É próprio da maldade exaltar e exigir essa pureza ideológica que necessariamente nos torna menos inteiros. Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta do Povo:
No
fim de semana, observei com algum desespero e muito silêncio um
amigo-de-Twitter tentando explicar a seus seguidores que não, ele não é
comunista. Previsivelmente, os apelos à razão não surtiram efeito. Quem o
considerava comunista continuou considerando assim e quem não o
considerava ficou com uma pulguinha atrás da orelha.
Mais
do que se justificar para aqueles que o confundem com uma versão menor e
interiorana de Stalin, o que meu amigo-de-Twitter estava fazendo era
defender a complexidade de seu caráter e intelecto. Por coincidência,
para quem acredita nisso, os tuítes que suplicavam por um pouco de
compreensão me chegaram no meio da leitura de “O Visconde Partido ao
Meio”, de Ítalo Calvino.
A
história é de uma simplicidade quase infanto-juvenil. O Visconde
Medardo di Terralba vai à guerra contra os mouros, é atingido por um
balaço de canhão e acaba, como sugere o título, partido ao meio. Uma das
metades é cruel e má. A outra, insuportavelmente boa. No fim, as duas
metades se engalfinham numa briga pelo coração da gorduchinha Pamela e
acabam unidas num ser novamente inteiro, nem totalmente mau nem
totalmente bom.
Assim
como o “Inferno” é a parte mais popular da “Divina Comédia”, de Dante, a
metade má do visconde é a mais interessante do visconde. Diria que se
isso acontece é porque desejamos quase sem perceber calar o mal que nos
habita, fazendo prevalecer a bondade que também nos habita, mas que por
definição é humilde, discreta e modesta. Na fantasia de Calvino,
contudo, a bondade é meio afrontosa e cheira a hipocrisia. Vai entender.
A
certa altura do livro, é a porção má de Medardo que explica o porquê da
nossa tendência a reduzirmos o outro a meia dúzia de características
que nos permitam atestar: ele é bom ou ele é mau. Se fôssemos de fato
homens partidos ao meio, estaríamos os maus mais próximos do diabo e os
bons mais próximos de Deus. É próprio da maldade, portanto, exaltar e
exigir essa pureza ideológica que necessariamente nos torna menos
inteiros.
”-
Que eu pudesse partir ao meio toda coisa inteira (...), que todos
pudessem sair de sua obtusa e ignorante inteireza. Estava inteiro e para
mim as coisas eram naturais e confusas, estúpidas como o ar: acreditava
ver tudo e só havia a casca. Se você virar a metade de você mesmo, e
lhe desejo isso, jovem, há de entender coisas além da inteligência comum
dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de você e do mundo, mas a
metade que resta será mil vezes mais profunda e preciosa. E você há de
querer que tudo seja partido ao meio e talhado segundo sua imagem, pois a
beleza, sapiência e justiça existem só no que é composto de pedaços".
Guerra perdida
Quanto
ao amigo-de-Twitter desesperado por se apresentar em toda a sua
complexa inteireza e ao mesmo tempo indignado por insistirem em vê-lo
por um aspecto restrito de sua visão de mundo, os estoicos há muito
ensinam que não há como controlar a opinião que as pessoas têm de nós –
por mais equivocadas que sejam, e geralmente são. O fato é que, por mais
que nos esforcemos para mostrar ao mundo nossa melhor metade, o olhar
alheio é sempre aleatório e, por pressa ou preguiça, se aterá à metade
mais exuberante e de fácil assimilação.
Se
o outro o conhece num momento de ingenuidade ou mansidão, há de
considerá-lo para sempre um ingênuo e manso. Se o conhece em meio a um
ataque de fúria, há de vê-lo para sempre como um guerreiro (aliado ou
inimigo). Se o conhece depois de um exame de consciência, há de vê-lo
como um fraco que se desculpa por ter dado voz a uma porção, e não ao
todo. E assim por diante.
Até
mesmo amigos próximos se equivocam uns quanto aos outros. Sem falar que
a necessidade de reduzir o próximo a um conceito ideológico é natural e
até compreensível numa sociedade eternamente à espera da facada nas
costas ou temerosa de quem se deixa corromper por trinta dinheiros.
Entre os danados a expressarem como veem o mundo, equívocos desse tipo
são comuns. É, pois, perdida de antemão a guerra contra a opinião
alheia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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