Foi com o livro "A destruição do espírito americano" que o escritor e filósofo causou acesa polêmica. Passados 36 anos (e com uma nova edição), o que há de válido neste inesperado best-seller? José Carlos Fernandes para o Observador:
Nunca
como em 2023 as “guerras culturais” nos EUA foram tão intensas, com os
sectores mais progressistas e mais conservadores da sociedade
engalfinhados em azedas querelas em torno da existência (ou não) de
“racismo estrutural”; da presença de estátuas em lugares públicos que
representem figuras históricas com vínculos à escravatura ou à opressão;
da educação sexual no ensino básico e secundário; do domínio do
“cis-heteropatriarcado branco” nos lugares de topo do Estado, das
empresas e das instituições; da introdução de quotas raciais e de género
e outras medidas para corrigir essa prevalência; da vigilância apertada
da linguagem usada no espaço público; dos direitos e prerrogativas de
quem que não se identifica com o sexo biológico com que nasceu; ou do
“cancelamento” sistemático de indivíduos, marcas, empresas ou
instituições que expressem ideias vistas como ofensivas por alguns
grupos.
Estas
“guerras”, que começaram nos EUA, têm vindo a alastrar pelo mundo
ocidental e, nos anos mais recentes, começaram a perturbar a usual
modorra portuguesa, pelo que é muito oportuna a edição por cá de The
closing of the American mind: How higher education has failed democracy
and impoverished the souls of today’s students (1987), do filósofo
americano Allan Bloom (1930-1992), com o título A destruição do espírito
americano: Como o ensino superior defraudou a democracia e empobreceu
os espíritos dos alunos de hoje. A tradução é de Maria José Batista e o
livro faz parte da meritória colecção “Os Livros Não Se Rendem”, da
Guerra & Paz, consagrada a “grandes ensaios da história, filosofia e
economia, nunca antes publicados em Portugal” e cujo livro inaugural
foi O crisântemo e a espada, de Ruth Benedict (ver Dos samurai aos pokémon: De que é feita a identidade japonesa?).
Quando a filosofia veste Armani
Apesar
da extensão (meio milhar de páginas, na edição portuguesa) e densidade
de The closing of the American mind, da rebuscada argumentação e da
constante remissão para obras clássicas da filosofia que, com excepção
de estudantes universitários e professores dessa área, poucos terão lido
ou conhecerão sequer a existência, o livro foi um sucesso de vendas nos
EUA, permanecendo durante quatro meses na lista de best-sellers do The
New York Times e vendendo meio milhão de exemplares na edição em capa
dura e outros tantos exemplares na subsequente edição em capa mole, o
que, segundo escreve Andrew Ferguson no posfácio a uma reedição de 2016
de The closing of the American mind (reproduzido na edição portuguesa),
deixou atónitas “as melhores mentes” do mundo editorial americano e
gerou royalties que permitiram a Bloom dar largas ao seu apetite por
luxo.
O
livro foi prefaciado pelo escritor Saul Bellow, amigo próximo de Bloom e
que, oito anos após a morte deste, o usaria como modelo para Abe
Ravelstein, o professor de filosofia que é o protagonista de Ravelstein
(2000), derradeiro romance do autor e em que a personagem do narrador
tem afinidades com o próprio Bellow.
Saul Bellow (1915-2005), Prémio Nobel da Literatura de 1976, Prémio Pulitzer de 1976, numa foto c. 1964
Bloom
e Ravelstein partilham a ascendência judaica; o facto de nos seus
estudos avançados de filosofia em Paris terem tido como mentor o
franco-russo Alexandre Kojève; o cargo de professor na Universidade de
Chicago (onde Bellow também leccionou); a cultura prodigiosamente vasta;
o brilho intelectual; a calvície; o carácter exuberante; o vício dos
mexericos; o gosto requintado em termos de vestuário, malas, acessórios,
peças decorativas, charutos e hotéis; a inclinação para dissipar
rapidamente o dinheiro ganho; a atracção por efebos com corpos bem
proporcionados; e o facto de terem escrito “um livro – difícil mas
popular –, um livro espirituoso, inteligente e combativo, que tinha
vendido bem” (Bellow), onde expuseram sem rodeios as suas ideias sobre a
vida intelectual da América e lhes dera a ganhar uma pequena fortuna.
Coroando estas semelhanças, há quem assuma que a SIDA que consome
Ravelstein no romance foi também a verdadeira causa da morte de Bloom,
que sempre esteve envolta em sombras e ambiguidades.
As
afinidades de Allan Bloom com a Grécia Clássica incluíam, além da
filosofia, a efebofilia: “Kouros de Kroisos”, estátua em mármore, c.530
a.C., encontrada em Anavyssos, na Grécia
Ferguson
informa, no posfácio, que “as vendas no estrangeiro [de A destruição do
espírito americano] foram igualmente prodigiosas”, o que é talvez um
exagero, pois na Europa o livro teve recepção discreta, por Bloom não
ter aí a notoriedade como figura pública que tinha nos EUA e, quiçá, por
a obra tratar de um problema que, aparentemente, era (então) só
americano, levando a que, em muitos países, o livro só muito tardiamente
fosse traduzido.
Abertura e estreitamento
Na
raiz de muitos dos problemas identificados em A destruição do espírito
americano está a excessiva “abertura” que as universidades começaram a
cultivar, uma “abertura” que Bloom associa ao relativismo cultural: “O
objectivo é forçar os alunos a reconhecerem que existem outras formas de
pensar e que os métodos ocidentais não são melhores do que quaisquer
outros” (pg. 43). Bloom não se opõe à abertura de espírito em si mesma,
no sentido de disponibilidade para considerar outras experiências e
pontos de vista, mas à sua degenerescência na aceitação acrítica de
todas as alternativas e no nivelamento destas em termos de pertinência e
validade. “A abertura costumava ser a virtude que nos permitia procurar
o bem através do uso da razão. Agora significa aceitar tudo e negar o
poder da razão. A busca desenfreada e irreflectida da abertura, sem
reconhecer o inerente problema político, social ou cultural da abertura
enquanto fim da natureza, deixou a abertura desprovida de sentido […] As
mais recentes tentativas da ciência para compreender a situação humana –
o relativismo cultural, o historicismo, a distinção facto/valor – são o
suicídio da ciência. […] O relativismo cultural consegue destruir as
pretensões universais ou intelectualmente imperialistas do Ocidente,
tornando-o em apenas mais uma cultura” (pg. 47).
“A morte de Sócrates” (1802), por François-Xavier Fabre
A
preocupação relativamente aos riscos da abertura sem critério não foi
introduzida por Bloom. Desde meados do século XX que, no meio
intelectual anglo-saxónico, circula uma advertência similar, se bem que
formulada em termos mais abruptos e jocosos do que os usados por Bloom:
“Devemos manter a mente aberta, mas não tão aberta a ponto de o cérebro
cair”. Esta frase, que tem sido atribuída a diversas personalidades, de
Carl Sagan a G.K. Chesterton, parece ter sido proferida pela primeira
vez nesta forma (ou numa muito semelhante) pelo cientista político
austríaco Walter Kotschnig em 1939, em palestras perante alunos
universitários no Massachusetts, mas há registo de avisos similares bem
mais antigos. Por exemplo, nos cadernos de notas do escritor britânico
Samuel Butler (1613-1680) já se encontra esta admoestação: “Maldito seja
quem não sabe quando fechar a sua mente. Uma mente aberta tem
certamente os seus méritos, mas não deve ser tão aberta que deixe entrar
seja o que for e não consiga reter seja o que for”.
Embora
A destruição do espírito americano esteja repleto de citações dos mais
variados pensadores, Bloom deixou de fora aquele que foi, provavelmente,
o principal promotor do relativismo na academia e nos círculos
intelectuais do mundo ocidental durante o último quartel do século XX:
Paul Feyerabend. A obra mais influente deste filósofo austríaco foi
Contra o método: Esboço de uma teoria anarquista do conhecimento, que
surgiu em 1970 e ganhou difusão com a publicação em 1975 da versão
inglesa; nela podem encontrar-se afirmações como “a ciência do Primeiro
Mundo é apenas uma entre muitas” e “as semelhanças entre ciência e mito
são verdadeiramente surpreendentes” (ver capítulo “A cada um a sua
verdade” em George Santos, a verdade da mentira e a política no século
XXI), conceitos que acabaram por enraizar-se firmemente em muitas
faculdades de ciências sociais e humanas.
A
percepção da “busca desenfreada e irreflectida da abertura”, sobretudo
pelos sectores mais liberais (no sentido que este termo tem na política
americana, de “esquerdista” ou “progressista”), como via (paradoxal)
para o “estreitamento” – ou seja, a incapacidade ou a resistência a
colocar as questões relevantes – é central no livro de Bloom, daí o
título original, The closing of the American mind. O que é difícil de
perceber é a razão que terá levado a edição portuguesa a trocar
“estreitamento” (“closing”) por “destruição”, termo que Bloom não
emprega na obra e que não descreve adequadamente o fenómeno em apreço.
É a filosofia que faz girar o mundo?
“A
universidade, de todas as instituições, é a que está mais dependente
das crenças mais profundas daqueles que participam na sua peculiar vida.
Os nossos actuais problemas educativos não podem ser seriamente
atribuídos a maus administradores, fraca vontade, falta de disciplina,
falta de dinheiro, insuficiente atenção aos três Rs [leitura, escrita e
aritmética] ou a qualquer outra explicação comum que indique que as
coisas poderão ser rectificadas se nós professores, simplesmente
fizermos um esforço. […] A essência de tudo isto não é social, política,
psicológica ou económica, mas filosófica” (pg. 397-98). Bloom situa a
grande crise filosófica na universidade americana na década de 1960 e vê
nela uma réplica “do desmantelamento estrutural da investigação
racional por que passara a universidade alemã na década de 1930” (pg.
