Maurício de Nassau instalou na cidade a primeira cervejaria das Américas.
375 anos depois, a 'La Fontaine' é referência para amantes da bebida.
Segmento de cervejas artesanais começa a prosperar no Recife
(Foto: Edgar Domingues/ Arquivo Pessoal)
Em 1640, o conde Maurício de Nassau trouxe o mestre cervejeiro Dirck
Dicx da cidade Haarlem, na Holanda, para a instalação da primeira
fábrica de cerveja das américas. A “La Fontaine” foi montada na segunda
casa do nobre, localizada no bairro das Graças, com equipamentos e
matérias-primas trazidos diretamente do país europeu. Os anos se
passaram e a bebida ganhou o mundo como uma das mais populares.
Trezentos e setenta e cinco anos depois, um grupo de pernambucanos
amantes da cerveja resolveu resgatar o prazer de fabricar a própria
bebida e começou a fazer cervejas artesanais.(Foto: Edgar Domingues/ Arquivo Pessoal)
Tendo como base malte, levedura, lúpulo e água, as combinações são infinitas e o segmento próspero para o crescimento. Atualmente, são mais de 150 estilos de cervejas mapeadas, sendo a pilsen a mais difundida entre elas. Segundo o Market Share, nos Estados Unidos esse mercado de cervejas artesanais atinge a ordem de 11% do consumo, quando no Brasil é de apenas 1%.
Pilsen é o estilo mais difundido no mundo
(Foto: Edgar Domingues/ Arquivo Pessoal)
Os três tipos mais comuns, ou a "santíssima trindade", como os amantes
da cerveja gostam de mencionar, são a weizer, a pale ale e a pilsen. A
weizer é uma cerveja de trigo de alta fermentação com coloração amarelo
claro, ligeiramente turva e espuma abundante. Originária da Bavária,
região Sul da Alemanha, ela possui aroma e sabor intenso que lembram
banana, cravo e noz. A inglesa pale ale também tem uma fermentação alta,
mas uma coloração laranja cobreada, brilhosa e com espuma baixa. O
gosto remete aos cítricos, com notas dos frutados, malte, caramelo,
amargor médio e gosto seco. Já a mais conhecida, a pilsen, é produzida
de acordo com a lei de pureza de 1516. Ou seja, tem como essência o
malte. Ela é de baixa fermentação, dourada e com uma espuma bem cremosa.
O aroma lembra os cereais e um suave floral de lúpulo. (Foto: Edgar Domingues/ Arquivo Pessoal)
Cervejeiro há 28 anos, Laerte Rocha, 55, comenta que não existe classificação de cerveja boa ou ruim. Na verdade, o que há é uma opção do que agrada mais determinada pessoa. "Isso é muito relativo porque cada um tem seu paladar próprio". Mas fez questão de listar alguns pontos imprescindíveis. "O que não pode faltar é matéria prima de boa qualidade e uma pessoa que faça as coisas com carinho", concluiu.
Seguindo esse desejo de resgatar a tradição de Nassau, Thomé Calmon, Eduardo Farias e Raimundo Dantas resolveram criar a primeira cervejaria artesanal no Recife, a Debron. A expressão significa "A Fonte", em holândes, mesmo significado de "La Fontaine", em francês. "Apesar de já ter esse movimento de cerveja artesanal no país há uns 10 ou 15 anos, aqui em Recife praticamente não tem, ainda é uma cultura bem incipiente. É um desafio, mas acreditamos que, mais que um modismo, é uma tendência e cedo ou tarde esse movimento que já é forte no Sul vai aparecer aqui com a mesma força", acredita Thomé.
Fábrica leva nome em referência à 'La Fontaine', de Maurício de Nassau (Foto: Thays Estarque/ G1)
Sem pretensão de ser uma mainstream, os sócios se preocuparam em
fabricar um produto quase que exclusivo quanto ao sabor. Eles passaram
dois anos pesquisando e visitando várias cervejarias do Sul e Sudeste do
Brasil, América do Sul e Europa até tomar a decisão. "Contratamos o
mestre-cervejeiro Matthias Rembert, que atua na área há 33 anos e é
formado em Tecnologia Cervejeira pela Universidade Técnica de Berlim.
Ele entende de todo o processo, desde a fórmula até o piso certo. "É um
negocio novo, não é um produto de prateleira e por isso precisa de
especialistas do mercado, alguém que realmente tenha domínio total",
relatou Thomé. Atualmente, a fábrica produz 40 mil litros da bebida e só comercializa para bares e restaurantes por meio de barril, porém isto está prestes a mudar. Ainda segundo Thomé, a previsão é que até o fim deste ano a Debron venda seu produto engarrafado. "É um negocio muito contagiante. Temos espaço para crescer e pretendemos. É algo ainda embrionário, mas as pessoas estão conhecendo e o mercado está pujante".
