O que escandalizaria hoje os “empresários da felicidade pública”, o que condenaria hoje Baudelaire seria a coexistência da sua vida boêmia e da sua arte pioneira com o seu reacionarismo político. Jaime Nogueira Pinto via Observador:
No dia 9 de Abril passaram 200 anos sobre o nascimento de Charles Baudelaire, um dos pioneiros da poesia moderna.
Nesse
século XIX, e até ao meio do século XX, a França foi pátria de
vanguardas literárias e artísticas – com Stendahl, Balzac, Flaubert,
Proust e os grandes pintores, entre os todos Delacroix, que Beaudelaire
venerava, e Manet, que pintaria uma das suas amantes. E mesmo politizada
e dividida, a França do século XX continuou na vanguarda, com escolas e
correntes literárias que iam dos existencialistas aos hussardos, de
Roger Martin du Gard a Céline, de Drieu de la Rochelle a Gide, Sartre e
Camus. Infelizmente, nos últimos 40 anos, de boa novidade literária
francesa poucos nomes aparecem além de Michel Houellebecq.
Como
Proust foi pioneiro na escrita de uma odisseia literária em que Deus
não está – nem para ser odiado, como em Sade, nem para ser temido, como
em Dostoievsky, nem para ser misericordioso, como em Dickens –, Charles
Baudelaire foi, na sua “hipocondria sensual afundada no martírio, o
primeiro a mostrar as suas feridas, a sua preguiça, a sua inutilidade
aborrecida num século devoto e industrioso”. Quem assim o descreve é o
franco-uruguaio Jules Laforgue, seu confrade e contemporâneo. Victor
Hugo, a quem Baudelaire dedicaria três poemas de Les Fleurs du Mal,
considerava-o “mais resistente que o mármore e mais penetrante que o
nevoeiro inglês”. Mas o poeta maldito não descansaria enquanto não
maldissesse o grande Hugo, confessando-se enfadado pela “imbecilidade”
das laudatórias cartas paternalistas que o genial autor de Os Miseráveis
disparava para todos os lados e também lhe dirigia: “Que faites vous
quand vous écrivez ces vers saisissants? Que faites vous ? Vous marchez.
Vous dotez le ciel de l’art d’on ne sait quel rayon macabre. Vous créez
un frisson nouveau… Vous êtes un noble esprit et un généreux coeur.
Vous écrivez des choses profondes et souvent sereines. Vous aimez le
beau. Donnez moi la main.” É preciso ser ingrato.
Ao
contrário, os legítimos representantes do povo português têm vindo
repetidamente a agradecer e a aceitar a mão estendida de Hugo nas duas
cartas laudatórias que quis enviar a esta “vanguarda da Europa”. Até
porque o ignaro e ingrato povo tende a mostrar-se cada vez mais incapaz
de vislumbrar nos seus representantes laivos dos intrépidos
descobridores de mundos e pioneiros da Verdade aclamados e certificados
por Victor Hugo.
Os empresários da felicidade humana (antigos e modernos)
Produto
da boa burguesia francesa, Charles Beaudelaire viveu afundado numa
boémia do espírito e da carne, em amores de tons negros, que um outro
seu contemporâneo – Gustave Flaubert – retomaria em Salammbô.
Órfão
de pai, em guerra com o padrasto militar e autoritário – o general
Aupick – Baudelaire percorre um itinerário escandaloso para o tempo, um
itinerário de paixões incorrectas, sublimadas no simbolismo realista de
Les Fleurs du Mal, obra que a Direction de Sureté Publique manda
apreender, acusando o autor de “ultraje à moral pública” e de “ofensa à
moral religiosa”.
O
procurador Ernest Pinard fora já o acusador público de Flaubert,
julgado por ter cometido Madame Bovary. Mas Flaubert fora absolvido,
graças à táctica processual do seu advogado, Jules Senard, que em vez de
se escorar na liberdade de expressão ou na qualidade e especificidade
da criação artística, defendera a moralidade do romance: afinal, a
adúltera era castigada e o pensamento de Flaubert era, “da primeira à
última linha”, um “pensamento moral e religioso”, visando a “exaltação
da virtude pelo horror do vício”. Emma Bovary suicidava-se, como Anna
Karenina e como a pobre Luísa de O Primo Basílio também se finaria de
medo e remorso, e essa era a moral da história.
E a moral ganhava na Europa do triunfo da Burguesia, assustada pela segunda revolução de 1848, a de Junho.
Baudelaire
não teria a mesma sorte: o requisitório de Pinard levou à proibição de
seis dos poemas de Les Fleurs du Mal, e só em 1949, quase um século
depois da condenação de 1857, os “poemas malditos” seriam editados.
Este
currículo de jovem boémio e de artista excêntrico, com amantes de todas
as cores, frequentador do Club des Hashischins, no Hotel de Lauzun, e
autor de poemas obscenos não impressionaria ou escandalizaria hoje os
censores de serviço à nova “moral pública”. A não ser que houvesse
denúncias de assédio. O que lhe daria hoje infâmia, o que escandalizaria
hoje a moral dos “empresários da felicidade pública”, o que condenaria
hoje Baudelaire, seria o uso de expressões como “négresse” ou o facto de
o poeta se ter tornado politicamente reaccionário – e um reaccionário
que desprezava a democracia, negava o Progresso e desdenhava as utopias
sociais do tempo.