400). Consciente de que o paralelismo entre o nazismo alemão da década
de 1930 e a esquerda americana da década de 1960 será surpreendente para
os leitores, Bloom argumenta que “em ambos os países, as universidades
cederam sob a pressão dos movimentos de massas, e fizeram-no, em grande
medida, porque pensavam que esses movimentos possuíam uma verdade moral
superior a qualquer outra que a universidade pudesse proporcionar […] O
pensamento era efectivamente o mesmo. A Nova Esquerda na América era uma
esquerda nietschianizada-heideggerizada [recorde-se que algumas ideias
de Friedrich Nietzsche foram deformadas e apropriadas por ideólogos
nazis e que Martin Heidegger foi membro do Partido Nazi (NSDAP) entre
1933 e 1945, período durante o qual exprimiu posições em consonância com
o regime e a ideologia nazi]. O ódio irracional à ‘sociedade burguesa’
era exactamente o mesmo em ambos os países” (pg. 401).
Friedrich Nietzsche, em 1872
Bloom
gasta largas dezenas de páginas a discutir a evolução do pensamento
ocidental e a argumentar em prol do papel central da universidade na
definição da essência e do rumo da civilização; todavia, frequentes
vezes ao longo do livro, insinua-se no leitor uma dúvida: mesmo sem pôr
em causa a erudição do autor e a solidez das suas reflexões sobre os
confrontos entre correntes filosóficas, não estará ele a atribuir uma
influência excessiva à filosofia e à universidade na formação da
mentalidade das massas? Não estará Bloom a confundir o vasto mundo, com o
seu turbilhão de gentes, pulsões, questões e polémicas, com uma sala de
aulas no departamento de Humanidades de uma universidade de elite? Os
conceitos filosóficos nascido nas torres de marfim da academia podem
percolar através dos estratos da hierarquia social e chegar ao cidadão
comum que nunca leu um livro de filosofia, não frequenta livrarias e
julga que Kierkegaard é um “médio criativo” dinamarquês apontado pelos
media como reforço para o plantel do Benfica, mas serão esses conceitos o
factor exclusivo que determina a forma como esse cidadão vê o mundo e
se comporta? Mesmo entre as elites intelectuais, políticas e
empresariais – que são quem efectivamente determina o rumo das nações,
não os directores dos departamentos de filosofia das universidades –
quantos terão lido, compreendido e assimilado as principais obras de
Nietzsche e Heidegger e incorporado as ideias destes na sua
mundividência, nos seus desígnios e na sua actuação? Não serão as
decisões relevantes das massas e das elites ditadas mais por
considerações pragmáticas, comezinhas e oportunistas do que por
complexas e ponderosas ruminações filosóficas?
Martin Heidegger, em 1960
Tome-se
o caso do relativismo: este é hoje dominante entre os cidadãos do mundo
ocidental, mas tal não decorre de estes terem empreendido aturados
estudos filosóficos sobre o tema. O relativismo – seja ele cultural,
moral ou epistemológico – pode ser apenas uma forma prática (e, já
agora, preguiçosa, cobarde e obtusa) de lidar com a extrema complexidade
do mundo.
O
relativismo moral é muito conveniente para que justifiquemos perante
nós mesmos as pequenas infâmias que cometemos e a nossa falta de “coluna
vertebral”; não andamos longe da célebre boutade de Groucho Marx,
“estes são os meus princípios; se não gostarem, tenho outros”.
O
relativismo epistemológico que hoje grassa pode ser visto sobretudo
como consequência da disseminação dos conceitos de “pós-verdade” e de
“factos alternativos” (ver Qual a palavra que dá mais pontos: Trump ou pós-verdade?),
associada à desmedida popularidade das redes (ditas) sociais, que
permitem que cada um viva na sua “bolha de realidade”, rodeado apenas de
“informação” que confirma aquilo que já sabe (ou melhor, que julga
saber). Outra parte do relativismo epistemológico resulta de muitas
pessoas não terem arcaboiço mental nem tempo para construir e sustentar
uma mundividência coerente; no lugar desta, amontoam meias-verdades,
generalizações e preconceitos (por vezes contraditórios) e em constante
mutação – aquilo em que acreditam é o que leram no último tweet que
receberam ou ouviram a um comentador televisivo. Amanhã poderão exprimir
ideias diversas, sem que se apercebam da incongruência, uma vez que
muitas das suas “crenças” têm a consistência de fumo e a sua capacidade
para reter informação é, nalguns domínios, comparável à de um pardal.
“Tudo é relativo” é o argumento infalível brandido pelo tolo vulgar,
desprovido de memória e de capacidade de raciocínio, a fim de “triunfar”
em todas as discussões sobre assuntos dos quais nada sabe e aos quais
não dedicou cinco minutos de reflexão em toda a vida. Na Era
Pré-Relativista, um debate terminava quando um dos lados, confrontado
com factos insofismáveis, reconhecia que “contra factos não há
argumentos”; mas hoje é sempre possível encontrar um website, um podcast
ou um vídeo que forneça “factos alternativos” para contrapor aos
“factos”.
Talvez
o excessivo foco de Bloom na filosofia e na universidade para explicar a
crise existencial do mundo moderno resulte da sua peculiar experiência
de vida e da sua insaciável sede de conhecimento. Quando tinha apenas 13
anos e ainda vivia na sua cidade natal de Indianapolis, Bloom leu um
artigo nas Selecções do Reader’s Digest sobre a Universidade de Chicago
que o deixou tão fascinado com esta instituição que, ingenuamente,
propôs aos pais inscrever-se nela. Apesar de Allan Bloom já ter revelado
uma inteligência precoce, os pais não levaram a ideia a sério; mas,
após a família se ter mudado para Chicago e ter consultado um amigo cujo
filho, também ele intelectualmente sobredotado, se inscrevera na dita
universidade, a aspiração do jovem Allan acabou por realizar-se: aos 15
anos entrou na Universidade de Chicago, concluiu a licenciatura aos 18 e
o doutoramento aos 25, com uma tese sobre o filósofo grego Isócrates.
Harper Memorial Library, Universidade de Chicago
Entretanto,
aprofundara os seus estudos de filosofia na École Normale Supérieure de
Paris, onde teve também o seu primeiro emprego como professor. Toda a
sua vida profissional foi passada a leccionar filosofia em departamentos
universitários de Humanidades (em Yale, Cornell, Toronto, Chicago e Tel
Aviv) e a sua devoção aos textos clássicos levou a que aprendesse grego
e francês para os poder ler no original – e levou também a que
traduzisse algumas dessas obras para inglês, nomeadamente a República,
de Platão, e Émile ou De l’éducation, de Jean-Jacques Rousseau.
A
sua constante convivência com as obras-mestras da história da filosofia
ocidental ajuda a compreender que Bloom se esforce tanto por explicar
tudo o que se passa no mundo através de Platão, Sócrates, Hobbes,
Descartes, Locke, Kant, Rousseau, Tocqueville, Hegel, Nietzsche, Marx,
Weber, Freud e Heidegger – que são os pensadores mais frequentemente
citados em A destruição do espírito americano.
Alexis
Clérel (1805-1859), conde de Tocqueville, por Théodore Chassérieu,
1850. Tocqueville foi autor de Democracia na América, uma obra
(frequentemente citada por Bloom) sobre as peculiaridades da sociedade e
da política dos EUA
Porém,
há que dar razão a Bloom quando ele afirma que “considerando que, mais
do que qualquer outra nação do passado, as nações modernas se fundaram
nos vários usos da razão”, pelo que “ter uma crise na universidade, a
casa da razão, é talvez a crise mais profunda que [aquelas] podem
enfrentar”.
Infelizmente,
não é de esperar que a crise da universidade possa vir a resolver-se
tão cedo, já que, dos magníficos reitores aos assistentes-estagiários,
quem tem o dever de pensar e gerir a universidade parece estar
convencido de que as dificuldades vividas pelas instituições de ensino
superior são quase exclusivamente financeiras, pelo que as suas
reivindicações mais sonoras se prendem com o reforço orçamental para
cobrir o efeito da inflação na conta da electricidade e do gás. Também
os alunos entendem que a crise da universidade é, essencialmente, de
ordem financeira: o que reclamam não é o regresso de Platão aos
curricula, é a abolição das propinas.
O esvaziamento da universidade
O
cenário que Bloom traça do estado do ensino superior nos EUA em 1987 é
desolador: “É espantosa a quantidade de alunos universitários que se
acotovelam para frequentar cursos, sem qualquer plano ou perguntas a
fazer, apenas preenchendo os seus anos de faculdade. De facto, com raras
excepções, os cursos são partes de especialidades que não oferecem
qualquer base cultural nem analisam questões importantes para os seres
humanos enquanto tais. A chamada explosão de conhecimento e a crescente
especialização não têm preenchido os anos de faculdade, têm-nos
esvaziado. […] Tem havido diversas tentativas de preencher o vácuo de
forma indolor, com vários tipos de embalagens extravagantes com aquilo
que já existe – opções de estudo no estrangeiro, majors
individualizados, etc. Depois, há os Estudos de Cultura Negra e os
Estudos das Mulheres ou de Género, assim como estudos de Aprenda Outra
Cultura. Os Estudos de Paz estão em vias de ter semelhante
preponderância. […] A última novidade é a literacia informática, cuja
insignificância absoluta é apenas evidente para aqueles que pensam um
pouco sobre o que a literacia pode significar. Faria algum sentido
promover a literacia dos literatos, uma vez que a maioria dos alunos
saídos das escolas secundárias tem, hoje em dia, dificuldade em ler e
escrever” (pg.432-33).
Se
Bloom regressasse à Terra em 2023, constataria que esta situação não só
não tinha melhorado como alastrara dos EUA para o resto do mundo
ocidental.
As
escolas secundárias, perante um corpo discente cada vez mais
desinquieto e incapaz de se concentrar numa tarefa durante mais de um
minuto, fenómeno que tem sido diagnosticado como “Perturbação de
hiperactividade com deficit de atenção” (ADHD, na sigla inglesa), mas
cujos sintomas se confundem com a indisciplina, a incivilidade, a
petulância e a sobrecarga energética resultante de uma dieta demasiado
rica em açúcar, foram desistindo de tentar persuadir os alunos a ler os
clássicos ou, na verdade, qualquer texto com mais de meia dúzia de
páginas – nalguns casos, os textos literários ou filosóficos foram
substituídos por “conteúdos” mais condizentes com os interesses e
capacidades intelectuais dos alunos: letras de canções de rap, manuais
de instruções de electrodomésticos, rótulos de produtos alimentares,
etiquetas de roupa. A literacia informática, ainda incipiente nos
curricula universitários americanos de 1987, assume, nos países
desenvolvidos, lugar central na escola desde o ensino básico. No
Portugal de 2023, governantes e pedagogos aspiram a uma escola
hipertecnológica, expurgada de tralha arcaica, como livros em papel,
cadernos e quadros de ardósia, e em que toda a aprendizagem e avaliação é
mediada por dispositivos electrónicos, e o actual primeiro-ministro já
anunciou como desígnio nacional que todos os alunos aprendam uma
linguagem de programação, imaginando talvez que, assim, o país se
converterá, do Minho ao Algarve, num florido Silicon Valley com
unicórnios a pastar entre colinas coroadas por aerogeradores e estradas
onde só circulam Teslas.
