalham fora de casa, os lockdowns e “deslizes” cometidos pelo governador como um flagrante num restaurante sem máscara depois de ter proibido a falta delas, entre outros, têm sido mencionados como fatores que aumentaram a animosidade contra ele.

Do lado dos opositores do recall a acusação é de que tudo não passa de uma tentativa reacionária dos partidários “do negacionismo” de Donald Trump. A tentativa é de “nacionalizar” a contenda e estigmatizar os oponentes. Já para os patrocinadores esse tipo de argumento é “cortina de fumaça”, o mero exercício do direito de recall, que Newsom subestimou, e a quantidade de assinaturas obtidas “já fizeram o governador abrandar seu tom autoritário e passar a dar aos californianos, com muito mais humildade, as satisfações que eles merecem”.

As ferramentas de democracia direta (recall, referendo, iniciativa, confirmação de juiz) são o que restou incólume da democracia americana depois que a Primeira Emenda deixou de valer para as redes sociais. Estou juntando, no pé do artigo, um link para um debate do recall de Newsom. Infelizmente não ha tradução mas vale para quem tem domínio do inglês e quiser assistir um pouco de democracia ao vivo. Ali se verá que a humanidade e suas paixões são as mesmas em toda a parte. Os argumentos, as falhas de caráter e as mentiras e quase verdades dos dois lados são idênticas às que você já conhece, ainda que proferidas em tom bem mais civilizado que as que se ouve na patética CPI da pandemia da qual o eleitorado brasileiro é mero espectador impotente.

A diferença entre a civilização e a barbárie, a humilhação ou a dignidade cívicas, a abundância ou a miséria econômica, está em quem tem o poder de decidir a parada.

Lá, por mais que a questão nacional esteja subjacente e o alvo visado tenha sido eleito ha apenas dois anos e meio por ampla maioria, isso não é da conta, nem dos partidos, nem dos representantes eleitos no Congresso Nacional, nem muito menos da Suprema Corte. E, claro, quem vive numa, não precisa gastar saliva arvorando-se em dono da democracia. Basta praticá-la. O mandato de Newsom não pertence a ele, é emprestado e, portanto, este é um assunto a ser resolvido entre o governador e os californianos, os que votaram e os que não votar nele na última eleição.

Qualquer que seja a decisão, ela será indiscutivelmente LEGÍTIMA, tanto quanto a que se tomar aqui, seja qual for, será indiscutivelmente ILEGÍTIMA.

Lá isto encerrará a discussão até que surja a próxima e, até lá, a paz será restabelecida. Aqui, engolir-se-á em seco e continuarão o chororô e o ranger de dentes, por todas aquelas razões que o ministro Barroso e os nossos “políticos” jejunos de democracia continuarão fazendo questão de não entender enquanto o povo não tiver o poder de demiti-los, e mais todas as outras que decorrem inevitavelmente dessa falsificação grosseira que é este sistema de força bruta e privilégios institucionalizados que faz o favelão nacional e a pilha de cadáveres da guerra em que ele vive mergulhado crescerem mais um pouco a cada dia, e que os brasileiros mais mal intencionados insistem em chamar de “estado democrático de direito”.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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