Depois
dos entusiasmos republicanos e revolucionários de 1848 por Robespierre e
por socialistas utópicos, como Proudhon, Baudelaire confessava, em Le
Spleen de Paris, que, fechado no quarto, lera durante quinze dias
“livros que tratavam da arte de tornar os povos, em vinte e quatro
horas, felizes, sábios e ricos”. E especificava:
“Digeri
– quero dizer, engoli – todas as elucubrações de todos estes
empresários da felicidade pública…, pelo que não é de surpreender que
estivesse então num estado de espírito próximo da vertigem ou da
estupidez”.
E num tom ainda mais directo, escreveria em Pauvre Belgique:
“Tínhamos todos o espírito republicano nas veias, como a varíola nos ossos. Estávamos democratizados e sifilíticos”.
A
sua desconfiança dos ideais progressistas e o seu pessimismo
antropológico vão ser reforçados com a descoberta de Edgar Allan Poe,
autor em que vai encontrar um mentor e um irmão espiritual. Nos anos
cinquenta, Baudelaire escreve sobre Poe, edita Poe e prefacia as Novas
Histórias Extraordinárias.
Sem
se ocupar expressamente de política ou de filosofia política, Poe
também desconfiava dos entusiasmos optimistas da democracia
jeffersoniana e não lhe faltavam referências críticas às instituições,
aos “bigoted lovers of abstract Democracy” e aos filósofos optimistas,
que não mediam os “inevitáveis males” que emanavam das suas elucubrações
nem avaliavam o peso futuro da “tirania da Multidão”.
Com Poe e de Maistre contra Rousseau
E
é no pessimismo antropológico de Poe, essa característica que Carl
Schmitt, no rasto de Maquiavel, apontará como o ponto de partida da
separação das filosofias políticas da Direita e da Esquerda, que
Baudelaire encontra o tronco das suas concepções políticas, escrevendo
no prefácio às Novas Histórias Extraordinárias:
“Poe,
produto de um século apaixonado por si mesmo, filho de uma nação mais
apaixonada por ela mesma que qualquer outra, viu claramente e reconheceu
imperturbavelmente a maldade natural do Homem”
Baudelaire
vê em Poe um irmão na modernidade, na inovação e na revolução mental e
estética. Sente que o Poe que descreve personagens alienadas e isoladas,
arremessadas para mundos estranhos está especialmente próximo das
personagens que também habitam a sua poesia: seres exilados, atirados
para a modernidade, como o grande cisne de Le Cygne, ou a Andrómaca
arrancada aos braços de Heitor e escravizada, ou a “negrèsse” que
contempla nas novas avenidas parisienses de Haussmann a ausência dos
coqueiros da “superbe Afrique”, ou como próprio poeta, preso num mundo
extinto, o vieux Paris, e petrificado perante o novo.
Mas
além de Poe, mestre da literatura fantástica e do terror, a outra
grande influência de Baudelaire é Joseph de Maistre, autor das Soirées
de Saint-Petesrbourg e das Considérations sur la France e um dos
teorizadores da contra-revolução.
Joseph
de Maistre vira a Revolução Francesa como um castigo de Deus às elites
políticas e sociais “pela sua impiedade, imoralidade e degradação de
costumes”. A Revolução era a pena merecida pela sociedade do Ancien
Régime, que a Divina Providência se encarregara de aplicar à monarquia e
à aristocracia decadentes, como as tinham pintado os romances de Sade e
de Laclos.
Das
influências de Poe e de de Maistre, nasce em Baudelaire, misturado com
tudo o resto, um certo romantismo reaccionário e uma exaltação de
modelos ou figuras nostálgicas, as únicas que valem a pena – o poeta,
l’homme qui chante, o padre, l’homme qui bénit, e o soldado, l’homme qui
sacrifie et se sacrifie. Tudo o resto era “fait pour le fouet”.
E,
sobretudo, partilha com de Maistre a guerra santa contra Rousseau
(“l’homme du monde peut être qui s’est le plus trompé”) e contra a
Filosofia das Luzes. E, em Spleen de Paris, replica nas suas errâncias
urbanas as passeatas bucólicas do criador do bon sauvage nas Rêveries du
prommeneur solitaire para atacar a sua dogmática optimista, que
considera especialmente herética porque derivada da heresia máxima: a
ausência do pecado original na História do homem.
Baudelaire
encarniça-se contra toda a filosofia política de Rousseau e sustenta a
continuidade da natureza humana, que não muda nem progride e que, se é
“naturalmente boa”, é também naturalmente má e perversa. Indigna-se
sobretudo com a permanente exibição, por parte de Rousseau, de
preocupações éticas superiores e com a constante afirmação das suas
próprias virtudes e boas intenções. “Sou o mais virtuoso dos homens”,
deixaria cair o autor de Du Contrat Social que, segundo Baudelaire em
Les Paradis Artificiels, admirava a virtude a ponto de “encher os olhos
de lágrimas” na contemplação de uma boa acção ou na antecipação de boas
acções que gostaria de praticar, e que isso o convencia do seu
“superlativo valor moral.” Atitude que se repetiria na rectidão e na
ilusão de superioridade moral dos progressistas de todos os tempos e
lugares.