Face
à crescente impreparação dos alunos que finalizam o ensino secundário –
paradoxalmente acompanhada por uma luxuriante inflação nas notas –
muitas universidades viram-se obrigadas a baixar drasticamente os seus
níveis de exigência nos cursos já existentes, a criar “cursos-de-treta”
(sobretudo na área das Humanidades), de natureza vaga, utilidade
duvidosa e empregabilidade nula e a atribuir diplomas a quem quer que
pague as propinas. Como que subvertendo um dito do físico e cosmólogo
Lawrence Krauss, o sistema educativo desistiu da sua missão de fazer os
estudantes superar a ignorância – agora contenta-se em certificá-la.
Paralelamente
ao aumento do facilitismo pela parte de muitas instituições de ensino
superior, regista-se uma mudança na atitude dos alunos: estes
tornaram-se avessos a ser confrontados com ideias e conceitos que
divirjam dos que já possuem; exigem ser advertidos antecipadamente pelos
professores da eventual presença, nas matérias leccionadas e
respectivos textos e materiais de apoio, de elementos que possam magoar a
sua sensibilidade (o que no meio anglófono se designa por “trigger
warning”); exigem o uso de “linguagem inclusiva”, nomeadamente a que
contempla as múltiplas declinações da identidade de género e da
orientação sexual. A principal preocupação dos alunos universitários de
hoje parece ser que todos os campi universitários se transformem em
“safe spaces”, isto é, lugares livres de preconceitos, conflitos e
críticas e, a bem dizer, de quaisquer ideias, conversas ou acções vistas
como potencialmente ameaçadoras, sobretudo as que envolvam minorias
(étnicas, de género ou de orientação sexual) tradicionalmente oprimidas
pelo cis-heteropatriarcado branco, cuja capacidade para se sentirem
atacadas, ofendidas ou menosprezadas, ainda que de forma indirecta (as
famigeradas “micro-agressões”), se tornou praticamente ilimitada. E, a
fim de assegurarem que a universidade está meticulosamente desinfectada e
convertida num caldo de cultura para florzinhas-de-estufa
(“snowflakes”, no calão anglófono), estes grupos multiplicam-se em
petições, manifestações, greves e outras formas de protesto destinadas a
expulsar professores e proibir palestras de convidados, simplesmente
por exprimirem ideias que não estejam alinhadas com as suas. Camille
Paglia, uma das mais influentes feministas das últimas décadas – que, em
2021, se converteu no alvo dos alunos da University of Arts de
Philadelphia, que exigiram a sua expulsão do corpo docente, por ter
ousado divergir da posição “politicamente correcta” em matéria
transgénero –, exprimiu com admirável concisão o actual estado do ensino
superior: “A universidade deixou de ser um local de debate de ideias,
tendo-se tornado um infantário onde a idade adulta parece ser adiada até
à eternidade”.
O
Wren Building, de traça atribuída ao arquitecto inglês Christopher Wren
(1632-1723), é o edifício mais emblemático do College of William &
Mary, em Williamsburg, Virginia, que, tendo sido fundado em 1693, é a
2.ª mais antiga instituição de ensino superior dos EUA
“A geração mais bem preparada de sempre”
Allan
Bloom lamentou que as universidades se enchessem com estudantes que
“não aprenderam a ler, nem têm a expectativa de se deleitarem com a
leitura […] [e têm] poucas pretensões culturais” (pg. 77), e que, em
resultado dos tumultos ocorridos nas universidades americanas na década
de 1960, esses estudantes, com o apoio de professores extremistas e a
cobardia e passividade dos restantes, tivessem arrebatado ao corpo
docente o poder de definir “os objectivos da universidade e o conteúdo
daquilo que ensinavam” (pg. 399) e tivessem conquistado o poder de
despedir os professores que não se submetessem. Porém, por veementes que
sejam as invectivas de A destruição do espírito americano, Bloom teria
dificuldade em imaginar que, na terceira década do século XXI, muitas
universidades americanas estariam transformadas, do ponto de vista das
ideias e da linguagem, em espaços rigorosamente policiados e
meticulosamente acolchoados, de forma que nenhum aluno corra o risco de
sentir-se “magoado”.
Esta
situação tem sido denunciada em várias obras recentes, uma das quais,
surgida em 2018, tem um título que presta tributo ao livro de 1987 de
Bloom: The coddling of the American mind: How good intentions and bad
ideas are setting up a generation por failure (numa tradução livre: “O
apaparicamento do espírito americano: Como boas intenções e más ideias
estão a encaminhar uma geração para o fracasso). Os seus autores, Greg
Lukianoff e Jonathan Haidt, argumentam que a obsessão dos jovens em
excluir da universidade tudo o que os possa ofender, irritar, incomodar
ou fazer sentir desconfortáveis não só subverte os objectivos do ensino
superior como está a criar uma geração de uma extrema fragilidade
emocional, incapaz de enfrentar o mundo real, quanto mais de se
transformarem em adultos autónomos e dar contributos válidos para a
sociedade.
Entretanto,
em Portugal, inviolável e perene remanso paradisíaco num mundo de
tensão e turbulência, governantes, ex-governantes, líderes políticos,
comentadores, professores, directores escolares e reitores, continuam a
falar da “geração mais bem preparada de sempre”, uma ilusão que se
baseia 1) em estatísticas “marteladas”, notas inflacionadas, passagens
administrativas e cursos faz-de-conta; 2) na presunção, pela parte da
elite, de que os seus filhos e os amigos dos seus filhos são
representativos do jovem português médio; 3) no estardalhaço gerado nos
media por uma pequena troupe de jovens com espírito empreendedor,
discurso de uma assertividade sobranceira, autoconfiança ilimitada e
mundividência hipercompetitiva e filistina, formatada pela psicologia de
pacotilha dos manuais de gestão, dos livros de auto-ajuda e das
palestras motivacionais.
Em
contraponto, os media divulgam, cada vez com maior frequência, estudos
que dão conta de uma juventude desorientada, desesperançada,
incapacitada pela depressão e pela ansiedade, atormentada por “ataques
de pânico” e que confessa ter medo, sentir-se só, alimentar pensamentos
suicidas e recorrer à automutilação para, ao menos, sentir qualquer
coisa (os inquéritos e estudos raramente vão ao ponto de explicitar de
que têm medo os jovens – talvez tenham medo de ter medo, que é a forma
mais abjecta que o medo pode assumir). Todavia, as notícias sobre esta
juventude assustada e sem rumo parecem não chegar aos olhos e ouvidos da
elite que domina o espaço público, que continua a repetir até à náusea o
cliché da “geração mais bem preparada de sempre”, talvez por esta
ficção acabar por ser lisonjeira para muitos adultos: se os jovens são
os mais bem preparados, foi porque os governantes promoveram as reformas
e os investimentos necessários, porque os tecnocratas delinearam os
programas adequados, porque a classe docente desempenhou as suas funções
exemplarmente e porque os pais souberam ouvir e acompanhar os filhos e
proporcionar-lhes uma sólida formação cívica e moral.
Família + escola vs. TikTok + Playstation
Allan
Bloom tece considerações pertinentes sobre o declínio da relevância da
família na educação dos filhos: por um lado o papel da família enquanto
transmissora da tradição foi esbatendo-se, já que, “com a explosão de
informação, a tradição tornou-se supérflua” (pg. 71). Por outro lado,
“os pais e as mães deixaram de ter a ideia de que a mais elevada
aspiração que podiam ter para os seus filhos é que fossem sábios […] A
competência especializada e o sucesso são tudo quanto conseguem
imaginar” (pg. 71). Finalmente, “os pais já não têm a autoridade legal
que tinham no Velho Mundo. Falta-lhes autoconfiança enquanto educadores
dos filhos, aceitando generosamente que eles serão melhores do que os
seus pais, não só no que diz respeito ao bem-estar, mas também na
virtude moral, física e intelectual. Existe sempre uma crença mais ou
menos aberta no progresso, o que significa que o passado parece pobre e
desprezível” (pg. 71).
Ao
mesmo tempo, aponta Bloom, “primeiro a rádio, depois a televisão,
assaltaram e destruíram a privacidade do lar […] [pelo que] os pais já
não conseguem controlar a atmosfera da casa e perderam até a vontade de o
fazer. Com grande subtileza e energia, a televisão entra não só na
sala, mas também […] nos gostos de velhos e novos, apelando ao prazer
imediato e subvertendo tudo o que não esteja em conformidade com este”
(pg. 72). A “velha” vida familiar é incapaz de apresentar aos seus
membros propostas para conversas e actividades em comum que sejam
capazes de competir com “as coisas admiráveis e interessantes com que
são bombardeados dentro do seu próprio lar” (pg. 72).
Estas
linhas de 1987, embora certeiras, poderão parecer ingénuas ao leitor de
2023, que está consciente de que o poder da televisão para dissolver a
atmosfera familiar iria continuar a aumentar imparavelmente ao longo da
década de 1990 e que, no século XXI, o smartphone e a Internet, nas suas
múltiplas facetas e com a cumplicidade de uma parafernália de gadgets
electrónicos, iriam pulverizar definitivamente a “família tradicional” e
aniquilar de vez a autoridade e influência dos pais sobre os filhos.