Fábrica Capunga
Ao contrário da Debron, que se inspirou no pioneirismo do conde holandês para a identidade da marca, uma outra fábrica de cerveja artesanal terminou fazendo referência à história por acaso. A Capunga teve o nome escolhido em referência à área do Recife onde os quatro sócios – Dante Peló, 39 anos, Bruno Peló, 37, Edgar Domingues, 33 e Victor Lamenha, 31 - cresceram. Mas "Capunga" também é o nome da área do bairro das Graças onde foi instalado a primeira fábrica, em 1640. "Na verdade tudo surgiu com uma homenagem que queríamos fazer para nossa família, mas acabei achando um livro que conta a história dos bairros e, curiosamente, como já tinha escolhido o nome Capunga, procurei e descobri a história da cervejaria de Nassau", explicou Edgar.
Edgar Domingues, Bruno Peló, Dante Peló e Victor Lamenha se orgulham da espuma cremosa que fabricam
(Foto: Thays Estarque/ G1)
Empresário do ramo de cervejas há 16 anos, Dante comentou que a vontade
de se inserir nesse segmento é antiga, mas tinha receio por ser algo
quase que inexistente no Brasil. “Estados como Rio de Janeiro, São Paulo
e Rio Grande do Sul estão dois anos na frente do Recife
quando o assunto é artesanal. Os Estados Unidos há 10 anos. Por isso
demoramos a recomeçar aqui, pois é preciso ter alguma segurança de
mercado”.(Foto: Thays Estarque/ G1)
Respeitados por entregar uma cerveja com a espuma bem cremosa, a cervejaria fabrica apenas a pilsen. “Cor mais avermelhada, teor alcóolico a 20% e quatro vezes mais amarga, dentro deste estilo trabalhamos com os extremos dela. Esperamos que em janeiro tenhamos sete receitas só da pilsen. A ideia da Capunga é ser uma cerveja com gostinho de feita em casa, já para ter um aspecto de algo único”, disse Edgar.
Para eles, responsabilidade de reviver esse fato vem antes de qualquer sucesso. Ainda segundo Dante, há um desejo de contar uma boa história e servir uma boa cerveja. “Estamos captando depoimentos, indo a eventos e pesquisando livros históricos na tentativa de lançar um documentário. Queremos filmar um ano de material para propagar essa relíquia quase que perdida e que é tão do pernambucano, tão dos amantes de cerveja”.
Mercado de matérias-primas
Com Manoela Constantino, 29 anos, e José Oliveira, 52, Felipe Muniz, 30, tinha uma loja de refrigeração que vendia peças para geladeira e freezer. Porém começou a perceber que o mercado das cervejas artesanais estava crescendo e percebeu uma oportunidade de juntar a paixão pela bebida com a fonte de renda. “Sou formado como cervejeiro na Alemanha, mas nunca entrei na indústria, pois tinha esse negócio para tocar. Fui aos poucos juntando o útil ao agradável e consegui ser uma distribuidora de um produto bem conhecido”, contou.
O próximo passo foi reservar parte de uma das duas lojas para a venda do material. Ele disse também que não tem como bancar um estabelecimento só para os insumos, porque o crescimento é vertiginoso, mas bastante incipiente ainda. “Hoje de cerveja conseguimos ter entre sete a dez clientes por dia, o que é pouco. Por isso precisamos manter ainda a loja de refrigeração. Entretanto, caso o mercado siga respondendo bem, o que agora se restringe apenas a um lado tomará a loja toda”.
Loja também vende materiais para a fabricação
(Foto: Thays Estarque/ G1)
Felipe brinca que tirar dúvidas e fornecer informações também acaba
sendo o papel do vendedor. “Já aconteceu de um cliente me ligar
desesperado dizendo que a levedura dele tinha morrido durante o
processo. Esse pânico acontece com os principiantes”. Com isso, ele
costuma separar os novatos em duas categoria: os que moram em casa e os
que moram em apartamentos. “O que mora em casa tem mais espaço para
produzir, mas há também um kit pequeno para quem reside em apartamento”.(Foto: Thays Estarque/ G1)
Entre os insumos, várias variedades de malte, lúpulo e levedura. A loja, chamada CiBrew, também vende materiais para fabricação, como moedores. Dos itens básicos para começar o hobby está a panela de fundo falso, termômetro, densímetro, espumadeira e alguns mais específicos como de laboratório. Segundo o distribuidor, com mil reais se consegue montar uma área de trabalho inicial.