Agentes externos
Baudelaire
fazia parte do Club des Hashishins, onde o Dr. Jacques Joseph Moreau
distribuía aos consórcios a mesma pasta verde que, outrora, o Velho da
Montanha dava aos seus “Assassinos”. O consumo de haxixe e outras drogas
tinha vindo para França com a expedição de Napoleão ao Egipto e
tornara-se comum com a conquista da Argélia, a partir de 1830. O clube
funcionou entre 1844 e 1849, no Hotel Lauzun, e entre os membros
contavam-se Alexandre Dumas, Victor Hugo, Théophile Gautier, Gérard de
Nerval e Eugène Delacroix.
Gautier
e Baudelaire deixaram de frequentar o Clube, com Gautier a confessar
que o faziam, não porque a droga lhes fizesse mal, mas porque “um
verdadeiro escritor” só precisava dos seus “sonhos naturais” e não
queria que “o seu pensamento fosse influenciado por agentes externos”.
Mulheres,
drogas, boémia parisiense nos anos do Segundo Império, no reinado de
uma burguesia aristocratizada que reprimira as classes trabalhadoras em
Junho de 1848 e voltaria a fazê-lo na Comuna. A burguesia do
“enrichissez-vous”, que alimentou a ficção de Flaubert, de Maupassant e
de Zola; a burguesia triunfante sob a dolorosa luz do Progresso, da
Indústria, dos comboios, das Exposições Universais.
O pecado original
Como
é que este Baudelaire, seguindo Joseph de Maistre, vai extrair do
pecado original uma teologia política reaccionária, anti-Luzes,
anti-Progresso, uma quase “política tirada das palavras da Sagrada
Escritura”, ao modo de Bossuet?
Em
Charles Maurra e, de certo modo, em de Maistre, o catolicismo e a
tradição católica funcionavam como base para as doutrinas da
contra-revolução. E Maurras estava e ficou longe da fé e da
transcendência, quase até ao fim da vida.
Baudelaire
não; Baudelaire foi sempre um atormentado pela fé e pela omnipresença
do Mal na História e no coração do homem, constantemente disputado por
duas forças: “uma que o empurra para Deus, a outra para Satanás”. André
Suarés chamou-lhe um “Dante sem Paraíso, que oscila sem descanso entre a
matéria danada e a redenção”, um filho de Adão obcecado, como todos os
seus grandes antecessores, de Dante a Milton, pela divina tragédia de um
Paraíso perdido e a reencontrar, um homem revoltado na fé e pela fé,
que, num dos seus últimos escritos, Mon Coeur mis à nu, confessa rezar
todas as manhãs a Deus, “fonte de toda a força e de toda a justiça”, ao
pai, a Mariette (a velha criada que o criou e tapou as ausências da mãe)
e a Edgar Allan Poe.
Baudelaire,
nos seus curtos 46 anos de vida, mergulhou a fundo no complexo leque de
identidades foi descobrindo em si. Como escreve Antoine Compagnon (e
poderia escrever-se sobre todos os que, com coragem, liberdade e
grandeza, mergulham a fundo na sua própria natureza e na natureza
humana):
“Há
um Baudelaire realista, um Baudelaire decadente, um simbolista, um
satanista, um católico, um ateu, um clássico, um moderno, um
reaccionário, um revolucionário, um santo e hoje mesmo um pós-moderno.
Que mais poderá dizer-se?”
Morreu,
roído pela sífilis, confessado e comungado no número 1 da Rue du Dôme,
no Seizième Arrondissement, uma rua entre a Rua Lauriston e a Avenida
Victor Hugo. Uma placa assinala, no edifício, esses últimos dias do
poeta. Foi daí, desse rés-do-chão, num quarto decorado por dois Manet,
(um deles La Maitresse de Baudelaire), que o poeta maldito partiu para o
au-de lá misterioso, levado por essa outra sua amante de sempre, a
Morte, “vieuz capitaine”, que evocara no final de Le Voyage, um dos
últimos poemas de Les Fleurs du Mal:
Nous voulons, tant ce feu qui nous brûle le cerveau,
Plonger au fond du gouffre. Enfer ou Ciel, qu’importe?
Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!
Não
foi por obedecerem à “moral pública” que Gustave Flaubert e a sua obra
sobreviveram ao tempo. E não foi a correcção moral da altura que impediu
Baudelaire de chegar até nós. Não há moralistas, antigos ou modernos,
que sobrevivam ao tempo ou que impeçam de sobreviver ao tempo os
incorrectos de todos os tempos e facções que, com liberdade e sem medo
de “empresários da felicidade” e de burocratas da moral, se aventurem
até ao fundo de si e das coisas para encontrar o novo e o eterno.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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