[Uma
etapa inicial do “assalto à privacidade do lar”: foto c. 1950]Se a
multiplicação do número de canais de televisão e de televisores em cada
lar já favorecera que cada membro da família se isolasse dos outros e se
consagrasse à sua esfera de interesses, o smartphone com acesso à World
Wide Web envolve cada indivíduo numa “bolha de realidade” absolutamente
exclusiva. A família pode estar sentada à mesa para uma refeição, ou a
desfrutar de um dia na praia, mas o smartphone permite que todos se
ignorem mutuamente durante a maior parte do tempo. Por outro lado, um
dos efeitos da imersão permanente num avassalador caudal de “novidades” é
o aumento da taxa de renovação das modas e a aceleração da
obsolescência do conhecimento “tradicional”, o que, por sua vez, alarga o
fosso entre gerações. É certo que, desde tempos imemoriais, sempre
existiram desfasamentos e incompreensões entre gerações e que as
inovações tecnológicas tenderam a produzir alterações na sociedade e no
relacionamento intergeracional, mas o mundo nunca passou por uma mudança
tecnológica tão rápida, abrangente, imersiva e poderosa como a que está
associada aos smartphones e à Internet. Daqui resulta que o mundo dos
pais e dos avós e dos professores se afigura aos jovens de hoje como
absolutamente “pobre e desprezível”, pelo que eles não esperam que a
família ou a escola tenham algo de apelativo e pertinente para lhes
transmitir ou um conselho útil para lhes dar. Família e escola são,
apenas, uma tremenda “seca” e urge regressar ao vídeojogo deixado em
suspenso no computador ou averiguar que novos vídeos com outros miúdos a
fazer estroinices foram “postados” no TikTok nos breves minutos que
passaram desde a última vez que consultaram o smartphone.
Em
Outubro de 2001, no artigo “Digital natives, digital immigrants”,
publicado na revista On the Horizon, o especialista em educação Mark
Prensky escrevia: “O que me espanta em todo o alarido e polémica de hoje
em torno do declínio da educação nos EUA é não darmos atenção à mais
fundamental das suas causas: os nossos alunos mudaram radicalmente. Os
alunos de hoje não são os alunos para os quais o nosso sistema de ensino
foi concebido. Os alunos de hoje não sofreram apenas uma mudança
incremental em relação aos do passado, não se limitaram a alterar o seu
calão, as suas roupas e os seu ornamentos corporais ou o seu estilo,
como acontecia antes entre gerações. O que temos agora é uma
descontinuidade abissal. Podemos até designá-la como ‘singularidade’ –
um evento que introduz alterações tão profundas que não há retorno
possível. Essa ‘singularidade’ foi a chegada e a rápida disseminação da
tecnologia digital nas últimas décadas do século XX […] Os alunos de
hoje pensam e processam informação de uma forma fundamentalmente
diferente da dos seus antecessores”.
A TV substitui o professor: aula de música à distância, EUA, 1950
22
anos após este alerta, com fornadas de crianças cada vez mais
“digitalizadas” a entrarem no sistema de ensino, pouco mudou de
essencial neste, nem nos EUA nem em Portugal. Os decisores e os
pedagogos continuam a desenhar programas, objectivos e metodologias
concebidos para os “sistemas operativos”, os interesses e o mapa mental
das crianças e adolescentes de meados do século XX. Em Portugal, os
media tradicionais gastam muitas páginas e muitas horas de emissão com
um tema a que costuma dar-se a designação de “Educação”, mas que, em vez
de tratar do escancarar do abismo entre a escola e os alunos e do que
significa “ensinar” na era da “realidade aumentada”, do Chat GPT, do
TikTok, do Snapchat, do BeReal e do Twitch, são quase exclusivamente
ocupadas com as reivindicações dos professores relativas a remunerações e
carreiras, em particular a “recuperação integral do tempo de serviço”
para efeitos de “progressão na carreira”. Entre 2018, quando este
assunto foi abordado no capítulo “Exigimos respeito”, em “A eutanásia
mata” e outros 9 slogans letais, e o presente, a eficácia da escola
prosseguiu o seu penoso declínio – com a ajuda dos confinamentos
impostos pela pandemia de covid-19 – e o mister de professor tornou-se
ainda mais frustrante e desgastante, mas a única mudança relevante no
discurso da classe docente foi a substituição das palavras de ordem
“nove anos, quatro meses e dois dias”, por “seis anos seis meses e 23
dias”, mercê de algumas concessões pela parte do Estado em termos
salariais. É como se os tripulantes do Titanic insistissem em discutir
com o representante da administração da White Star Line a remuneração
das horas extraordinárias enquanto o navio se afunda.
A universidade-empresa, o estudante-consumidor e o conúbio entre ciência e cupidez
É
difícil compreender a vertiginosa decadência da universidade se, como
Allan Bloom, buscarmos explicações apenas na filosofia. O historiador
americano Daniel Bessner apresentou recentemente, no programa “Real Time
with Bill Maher”, de 21.04.2023, uma análise dessa decadência, que
envolve considerações económico-financeiras, empresariais, sociológicas e
comportamentais: “Na última geração ou geração e meia [ou seja, desde a
publicação de The closing of the American mind] ocorreu uma mudança de
fundo na universidade americana – uma transformação
centrada-no-consumidor, em que os estudantes se converteram
efectivamente em consumidores. A ‘experiência universitária’ passou a
estar no centro da universidade, tomando o lugar da educação, e isto
teve vários efeitos negativos. Hoje em dia, a maioria das universidades é
gerida como se fosse um negócio […] Cerca de 70% dos professores não
fazem parte do quadro, o que significa que são mal pagos e não têm
estabilidade profissional. Na década de 1970 […] cerca de 70-75% dos
professores estavam integrados no quadro”. Esta precariedade crescente
dos professores deixa-os incapazes de oferecer resistência quando são
confrontados por alunos que discordam do que ensinam ou da forma como é
ensinado.
Ainda
segundo Bessner, “quando gerimos uma universidade como um negócio,
afastamo-nos do propósito educacional que deveria estar no seu cerne.
Situações em que os estudantes impedem oradores convidados de falar
estão profundamente conectadas com o facto de o estudante universitário
ser visto como um consumidor – ele está lá para desfrutar de uma
‘experiência’ e paga por isso uma pipa de massa e contrai uma dívida
colossal, portanto está absolutamente determinado a divertir-se […] [A
universidade de hoje] tem mais a ver com curtir álcool, drogas e sexo do
que com educação”. Ou seja, o aluno, ao ser convertido em “cliente” e
ao ter visto o seu curso convertido numa “experiência”, é natural que
deseje que esta seja o mais agradável possível, o que inclui não ser
desafiado nas suas certezas e preconceitos.
A
universidade portuguesa não assumiu ainda contornos tão “empresariais”
quanto a americana, mas o processo de conversão do estudante em cliente
está em curso. Mesmo nas universidades públicas, o facto de o
financiamento estatal estar vinculado ao número de alunos (e não à
qualidade e relevância da sua produção científica ou ao nível de
preparação e à empregabilidade dos seus licenciados) faz com que o
principal objectivo das universidades seja hoje angariar estudantes,
quaisquer estudantes, sem olhar ao seu grau de preparação, ao seu perfil
psicológico ou à sua motivação. E como na universidade, pública ou
privada, não há pior chamariz possível para estudantes indiferenciados,
impreparados e sem ética de trabalho do que uma aura de exigência, as
universidades fazem tudo para que a vida dos seus estudantes se escoe de
forma plácida e aprazível e a instituição ganhe fama de possuir
professores “porreiros” (ou o adjectivo actualmente em curso entre os
jovens) e de proporcionar uma “vida académica” plena de oportunidades
para “socializar”. E há estudantes e pais de estudantes que, depois, se
surpreendem e barafustam por o “investimento” feito (muitas vezes com
grandes sacrifícios no plano material) num curso-de-treta numa
universidade-de-treta se salde num diploma que, na prática, não garante
aos licenciados e mestres nada melhor do que um emprego a atender
chamadas num call center (as galés da Era Digital), a repor stock num
hipermercado ou a alugar toldos, “gaivotas” e espreguiçadeiras numa
concessão balnear – que estaria, de qualquer modo, ao seu alcance se
tivessem apenas concluído o ensino secundário.
Quem
pretenda um curso universitário que lhe garanta um emprego bem
remunerado, fará melhor em inscrever-se num MBA (Master of Business
Administration), que é uma das bêtes noires de A destruição do espírito
americano. Bloom classifica como “um grande desastre” o “estabelecimento
[…] do MBA como equivalente moral da licenciatura em medicina ou em
direito, significando uma forma de garantir um estilo de vida lucrativo”
(pg. 470). O MBA, lamenta Bloom, “tem provocado uma explosão de
inscrições em economia, a disciplina que conduz à gestão. […] A economia
esmaga as restantes ciências sociais e desvirtua a percepção dos alunos
em relação a estas – o seu propósito e o seu peso relativo no que diz
respeito ao conhecimento das coisas humanas […] [O estudante de
economia] não é motivado pelo amor à ciência da economia, mas pelo amor
daquilo com que ela se preocupa – o dinheiro” (pg. 471).
Campus
da Harvard Business School, Massachusetts, EUA. Foi fundada em 1908,
foi (e é) um modelo para business schools um pouco por todo o mundo e em
2022 ocupou o 3.º lugar no ranking do Financial Times e o 2.º lugar nos
QS World University Rankings
Bloom
ficaria, provavelmente, descoroçoado com o facto de, nas últimas
décadas, a economia ter ganho um papel absolutamente preponderante no
meio académico, na condução dos destinos nacionais e no espaço público, o
que veio reforçar a importância atribuída às escolas de gestão
(business schools) que formam a elite empresarial e administrativa. No
Portugal de hoje, a bazófia em torno das escolas de gestão atingiu
proporções inauditas, em parte por o país, cujas instituições de ensino
superior raramente figuram na parte superior dos rankings
internacionais, ter visto, em 2022, cinco escolas de gestão incluídas no
top 95 europeu do sector (elaborado pelo Financial Times), sendo apenas
superado por França e Reino Unido. O desempenho das escolas de gestão
nacionais tem sido exibido como prova da “excelente qualidade do ensino
português” – logo por infortúnio, numa área que Bloom descreve como a
“perfeita coincidência entre a ciência e a cupidez”. Mas o que dá mesmo
que pensar é que, sendo Portugal o 3.º melhor país da Europa a formar
gestores, os principais indicadores económicos portugueses – PIB per
capita, produtividade por trabalhador, salário mínimo, salário médio –
estejam tão distantes do 3.º lugar nos respectivos rankings europeus e o
país seja sucessivamente ultrapassado, neste domínio, por rivais sem
uma única escola de gestão no top do Financial Times.