As condições climáticas do Nordeste e a dificuldade de transporte dos insumos em 1640 são bem distintas dos dias atuais. Por exemplo, hoje, um frete desses materiais vindos de Hamburgo, na Alemanha, custa o mesmo de uma carreta oriunda de Porto Alegre. “Tirando as barreiras e os trâmites, acredito que o mundo está muito próximo e não sofremos mais com o perigo da falta de insumos. Podemos encontrar materiais do mundo inteiro sem dificuldades em Pernambuco”, completou Felipe.
Comprador assíduo da loja, Francisco Almeida, agrônomo de 32 anos, aprecia a arte de fabricar a bebida. Para ele, a cerveja é tratada como um hobby a ser compartilhado entre amigos. “Comecei fazendo em janeiro. Antes era 20 litros, agora 40. Assim como o local de armazenar, que era a geladeira e já virou um freezer. A ideia é reunir os amigos e experimentar nossas invenções na cozinha”.
Cliente assíduo, Francisco (dir.) não deixa de consultar Felipe (esq.) na compra (Foto: Thays Estarque/ G1)
Porém, contou que as vezes as experimentações não dão muito certo.
“Acontece de dar tudo errado. Tenho um amigo que fez uma outro dia que
ficou intragável, mas as minhas eu tomo mesmo se estiver ruim. Não vou
jogar fora”, conta aos risos.Food truck
Cansados da exaustiva rotina da advocacia, os irmãos Tasso resolveram abrir o próprio negócio. Apreciadores de uma boa cerveja, Fernando, 34 anos, e Eduardo, 28, compraram uma Kombi azul de 1975 e acoplaram um trailer especialmente montado para virar um food truck. Assim nascia a Recbeer, um bar de cervejas artesanais móvel. “Saia de casa às 7h e só voltada às 23h, não tinha vida e nem perspectiva de crescimento profissional”, conta o irmão mais velho.
Tudo surgiu com a ideia de Fernando abrir um bar que vendesse hambuguer e cerveja com algum diferencial. "Foi quando começaram os food trucks em São Paulo. Aproveitei uma viagem de férias para pesquisar por lá. Voltei pensando em montar um truck de R$ 30 mil, pegar um financiamento, mas voltei para a realidade e comprei a kombi. Porém, precisava me destacar dos outros bares, senão seria mais um vendedor", concluiu.
Irmãos
Fernando e Eduardo Tasso largaram a advocacia para montar um "food
truck" especializado em cervejas artesanais (Foto: Thays Estarque/ G1)
Com preços que variam de R$ 8 a R$ 28, os irmãos trabalham com 20
rótulos na grande maioria nacionais - dos estados de SP, RJ, SC e PR -
mas garantem colocar uma internacional de vez em quando. “Temos uma
grande rotatividade de marcas e estilos já para não expor demais as
cervejas ao calor e ao transporte. Com isso, estamos sempre
proporcionando novas experiências”, disse Fernando.Mantendo o objetivo de sempre promover uma diversidade da bebida, eles dão ao cliente a opção de degustar cinco tipos de cerveja diferentes pagando apenas R$ 35. "A gente coloca uns copinhos de 200 ml de cinco rótulos distintos. Tem uma galera que já chega perguntando o que temos de diferente naquele fim de semana", explicou.
Porém, o que parecia ser algo mais tranquilo e de fácil retorno financeiro logo se mostrou ser um trabalho pesado e com necessidade de planejamento. Fernando ainda relembrou que pesquisou bastante e montou um plano de negócios até tomar a decisão. “Não tem glamour. O pessoal vê na TV e pensa que é tudo lindo e fácil. Ficam vendo os chefes de São Paulo renomados e descolados. A realidade é bem diferente. Estou com os dedos cortados, suo o tempo todo e minha vida agora é só carregar caixa. Porém, tudo isso vale a pena pela felicidade que estou sentindo”, completou.
Casamento personalizado
Raphael Vasconcelos é presidente da Associação dos Cervejeiros Artesanais de Pernambuco há dois anos. O engenheiro eletrônico de formação resolveu fabricar a cerveja do próprio casamento. “Minha esposa fez quase tudo para a cerimônia, da palheta de cores até o nosso convite, só me sobrou a bebida”, brincou.
