BLOG ORLANDO TAMBOSI
Estado de Direito e mercado são parceiros no caráter líquido da nova forma de reprimir o pensamento público. Luiz Felipe Pondé para a Folha de São Paulo:
Tomo emprestado do sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017)
o termo "líquido" para descrever como funciona a censura hoje e nas
próximas décadas deste século 21 nas democracias. Uma das
características da censura líquida é ser, justamente, "democrática",
isto é, operar dentro do Estado de Direito e suas instituições. Aliás, o
Estado de Direito e mercado são parceiros diretos no caráter líquido da
nova forma de censura no século 21.
Para
Bauman, "líquido" significa que em nossa época, a sociedade e suas
instituições "escorrem pelos dedos". Tudo se espalha sem forma clara. Tudo é impermanente. Sua
entrevista publicada em livro com o título "Vigilância Líquida" traz o
sentido do conceito ainda mais próximo para o uso que faço dele aqui
aplicando-o a censura.
Ali
Bauman diz que o big brother de George Orwell (1903-1950) se revelou
como um sistema líquido de vigilância em que todos vigiam todos o tempo
todo, sem um centro institucional claro, ou seja, o big brother é a
internet e as redes sociais. Nós mesmos facilitamos essa vigilância em
busca de rapidez na aquisição de produtos, serviços e segurança nesses
processos.
Há uma outra imagem na filosofia que é muito útil para descrever essa censura líquida, imagem essa que já fora utilizada pelo filósofo Blaise Pascal
(1623-1662) para se referir ao universo infinito, indiferente e escuro
de Newton. Vou aplicar essa imagem ao modo de como já funciona a nova
censura líquida neste século.
A
censura líquida é como "um círculo cuja circunferência está em toda
parte, o centro em parte alguma". A interdição ou a punição parece
brotar de todo lugar e ao mesmo tempo de lugar nenhum que possa ser
delimitado.
Qualquer
um ou qualquer instituição poderá denunciar qualquer frase, texto,
vídeo, que julgar inadequado. O poder judiciário poderá acatar a
denúncia na direta proporção de que seu agente concorde com a denúncia, e
você, cidadão comum, sem poder institucional algum, dependerá do que
pensa, absoluto, o juiz que decidirá se você ainda terá vida
profissional, econômica, pública ou mesmo familiar. E você ainda pagará
pela sua condenação, como era na inquisição.
Mas,
a censura líquida não só opera a partir do Estado, ainda que este, na
sua versão contemporânea, tenda a ser cada vez mais repressivo, graças
as tecnologias digitais ao alcance do poder judiciário. O mercado e as
empresas também têm um papel essencial no mecanismo repressivo do
pensamento público hoje.
Cancelamentos
implicam suspensão de patrocínio e demissões. Ainda que a maioria das
pessoas não perceba, esse processo é típico da censura líquida.
Patrocinadores e empregadores tem todo o direito de suspender o vínculo
com alguém que possa carregar negativamente suas marcas.
Assim
sendo, o branding – a princípio uma atividade puramente do marketing e
da publicidade – passa a ser um dos braços mais poderosos da censura no
século 21.
Uma
marca da censura líquida é que ela pode destruir a sua vida sem prender
você ou necessariamente "proibir" você diretamente de falar ou
escrever, mas sim de pensar. A pura ameaça já tem o efeito do censor.
Aquilo que nos regimes totalitários ocorria numa escala menor, mais
lenta e localizável facilmente, no século 21 acontece em escala
geométrica, tecnológica, acelerada cada vez mais, e difusa. Pode vir de
qualquer lado, a qualquer momento. Vivemos na era do "assédio jurídico".
Assim
sendo, a democracia contemporânea liberal de mercado pode operar
completamente dentro do Estado de Direito, da lei e da liberdade de
empreendimento, sem necessidade de um "estado de exceção", e ainda assim
marchar em direção a processos autoritários já em curso de instalação.
Apesar
de que exista hoje uma competição acirrada entre o Estado e as
plataformas pela soberania – a PL das fake News deve ser vista nesse
nível mais profundo –, indicando um real desafio a ideia do estado
moderno como soberano, no que tange a censura, Estado e mercado podem
ser aliados perigosos a acuar o pensamento público. Como escapar? Fácil:
seja irrelevante em tudo e para sempre.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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