Uma bola de cristal embaciada
Não
foi só na classificação da literacia informática como uma
“insignificância absoluta” que Bloom se mostrou incapaz de compreender e
prever a dinâmica de transformação do sistema de ensino e da sociedade.
Outro exemplo são as suas considerações sobre a aberrante escola
desconstrucionista: “A literatura comparada caiu agora largamente nas
mãos de um grupo de professores que são influenciados pela geração
pós-sartreana dos heideggerianos parisienses, em particular Derrida,
Foucault e Barthes. A escola chama-se desconstrucionismo e corresponde à
última fase, previsível, da supressão da razão e da negação da
possibilidade de verdade em nome da filosofia. A actividade criadora do
intérprete é mais importante do que o texto; não há texto, apenas
interpretação. Assim, aquilo que que é mais necessário para nós, o
conhecimento daquilo que estes textos têm para nos dizer, passa para o
controlo da personalidade subjectiva e criadora destes intérpretes, que
negam quer o texto quer a realidade a que este se refere” (pg. 482).
A
denúncia desta impostura intelectual é justificada, porém Bloom falha
redondamente quando vaticina que “esta moda passará, como já aconteceu
em Paris”. Desgraçadamente, 36 anos depois, a “moda” não só não passou
como ainda é a corrente dominante nos departamentos de literatura e a
aprovação em provas de mestrado ou doutoramento nesta área requer – seja
qual for o assunto e a abordagem – a invocação dos santos nomes de
Derrida, Foucault ou Barthes. Mesmo que o mestrando ou doutorando
discorde das suas teorias, as considere estéreis e irrelevantes ou não
as compreenda, deverá vergar o espinhaço e citar respeitosamente estas
luminárias na sua tese (mesmo que a despropósito); se o fizer, será
aprovado, por mais medíocre ou estulta que seja a sua tese e por mais
inepta que seja a sua defesa, mas se ousar contestar a ortodoxia ou
simplesmente a ignorar, incorrerá no desagrado do júri.
O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), um dos Pais da Igreja Desconstrucionista
Se
é compreensível que Bloom não tenha sido capaz de prever a longevidade
no meio académico de uma sandice como o desconstrucionismo, é bem mais
difícil perceber o que o terá impelido a fazer a afirmação seguinte:
“algumas feministas radicais continuam a pregar a religião dos velhos
tempos, mas a maioria das mulheres tem a confortável certeza de que já
não existem muitos obstáculos às suas carreiras” (pg. 102). Sem dúvida
que o estatuto da mulher na sociedade americana era bem melhor em 1987
do que, digamos, em 1957, mas, ainda assim, a carreira das mulheres, nos
EUA e no mundo ocidental, estava pejada de obstáculos. Ainda hoje está,
apesar dos progressos feitos, com a persistência de evidentes
desigualdades salariais (para a mesma função) e sub-representação de
mulheres nos cargos de topo no Estado, na política, nas empresas, nas
artes e na academia; e se isto se passa no Ocidente, nos países
desenvolvidos da Ásia (Japão, Coreia do Sul, China) o papel da mulher é
ainda mais subalterno, e melhor será nem falar do mundo islâmico.
Bloom
poderia alegar que, em 1987, em certos domínios, algumas barreiras
legais e formais à carreira das mulheres já tinham sido levantadas, mas
um homem tão culto e inteligente quanto Bloom deveria saber que as
barreiras invisíveis podem persistir durante muitas décadas depois de
eliminadas da legislação – barreiras invisíveis que, no mundo anglófono,
costumam ser designadas pela expressão “glass ceiling” (“tecto de
vidro”, não confundir com “telhado de vidro”).
Entre
numerosos e relevantes exemplos que poderiam ser apresentados nas naus
diversas facetas da sociedade americana para comprovar a falsidade da
afirmação de Bloom, tomemos o da presença feminina no Congresso: embora,
em 1987, não existissem, há muito, quaisquer barreiras formais à
carreira política das mulheres, a verdade é que entre os 100 membros do
Senado e os 435 membros da Câmara dos Representantes existiam apenas 2
mulheres no primeiro e 24 na segunda (2% e 5% do total,
respectivamente). Em 2023 a situação é mais equilibrada, com 25 mulheres
no Senado (25%) e 128 na Câmara dos Representantes (29%) e uma mulher –
a democrata Kamala Harris – a presidir ao Senado, na qualidade de
vice-presidente – a primeira mulher a desempenhar tal cargo na história
dos EUA. Antes, em 2007, atingira-se outro marco histórico no domínio da
igualdade de género no Congresso, com a primeira nomeação de uma mulher
– a democrata Nancy Pelosi – para presidir à Câmara dos Representantes.
É de sublinhar que, para que estes dois “tectos de vidro” no Congresso
fossem quebrados foi necessário aguardar pela 117.ª e pela 110.ª
legislatura (respectivamente) – isto num Congresso que, logo a 4 de
Julho de 1776, na Declaração de Independência, proclamou serem “verdades
auto-evidentes” que “todos os homens são criados iguais e são dotados
pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a
Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”.
A
afirmação de Bloom é tão infeliz e tão desligada da realidade que deixa
uma dúvida: tratar-se-á de um momento de imbecilidade temporária, ou de
uma provocação aos sectores feministas ou será que o distinto
professor, em resultado de ter passado uma parte tão substancial da sua
vida embrenhado no estudo de Platão e Aristóteles, terá,
inconscientemente, assimilado a natureza profundamente misógina da
sociedade grega da Antiguidade Clássica e creia, sinceramente, que, por
comparação com esta, as mulheres americanas de 1987 eram tão livres
quanto os homens e gozavam dos mesmos direitos efectivos?
Aspásia
fala e Sócrates (sentado) e Péricles (de pé) escutam, num quadro de
1800 por Nicolas-André Monsiau. Aspásia (c.470-c.428 a.C.), que teve uma
ligação amorosa com Péricles, foi uma das raras mulheres a ter algum
relevo na androcêntrica história da Grécia Clássica e Platão e Xenofonte
retratam-na como culta e com dotes retóricos
Bloom
também tece considerações bizarras sobre a evolução do combate entre
esquerda e direita: “A direita – no seu único significado sério, o
partido oposto à igualdade (não à igualdade económica, mas à igualdade
de direitos) – a princípio, quis desfazer a Revolução [Francesa] em nome
do trono e do altar, e esta reacção provavelmente deu o último suspiro
apenas com Francisco Franco em 1975. Outra facção da direita, por ser
uma direita progressista, quis criar e impor ao mundo um novo tipo de
desigualdade, uma nova aristocracia europeia ou alemã, mas esta foi
erradicada em Berlim em 1945”.
O “último suspiro” da direita, segundo Bloom: O Generalísimo Franco, poucos meses antes da sua morte
Antes
de mais, é extremamente discutível resumir toda direita política aos
saudosos do Ancien Régime e ao Partido Nacional-Socialista dos
Trabalhadores Alemães. Por outro lado, é duvidoso que Francisco Franco
possa ser descrito como um restaurador “do trono e do altar”: é certo
que ele envergou o manto de defensor da “Espanha católica” contra o
“ateísmo comunista”, mas no que toca à monarquia espanhola, embora
fosse, em teoria, seu adepto, nada fez para recolocar o exilado Alfonso
XIII no poder – apoderou-se do cargo de chefe de Estado em 1936 e
quando, em 1941, Alfonso XIII faleceu e o seu filho Juan, Duque de
Barcelona, reivindicou o trono, Franco ignorou-o. Em 1947, Franco
declarou que Espanha voltara a ser uma monarquia, mas, na prática, nada
mudou: Franco continuou a deter o poder absoluto e o Duque de Barcelona
nunca foi aclamado como Juan III e nunca lhe foi atribuído qualquer
papel no Estado espanhol. Só no fim da vida Franco – e talvez por falta
de melhores alternativas – tomou medidas para que Juan Carlos, filho do
Duque de Barcelona, lhe sucedesse; mas, ainda assim, só após a sua
morte.
Por
outro lado, em 2023, a extrema-direita espanhola não só está viva, como
teve uma fulgurante ascensão nos anos mais recentes. Franco tem hoje um
lídimo herdeiro em Santiago Abascal, líder do Vox, que foi, nas mais
recentes eleições legislativas, em 2019, o 3.º partido mais votado em
Espanha (3.6 milhões de votos, 52 deputados em 350) e que cultiva o
nacionalismo, a xenofobia e o autoritarismo, concebe uma “hispanidade”
definida por uma (imaginária) matriz genética, pela monarquia, pela fé
católica e por uma visão jactanciosa e triunfalista da História (em
particular a Reconquista e a colonização da América), e vê os avanços na
igualdade de género como grave ataque aos valores tradicionais e à
família. Como seria de esperar, o Vox opôs-se frontalmente à exumação
dos restos mortais de Franco do seu mausoléu na soturna celebração do
franquismo que é o Valle de los Caídos, decidida pelo governo
“social-comunista” de Pedro Sánchez, e tem batalhado pela revogação da
legislação espanhola contra a violência de género.
Santiago Abascal, líder do Vox desde a sua fundação, em 2013
Com
uma ou outra idiossincrasia nacional e com posições mais ou menos
extremadas em determinados temas, partidos com características similares
às do Vox têm vindo a ganhar terreno pela Europa fora e a constituir
governo (Hungria, Polónia, Itália), a integrar coligações governamentais
(Finlândia), ou, pelo menos, a afirmar-se entre as principais forças
políticas do país (Portugal, França). Até na Alemanha e na Áustria, onde
a extrema-direita teria sido (supostamente) “erradicada em 1945” e o
seu historial de infâmias deveria estar gravado a fogo em todos os
espíritos, ela ressurgiu, com postura menos crispada, tom menos
vociferante e discurso mais moderado, sob a forma da AfD ou Alternative
für Deutschland (ver capítulo “A história, entre a culpa e o orgulho” em
“Como serias tu em Auschwitz?”), que já foi o 3.º maior partido alemão,
com 94 lugares do Bundestag, mas caiu para o 5.º lugar, com 67
deputados, nas eleições de 2021, e do FPÖ ou Freiheitliche Partei
Östreich, que já foi o 2.º maior partido da Áustria e governou o país em
coligação com os conservadores, mas caiu para 3.º lugar, com 16% dos
votos, após um escândalo em 2019, envolvendo Heinz-Christian Strache,
então líder do FPÖ e vice-chanceler.