Brincadeiras à parte, apreciar as especiais é assunto sério para Raphael. Ele contou que um dos fatores que influenciou a escolha foi o momento único que estava vivendo. “Não queria comprar uma cerveja qualquer, queria colocar meu carinho naquilo. Afinal, lá estavam meus amigos e familiares. Por isso, pensei e elaborei dois estilos diferentes para servir, a weizer e a pale ale, por se tratar de um casamento de dia e por muitos nunca terem degustado uma cerveja que não fosse as de grandes marcas”.
Raphael diz que a cerveja que produziu para o casamento é a melhor (Foto: Reprodução/ Ana Luísa Frazão)
O processo de fabricação precisou da força da amizade. “Usei o
equipamento de um amigo. Fizemos 130 litros durante uma madrugada só.
Meus amigos me ajudaram a engarrafar também. Todo o processo demorou
cerca de um mês para ficar pronto. Nada seria possível sem essa
fraternidade, ficou muito mais interessante e legal assim”. Atualmente, ele é sócio do Apolo Beer Café, um estabelecimento localizado na Rua do Apolo, bairro do Recife, especializado em bebidas selecionadas. Com dois tipos de torras de café e 100 rótulos de cervejas artesanais, Raphael relatou que a característica da casa é a consultoria. “Eu gosto tanto do que faço que acabo ajudando os clientes na hora da compra. Quando recebo alguém que nunca provou as especiais digo que nunca voltará a tomar qualquer uma. É fácil se acostumar com coisa boa”.
Processo de fabricação
Após a moagem, o malte é transportado através de um duto para o silo em cima da tina de mistura. É nesta etapa que ocorre o cozimento do malte por tempo e temperaturas importantes para a ativação das enzimas. Elas são responsáveis por liberar os açúcares fermentáveis que vão alimentar as leveduras durante a fermentação. Além dos açúcares, o malte também é responsável pela cor e corpo da cerveja.
Depois do cozimento, o mosto é bombeado para outra tina, onde acontece a clarificação. É onde o malte é separado do líquido. Neste processo as cascas fazem camadas que ajudam na filtração. Durante a fervura do mosto, onde ocorre a esterilização, é adicionado o lúpulo.
Aprenda a fazer
Para os novatos neste segmento e que gostariam de transformar a paixão pela cerveja em um hobby, a Associação dos Cervejeiros de Pernambuco (Acerva) criou um curso que envolve aula teórica e prática em uma fábrica.
Com o crescimento deste mercado, a Acerva já organiza quatro turmas de 30 pessoas a cada dois meses, e a tendência é aumentar. O ex-aluno e atual membro da Acerva, Felipe Bôaviagem, 37 anos, é um dos responsáveis por aplicar o curso. “É interessante observar que, com mais pessoas fazendo boas cervejas, você acaba provando novos tipos da bebida. Isso aumenta a cultura cervejeira e sai daquela mesmice de cervejarias mainstream”, disse.
Felipe ainda mencionou que o mundo das artesanais é infinito. Há possiblidades de harmonizá-las com tudo, de peixes até doces. Assim como existem vários tipos distintos como os leves, os extremamente amargos e as encorpadas com coentro, casca de laranja e mel. “Eu fiz as aulas por curiosidade, só para saber como era, e não acreditava que podia fazer em casa ou apartamento. Dá para fazer e sai coisa boa”, garante.
Victor Ferraz, engenheiro de 33 anos, também é um dos membros da associação e ex-aluno que se surpreendeu com o que podia fazer na própria cozinha. “O que mais me impressionou foi a facilidade. Lembro que quando fiz o curso me espantei com o fato de poder fazer numa panela”.
Número de aulas aumentou desde o começo do ano (Foto: Thays Estarque/ G1)
Carlos Eduardo Moura, engenheiro de 29 anos, se interessou pelo curso
ao passar por um estande montado em um shopping na capital. Ele contou
que é amante das artesanais desde que fez um intercâmbio na Dinamarca em
2002. "Depois que morei lá, procuro esse tipo da bebida. Você vai para o
Sul e Sudeste do Brasil e encontra bastante, agora que está aparecendo
aqui no Recife". O engenheiro ainda relatou que já chegou a visitar
micro cervejarias no Tocantins e no Paraná. "Conheci os donos dessas
fábricas e eles começaram fazendo cervejas em casa. Quem sabe um dia eu
não consigo essa empreitada", brincou. Para participar do curso é cobrado uma taxa de R$ 250 para associados e R$ 350 para não sócios. Além das aulas há alguns benefícios em ser sócio, como descontos em lojas de insumos, participação em eventos, além de regulares encontros para degustação.
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