Também
nos EUA se tem assistido ao crescimento da extrema-direita, por vezes
identificada global e vagamente como alt-right e que inclui grupos e
tendências muito diversas (o termo é impreciso e, consoante as
definições e opiniões, pode ou não incluir grupos mais radicais e/ou
lunáticos, como os Proud Boys, os Oath Keepers e os seguidores das
teorias QAnon, mas será aqui empregue, por facilidade, como sinónimo da
actual extrema-direita americana). Embora sendo minoritária dentro do
Partido Republicano, a extrema-direita tem, na prática, vindo a
determinar a agenda e o posicionamento deste (ver capítulo “Embriagados
com teorias conspirativas” em George Santos, a verdade da mentira e a política no século XXI).
A extrema-direita americana, embora esteja longe de ser um grupo
definido, estruturado e homogéneo, tende a ser anti-igualitária,
misógina (embora algumas das suas figuras de proa sejam mulheres) e
isolacionista; a estar associada ao “supremacismo branco” (embora conte
com muitos afro-americanos nas suas fileiras); a acreditar que uma vasta
cabala (orquestrada por judeus, comunistas, pedófilos ou lagartos
extra-terrestres, consoante as versões e a credulidade) controla, na
sombra, o Estado, as grandes empresas tecnológicas e os media
americanos. Dada a sua agressividade e a sua incapacidade para conviver
com pessoas que não partilhem das suas ideias, algumas das suas figuras
destacadas propõem que os EUA se cindam em duas entidades, seguindo
linhas de fractura ideológicas, com estados “azuis” (democratas) para um
lado e “vermelhos” (republicanos) para outro.
Membros dos Proud Boys, grupo da extrema-direita americana com propensão para acções violentas e simpatia por ideias fascistas
As “guerras culturais” na América do século XXI
Se
ainda fizesse parte do mundo dos vivos, Allan Bloom estaria
provavelmente alinhado com a alt-right na aversão ao “politicamente
correcto”, ao “marxismo cultural”, ao feminismo radical, à discriminação
positiva (affirmative action) e ao “wokismo” em geral, mas é de crer
que rejeitasse outras crenças e atitudes dos alt-righters e muitas das
posições que o Partido Republicano tem vindo a assumir desde que Donald
Trump venceu as eleições presidenciais de 2016. Se dermos crédito a
Andrew Ferguson, no posfácio a A destruição do espírito americano,
“Bloom nunca foi um conservador. Na política eleitoral era um democrata
moderadamente liberal, e mais liberal ainda em assuntos pessoais e
sociais. […] Bloom não era adepto do mercado livre ou da incessante
aquisição e luta que este encoraja”. O próprio Bloom o afirmou: “Não sou
conservador – nem ‘neo’ nem ‘paleo-conservador’. O conservadorismo é
uma opção respeitável […], acontece que não sou esse tipo de animal”.
Apesar
disto, a verdade é que, em 1987, A destruição do espírito americano foi
entusiasticamente acolhido pelos conservadores e ferozmente criticado
pelo sector liberal (por exemplo, à esquerda, David Rieff rotulou o
livro de “vingativo, reaccionário e anti-democrático”). Porém, é
duvidoso que a nova direita americana tenha de A destruição do espírito
americano a mesma opinião que a direita dos anos Reagan: a alt-right não
só ignora ou despreza os textos clássicos amados por Bloom, como
associa toda a “alta cultura” à elite intelectual que, na sua
perspectiva, controla e parasita o país e olha com sobranceria para as
massas – das quais os líderes da alt-right (como é típico dos
populistas) reivindicam serem os únicos representantes legítimos e a que
gostam de dar a entender que pertencem (ainda que muitos desses líderes
– a começar por Trump – sejam milionários). No nosso tempo, quando são
fotografados ou filmados para efeitos de campanhas eleitorais ou
comunicação com os seus apoiantes, os candidatos republicanos ao
Congresso não surgem a ler, com expressão grave, A Guerra do Peloponeso,
de Tucídides, ou The Federalist Papers no recato das suas amplas
bibliotecas, mas a disparar espingardas semi-automáticas com ostensivo
gáudio.
As
“guerras culturais” que hoje dividem a sociedade americana estão na
continuidade dos fenómenos abordados por Bloom em A destruição do
espírito americano, mas a natureza do combate alterou-se profundamente.
Nos EUA da terceira década do século XXI não poderíamos estar mais longe
da sofisticação intelectual de A destruição do espírito americano – o
espaço público foi calcinado e esterilizado pelo sectarismo e pelo
maniqueísmo, não restando lugar para a argumentação racional, para a
consideração de subtilezas, para a ponderação ou para a tolerância. Boa
parte do debate político transferiu-se para as redes (ditas) sociais e
opera com a belicosidade, a grosseria, a ignorância, a superficialidade,
o imediatismo, a impulsividade, a intransigência e infantilidade que é
usual nesses meios e, neste caldo de (in)cultura, Allan Bloom é hoje uma
figura menos conhecida e respeitada do que um qualquer YouTuber que
nunca leu um livro, não é capaz de encontrar a Grécia num mapa-mundo,
vive na cave da casa da mãe e julga que Isócrates é o novo chatbot que
foi desenvolvido pela Apple e será instalado na próxima versão do
iPhone.
Os
radicais de esquerda, sobretudo os que estão associados a “minorias
historicamente oprimidas”, vêem os Pais Fundadores dos EUA sobretudo
como “escravocratas”; culpam genericamente o “cis-heteropatriarcado
ocidental” por um longo cortejo de malfeitorias históricas que inclui o
esclavagismo, o extractivismo, o genocídio, o “genocídio cultural” e a
globalização (ver Escravatura: Culpa, ressentimento e histórias mal contadas e O que o mundo moderno deve à exploração de África e dos africanos);
reclamam “reparações” financeiras para os que hoje se identificam como
descendentes (por mais remotos que sejam) das “vítimas” da civilização
ocidental; exigem a remoção do espaço público de estátuas de figuras
históricas cujo comportamento não se tenha coadunado com os critérios
éticos do presente; vêem o crime de “apropriação cultural” no uso, por
um membro de um grupo “historicamente opressor”, de qualquer elemento
que esteja tradicionalmente associado a um grupo “historicamente
oprimido” (ver De Amanda Gorman a Lucky Luke: Correcção ou excesso? e Há turbas de linchamento à solta na Internet);
pugnam pela expurgação das obras clássicas de todas as referências e
palavras que hoje são vistas como “ofensivas” para essas minorias (ainda
que não o fossem quando foram criadas); pretendem que os manuais e
programas escolares sejam revistos de forma a dar relevo ao papel de
elementos dessas minorias na História dos EUA e a fazer ver aos alunos
que a sociedade americana continua a ser estruturalmente racista,
sexista, homofóbica e transfóbica; exigem, na sequência de sucessivos
episódios de violência policial injustificada contra afro-americanos,
que se corte o financiamento às forças da ordem.
Navegador
destemido ou monstro genocida? Estátua de Cristóvão Colombo em frente
Capitólio Estadual do Minnesota,em St. Paul, após ter sido derrubada por
activistas do Movimento Índio Americano, a 10 de Junho de 2020
A
alt-right e parte cada vez mais significativa dos líderes e apoiantes
do Partido Republicano vêem nestas reivindicações uma ameaça aos valores
nucleares da América e uma tentativa de reescrever a História – ou,
pelo menos, a História que os conservadores conhecem e em que gostam de
acreditar. Se o zelo da esquerda mais excitada em rever a estatuária
pública pelos padrões éticos de hoje é asinino, também os conservadores
que se opõem à remoção de estátuas, símbolos e nomes ligados à
Confederação, invocando serem testemunhos históricos, estão equivocados,
pois a esmagadora maioria deles foram criados nas primeiras décadas do
século XX, muito depois de os homenageados terem morrido – ou seja,
resultaram de um plano para impor uma visão do mundo, preservar um statu
quo e, em última análise, reescrever a História.
Evolução
do número de homenagens no espaço público a líderes e símbolos da
Confederação entre 1861 (início da Guerra da Secessão) e 2014 (a
laranja, criação de monumentos; a cinzento, baptismo de escolas; a azul;
outras homenagens)
O
sector mais conservador do Partido Republicano (que, hoje, quase
coincide com o Partido Republicano) agasta-se com as reivindicações das
franjas radicais do Black Lives Matter, do movimento LGBTQ+ e do
feminismo, mas tem tirado partido delas, seleccionando as mais tolas e
desvairadas e inventando outras, ainda mais absurdas e ultrajantes, que
amalgamam num assustador espantalho do movimento woke e, por arrasto, do
Partido Democrata, uma estratégia que se tem revelado muito eficaz na
conquista do eleitorado mais idoso e rural, mais apegado a velhos usos e
com dificuldade em compreender o conceito de orientação sexual
“não-binária”. Na verdade, no léxico do Partido Republicano dos nossos
dias, “woke” é uma designação vaga e abrangente para tudo aquilo de que
não se gosta ou que não se compreende.
O
mais típico exemplo do aproveitamento do movimento “woke” (e, em
particular, dos seus excessos) como arma de combate político está em Ron
DeSantis, governador da Florida, figura popular entre o eleitorado
Republicano e principal rival (não-declarado, por enquanto) de Donald
Trump na corrida a candidato do partido às eleições presidenciais de
2024.
Ron
DeSantis em reunião com Donald Trump, na Casa Branca, em Abril de 2020,
numa altura em que DeSantis ainda era um submisso acólito de Trump. A
reunião tinha por assunto a pandemia de covid-19, cuja gravidade ambos
os governantes se esforçavam, então, por minimizar
DeSantis
fez das “guerras culturais” um dos eixos mais visíveis da sua actuação e
da sua afirmação a nível nacional e assumiu o papel de líder da cruzada
anti-woke, nomeadamente através 1) da oposição ao ensino da “critical
race theory” (“teoria crítica da raça”) e à abordagem do tema da
orientação sexual nas escolas da Florida, através do Stop Woke Act e do
Don’t Say Gay Bill, respectivamente; 2) do banimento das bibliotecas
escolares da Florida de centenas de títulos que abordam assuntos de raça
e sexualidade e que foram considerados pelas autoridades como
inapropriados para crianças e jovens; 3) da hostilização sistemática da
Walt Disney Company (que gere uma das maiores atracções do estado, o
Walt Disney World, perto de Orlando) por esta ter manifestado
publicamente desacordo relativamente à Don’t Say Gay Bill e por DeSantis
entender que os filmes recentes da Disney dão excessivo relevo a temas e
personagens LGBTQ+; 4) de medidas para cortar o financiamento aos
programas de Diversidade, Igualdade e Inclusão nas universidades
públicas do estado, que DeSantis acusa de desviarem “a universidade da
sua missão fundamental” e de terem fomentado a “discriminação, a
exclusão e a doutrinação”; e 5) da adopção do slogan “Florida is where
woke goes to die” (“A Florida é onde o woke vai morrer”), uma escolha
pouco feliz, uma vez que recicla a imagem da Florida, corrente nos EUA,
como “o lugar onde os velhos vão morrer”, por muitos americanos
mudarem-se para a Florida quando se reformam, atraídos pelo clima ameno e
pelos benefícios e isenções fiscais que a legislação estadual concede
aos reformados.
As
“guerras culturais” de hoje têm pontos de contacto com as preocupações
de Allan Bloom em 1987 – é muito provável que Bloom concordasse que os
programas de Diversidade, Igualdade e Inclusão desviam “a universidade
da sua missão fundamental” – mas teria certamente discordâncias, atritos
e dissonâncias com a reacção conservadora anti-woke. Constituiria
bizarro espectáculo vê-lo na Fox News, no programa de Tucker Carlson (um
dos mais populares comentadores televisivos de direita, entretanto
despedido daquela cadeia de TV), tentando explicar, com longas citações
de Nietzsche e Heidegger, como o declínio da América se deve ao facto de
o relativismo de valores da filosofia alemã ter substituído a moral
tradicional, enquanto Carlson contraporia a tese de que a real causa da
decadência da América é o facto de a marca de guloseimas de chocolate
M&M ter tornado as suas duas mascotes (“spokescandies”) femininas
mais “modernas e inclusivas”, o que levou a mascote verde a trocar as
botas por ténis, tornando-se, assim, no entender de Carlson, menos
“sensual” e, quiçá, sexualmente desejável – “a M&M não ficará
satisfeita enquanto todas as suas mascotes não se tornarem absolutamente
destituídas de atractivos e completamente andróginas. Quando elas
chegarem a um ponto em que não nos sintamos compelidos a tomar uns copos
com elas, terão atingido o seu objectivo” (Carlson dixit).
Uma
das magnas questões “culturais” que agasta a direita americana de hoje:
As sete “spokescandies” da M&M, na versão revista de 2022, que,
segundo fontes abalizadas, foi gravemente danosa para a sensualidade das
mascotes castanha e verde
Algumas
“guerras culturais” dos EUA circunscrevem-se às fronteiras do país, mas
é cada vez mais frequente que ganhem ramificações noutros países
desenvolvidos. É o caso da polémica das casas de banho (e balneários)
que deverão/poderão ser usados pelos alunos que se identificam com um
sexo que não é aquele com que biologicamente nasceram, com as franjas
mais à esquerda a reclamar a multiplicação de casas de banho transgénero
ou o acesso às casas de banho de acordo com a identificação sexual e
não com o sexo biológico, e os sectores conservadores a oporem-se. Esta
polémica já chegou a Portugal e, em reacção às reivindicações dos
activistas LGBTQ+ portugueses, foi posta em circulação uma petição à
Assembleia da República que expressa a recusa em que “os nossos filhos e
filhas sejam obrigados a partilhar os WCs e balneários com pessoas
fisicamente do sexo oposto”, uma formulação que, logo à partida, assenta
num conceito – o de “sexo oposto” – que choca frontalmente com a
caleidoscópica combinação de identidades de género e orientações sexuais
postulada e propalada pelos sectores mais progressistas.
Quem,
em partes menos afortunadas do mundo, onde as “guerras culturais” têm
escasso relevo face à “guerra” quotidiana para obter água potável,
alimentar os filhos com dois dólares por dia e escapar às balas perdidas
das lutas entre gangs, tenha conhecimento destas assanhadas
controvérsias pensará que só nações sumamente bem-aventuradas, que já
resolveram todos os problemas fundamentais que atormentam o indivíduo e a
sociedade e onde o leite e o mel jorram das fontes, podem entregar-se a
tão bizantinas logomaquias – e redobrarão a sua vontade de abandonar o
país natal e encontrar refúgio nestes El Dorados.
A
intenção (supostamente generosa) dos sectores mais progressistas de
fazer equivaler todas as culturas, todas as perspectivas e todas as
opiniões, acaba não só por criar um lamaçal de inanidades e uma vasta
teia de interditos que ameaça sufocar a sociedade, as artes e a
liberdade de expressão, como suscita uma forte reacção contrária dos
sectores mais conservadores em defesa dos valores tradicionais – com
consequências que, na prática, são similares. As “guerras culturais”
raramente resultam em acordos de paz e concessões mútuas, antes
exacerbam o radicalismo, o sectarismo e o entrincheiramento, com cada um
dos lados a recusar ouvir os argumentos opostos, a rotular factos
objectivos como “fake news” e a identificar o adversário com o Mal – ou
até a negar ao adversário características humanas (como fazem os
chalupas QAnon que crêem que os EUA são controlados por lagartos
extra-terrestres). O mundo que resulta desta espiral de estupidez e
casmurrice é, inevitavelmente, menos livre e mais tacanho.
Jake
Angeli (mais conhecido como “QAnon Shaman”), que, no assalto ao
Capitólio, em Washington, de 6 de Janeiro de 2021, ganhou fama
planetária, aqui com um cartaz que anuncia ser um enviado do misteriosa
entidade QAnon
Satanás é uma estrela do rock
A
parte de A destruição do espírito americano que pior resistiu à
passagem do tempo é a que diz respeito à música, tema a que Bloom
consagra todo um capítulo. Bloom lastima que “uma percentagem
significativa de jovens com idades compreendidas entre os 10 e os 20
anos vive para a música. É a sua paixão; nada mais os excita como a
música; não conseguem levar a sério nada que seja alheio à música […] A
música dos novos fãs […] não conhece classes nem nações. Está disponível
24 horas por dia e em todo o lado” (pg. 85). A música a que Bloom se
refere é o rock, já que “a música clássica está morta entre os jovens “
(pg. 86).
E
como vê Bloom o rock? Como uma perversão que faz o corpo dos jovens
“palpitar com ritmos orgásticos, cujos sentimentos são expressos em
hinos às alegrias do onanismo ou ao assassínio dos pais, cuja ambição é
ganhar fama e riqueza imitando a drag queen que faz música” (pg. 93) e
como um “negócio” que é “a forma perfeita de capitalismo, satisfazendo a
procura e ajudando simultaneamente a criá-la. Tem toda a dignidade
moral do tráfico de droga, mas por ser algo completamente novo e
inesperado, ninguém pensou em controlá-lo, e agora é demasiado tarde”
(pg. 96). O arrazoado de Bloom contra o rock é tão desvairado e
incongruente que, ao mesmo tempo que vê no rock o pináculo do
capitalismo, também acusa a esquerda de ter dado “carta-branca à música
rock” e afirma que os marxistas aprovam o rock porque este “dissolve as
crenças e a moral necessárias à sociedade liberal” (como é sabido, o
rock conheceu o seu máximo florescimento na URSS de Brezhnev e na China
de Mao).
A
encarnação musical de Satanás é, para Bloom, Mick Jagger, “o niilismo
[…] epitomado numa simples figura […]. Um astuto rapaz de classe média
que representava a possessão demoníaca de classe baixa e o sátiro que é
adolescente até aos 40 anos, piscando um dos olhos a multidões de
crianças de ambos os sexos que ele estimula até ao frenesim sexual e o
outro olho aos adultos não-eróticos, motivados comercialmente, que lidam
com o dinheiro. […] Mick Jagger podia entrar nos sonhos de toda a
gente, prometendo fazer tudo com todos; e, sobretudo, legitimava as
drogas” (pg. 98).
O Mafarrico enfeitiça as massas: Concerto dos Rolling Stones no Zuiderpark, em Haia, 1976
Se,
por um lado, em 1987, Bloom entendia que “a chama de Mick Jagger
começou a desvanecer-se”, não tirava daí grande consolo, pois receava
que fosse substituído na idolatria dos jovens por protagonistas “ainda
mais estranhos do que ele”, como “Michael Jackson, Prince e Boy George”.
Bloom não estava consciente de que, em 1987, a indústria musical já
promovia produtos com potencial corruptor dos adolescentes bem superior
ao de Mick Jagger ou Boy George, mas é natural que um filósofo Armani
não estivesse a par da existência de fenómenos como o thrash metal, o
doom metal ou o sludge metal; e, embora possa alegar-se que estas
“correntes musicais “ eram (e são) relativamente marginais (ainda que
muito populares entre adolescentes e jovens adultos do sexo masculino),
não seria preciso muito tempo para que alguém tão estapafúrdio e
ultrajante como Marilyn Manson surgisse na TV generalista em horário
nobre e se tornasse numa vedeta à escala planetária. Por outro lado,
Bloom não parece dar-se conta de que, em 1987, os Rolling Stones há
muito tinham perdido a aura irreverente, contra-cultural e “perigosa” de
que tinham gozado em meados da década de 1960, e faziam já parte do
establishment musical e social – o álbum de 1983 dos Rolling Stones,
Undercover, pode ter uma mulher nua na capa, mas nessa altura tal
tornara-se banal no meio musical, e o álbum de 1986, Dirty work, só tem
“sujidade” no título, uma vez que, por essa altura, a música e as letras
da banda eram perfeitamente inócuas e indistinguíveis dos produtos
mainstream da indústria musical. Este processo de “normalização” e
“institucionalização” culminaria com o agraciamento de Jagger com o
título de “Sir”, pela Rainha de Inglaterra, em 2002 (Jagger não só
aceitou como confessou sentir-se “tocado”).
Mesmo
sem ter noção da verdadeira dimensão dos extremos de obtusidade e
niilismo de que o rock é capaz (e quão inócuos eram os Rolling Stones
por comparação), Bloom achava-se em posição para vaticinar que “as
pessoas das civilizações futuras” acharão a paixão dos jovens do século
XX pelo rock “tão incompreensível como nós achamos o sistema de castas, o
acto de queimar bruxas, os haréns, o canibalismo e os combates de
gladiadores” (pg. 93). Claro que a ideia de “civilizações futuras”
comporta algum optimismo pela parte de Bloom, pois pressupõe que a
humanidade não iria extinguir-se a breve prazo, arrastada pela voragem
maligna do rock.
Marilyn
Manson (nome artístico de Brian Warner) num concerto em São Paulo, em
2007, integrado na sugestivamente intitulada “Rape of the World Tour”
Para
lá da dissolução da moral, da incitação ao assassínio dos progenitores e
da conversão da vida dos jovens numa “ininterrupta e comercialmente
pré-embalada fantasia masturbatória”, um dos pecados do rock é, segundo
Bloom, que o seu ruído impede os jovens de “ouvir aquilo que a grande
tradição tem para lhes dizer”. Isto pressupõe que, antes de, em meados
do século XX, o rock ter desencaminhado os jovens, estes passavam o
tempo de lazer a deleitar-se com a música de câmara de Brahms, as
sinfonias de Bruckner e os madrigais de Sigismondo d’India.
É
verdade que os grandes sucessos comerciais na música costumam ser de
pífia qualidade e ter características alienantes, mas a sujeição ao
mínimo denominador comum intelectual também vale para o cinema ou para a
literatura – faz parte da natureza da cultura popular. Bloom não parece
perceber que o gosto pela música erudita, pela filosofia e pelas
grandes obras literárias estará sempre restrito à elite – na verdade, a
uma pequena fracção da elite, pois boa parte do apreço da elite pela
“alta cultura” não passa de fingimento, presunção e sinalização de
estatuto social. Não são Rick Astley, Whitney Houston, os Bee Gees ou os
Pet Shop Boys (para citar alguns dos protagonistas das canções mais
ouvidas em 1987 nos EUA) que são responsáveis por as massas não ouvirem
Mozart, Beethoven e Tchaikovsky, pela mesma razão que não são Stephen
King, Scott Turow, Tom Clancy e Danielle Steel (autores responsáveis
pelos principais best-sellers de 1987 nas livrarias dos EUA) que desviam
as massas da leitura de Platão, Montaigne, Hobbes e Kant. As opções
para ocupação do tempo livre do adolescente médio americano de 1987 não
opunham o thrash metal dos Slayer (para escolher um exemplo mais
“orgástico” – e em crescendo de popularidade em 1987 – do que os
“aburguesados” Rolling Stones) e os quartetos de cordas de Mozart, eram
uma escolha entre Slayer ou filmes de zombies, ou transmissões
televisivas de competições de futebol americano, baseball, ou wrestling,
ou praticar tiro ao alvo com latas de cerveja vazias num descampado, ou
fazer peões com o carro dos pais no parque de estacionamento de um
restaurante de fast food à beira da estrada.
Kerry
King (numa foto recente), dos Slayer, que, no ano anterior à publicação
de A destruição do espírito americano lançaram o álbum Reign in blood, o
terceiro da banda e o primeiro a entrar no top 100 da Billboard
As
diatribes histéricas de Bloom contra a paixão assolapada dos jovens
pelo rock e o vertiginoso declínio moral dela resultante, que eram
anacrónicas já em 1987, tornam-se francamente ridículas e caducas quando
lidas em 2023 e a sua argumentação é tão vaga e errática que nem sequer
se percebe o que Bloom entende por rock; se classifica toda a música
popular moderna como rock (aparentemente sim); qual será o lugar do jazz
nesta visão maniqueísta da música; se entende que todo o rock é
completamente destituído de valor artístico e é intrinsecamente
estupidificante e “orgástico”; se alguma vez terá ouvido outra música
popular para lá das banalidades que costumam dominar as playlists das
rádios, os programas televisivos e os tops de vendas; e se, tendo ouvido
algum rock exterior aos cânones comerciais dos media mainstream, o terá
escutado e terá sido capaz de descortinar algumas das suas subtilezas e
riquezas. O que é quase certo é que, se fosse vivo em 2016, Bloom teria
sucumbido a uma apoplexia ao saber que o Prémio Nobel da Literatura
tinha sido atribuído a Bob Dylan.
Este
patético capítulo de A destruição do espírito americano não só atesta
que o conhecimento de Bloom sobre música popular é extremamente
superficial e está toldado por preconceitos primários, como desperta no
leitor a suspeita de que também as (aparentemente) elaboradas
argumentações de Bloom sobre filosofia, política e educação nos outros
capítulos poderão estar eivadas de falsidades, deturpações, equívocos,
raciocínios falaciosos e desonestidade intelectual, e retira autoridade
ao livro. Afinal, como pode alguém que dá mostras de tal estreiteza de
vistas ter a ousadia de fazer aos seus contemporâneos um ríspido sermão
de 500 páginas sobre o estreitamento do espírito americano?
O crepúsculo de uma era
Bloom
lamenta que, nos EUA de final do século XX, “os alunos têm poderosas
imagens do que é um corpo perfeito e perseguem-no incessantemente.
Porém, por estarem privados de orientação literária, já não têm qualquer
imagem do que é uma alma perfeita e, por isso, não anseiam ter uma”
(pg. 84). É muito discutível o que é “uma alma perfeita”, mas percebe-se
onde Bloom quer chegar com esta dicotomia entre corpo e alma, que se
tornou ainda mais contrastada no nosso tempo, em que a publicidade, a
vulgarização da cirurgia estética, o Photoshop e as redes (ditas)
sociais fizeram do “corpo perfeito” não só a aspiração máxima como,
muitas vezes, a única aspiração de muitos indivíduos (jovens e menos
jovens). Quem se dê ao trabalho de consultar os websites das residências
universitárias de bom nível (“premium”, como agora se diz) constatará
que elas se ufanam do seu ginásio, da sua sauna, da sua piscina interior
aquecida, da sua sala de yoga, mas raramente mencionam a sua biblioteca
– e esta, quando existe, não é uma biblioteca no sentido original e
etimológico do termo, antes um espaço amplo, confortável e tranquilo
onde os estudantes podem reunir-se para fazer trabalhos de grupo, função
para a qual a existência de livros nas estantes é perfeitamente
dispensável, uma vez que tudo o que alguém alguma vez precisará de saber
está na Internet.
O
culto da boa forma física na Grécia Clássica está bem documentado na
estatuária e cerâmica: Ânfora grega de terracota, c. 530 a.C.
O
adágio “mente sã em corpo são” provém das Sátiras do poeta romano
Juvenal (“mens sana in corpore sano”), escritas na viragem dos séculos
I/II d.C., mas a sua origem remonta à Grécia clássica, pátria de
Sócrates e do ginásio – na verdade, mais de seiscentos anos antes de
Juvenal, já Tales de Mileto definira os requisitos da felicidade humana
como “um corpo saudável, um espírito desenvolto e uma natureza dócil”.
Hoje não faltam jovens com corpos que rivalizam com os da estatuária
grega, mas o estado geral das suas mentes é lastimoso, não só por, como
aponta Bloom, a sua mundividência já não ser balizada pelas grandes
obras da literatura e filosofia clássicas, como por as pressões da vida
moderna e as insuficiências e desfasamentos da família e da escola
modernas estarem a gerar nos jovens um novelo de ansiedades, medos e
inseguranças com que não são capazes de lidar, como atestam os
inquéritos sobre saúde mental, a multiplicação de casos de anorexia,
bulimia, pulsões suicidas, etc., e a desmedida procura de consultas de
psiquiatria (que começam na mais tenra idade).
Detalhe de “A Escola de Atenas” (1511), de Raffaello Sanzio: Platão (à esquerda) e Aristóteles
Independentemente
do que se pense sobre as teses defendidas em A destruição do espírito
americano, é indiscutível que, 36 anos após a edição original do livro,
quase tudo o que inquietava, abespinhava ou horrorizava Allan Bloom se
agravou. A Grécia e a Roma da Antiguidade Clássica cuja cultura
apaixonava Bloom e a que ele consagrou a vida não são mais do que
colunas de mármore tombadas na poeira, miradas com enfado numas férias
ou numa “escapadinha” de fim-de-semana, e os seus heróis, vilões,
estadistas, generais, exploradores, filósofos e eruditos, que, durante
tantos séculos, foram uma referência para a civilização ocidental,
caíram no esquecimento (ver introdução a O que é que os gregos alguma vez fizeram por nós?),
salvo um ou outro que foram “imortalizados” num blockbuster sádico e
sanguinolento de Hollywood ou num jogo de vídeo ainda mais sádico e
sanguinolento, e os grandes vultos da cultura alemã que dominaram a
paisagem intelectual europeia do século XVIII ao início do século XX não
gozam de maior visibilidade ou prestígio. O jovem universitário de hoje
está tão longe de esperar que as Cartas a Lucílio, de Séneca, possam
conter algum conselho válido para a sua vida, como de recorrer à ajuda
da avó para instalar a app do Tinder no seu smartphone.
O
Estudo de diagnóstico de necessidade de docentes de 2021 a 2030,
promovido em 2021 pelo Ministério da Educação, estima que, no dito
período, no 3.º ciclo do ensino básico e no ensino secundário sejam
necessários 2861 novos professores de Português (654 só em 2023), 1551 a
Matemática (407 só em 2023), 1253 a História (377 só em 2023) e 1311 a
Inglês (350 só em 2023); no fundo da lista estão os professores de
Alemão, cuja necessidade estimada é de 5 (cinco) para o período
2021-2030 e de 2 (dois) em 2023, e os professores de Latim & Grego,
cuja procura será de 1 (um) no período 2021-2030 e de 0 (zero) em 2023.
Neste último caso, restará o consolo de a procura quase nula não ir
gerar desemprego maciço, uma vez que, no ano lectivo de 2021/22, o
número total de inscritos nos mestrados de formação de professores de
Latim & Grego era de 4 (quatro).
Platão
e os deuses do Olimpo estão, pois, completamente “out” e Nietzsche,
que, celebremente, anunciou “a morte de Deus”, também se finou, mas Mick
Jagger continua a encher estádios e a pular e esbracejar em palco com
uma vitalidade desconforme com os seus 79 anos, o que reforça a suspeita
de que é o Diabo em forma de gente.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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