BLOG ORLANDO TAMBOSI
Há meses que defendo a necessidade de acabar com algumas linhas vermelhas artificiais no emprego de armamento de maior alcance. Até aqui não se pode ou não se quis fazê-lo. É urgente fazê-lo agora. Bruno Cardoso Reis para o Observador:
Há
quem fale em ofensiva ucraniana e há quem fale em contraofensiva
ucraniana. Quem tem razão? E isso faz alguma diferença ou é só um
preciosismo? Defendo que estamos a assistir a uma ofensiva ucraniana e
não a uma contraofensiva e isso faz muita diferença, que ajuda a deixar
clara a enorme ambição e dificuldade dos objetivos da Ucrânia nesta fase
crítica do combate à invasão russa. A história mostra-nos que é mais
difícil obter resultados rápidos com uma ofensiva contra linhas
defensivas consolidadas, do que com uma contraofensiva contra um
exército atacante relativamente esgotado.
A gíria
No
meio militar, como no meio académico, existe uma preocupação com a
correção terminológica que percebo possa ser irritante. É preciso
perceber que convém não haver equívocos em combate, e o rigor duma
análise passa pela precisão no uso dos conceitos. Também é verdade que
esta preocupação pode ser levada longe demais, até porque raramente há
conceitos completamente consensuais. Em muitas profissões e meios há, na
verdade, a utilização da linguagem sobretudo como marca de identidade.
Falar de certa maneira identifica-nos como parte do grupo. O vocabulário
e o sotaque “certo” mostram que somos alfacinhas ou portuenses, somos
realmente nativos do Minho ou do Alentejo. E o mesmo se passa com várias
profissões e a respetiva gíria.
Um
exemplo disso é a preocupação no Exército português em falar-se sempre
em carros de combate e nunca em tanques. Quando estou em instituições
militares portuguesas procuro respeitar esse vocabulário, até para
facilitar a comunicação. Mas para quem, como eu, fez boa parte da sua
formação nesta área fora de Portugal, essa é uma distinção pouca
substantiva. O termo carros de combate não existe em inglês: armoured
cars é sinónimo de veículos blindados. E na língua franca da segurança
internacional o termo tanks está perfeitamente consagrado. A ponto de os
britânicos até terem um Tank Museum e grande orgulho no Royal Tank Regiment, como a mais antiga unidade deste tipo no mundo.
Uma contraofensiva versus uma ofensiva
O
que distingue substantivamente uma contraofensiva de uma ofensiva
“normal”? Uma contraofensiva deve corresponder a um ataque em grande
escala do beligerante que até aí está essencialmente à defesa e espera
pelo culminar da ofensiva do outro lado. Ou seja, espera pelo momento em
que as forças do inimigo estão a atingir o limite do seu potencial
ofensivo, a ficar esgotadas em termos de resistência física e capacidade
logística. A primeira vantagem de uma contraofensiva é o choque
psicológico. O lado que está a atacar quer acreditar que está prestes a
quebrar completamente a resistência do inimigo. De repente, não só o
inimigo já não está a recuar, como, pelo contrário, está a atacar com
força renovada. A segunda vantagem de uma contraofensiva é tirar partido
do do facto de o atacante não ter tido tempo ou vontade de investir em
fortes posições defensivas, precisamente porque estava a avançar.
A
única zona da frente onde a Ucrânia poderia fazer uma contraofensiva
seria na zona de Bakhmut. Mas mesmo aí os avanços russos foram tão
lentos e tão contestados que a ideia de ausência de defesas preparadas
parece duvidosa. Mais, ao falar desta ofensiva ucraniana convém começar
por recordar a enorme assimetria de poder de base entre a Rússia e
Ucrânia: estamos a falar, respetivamente, da 11ª economia mundial e da
53ª. Estamos a falar de uma população russa em torno dos 140 milhões
face a pouco mais de 40 milhões de ucranianos. Estamos sobretudo a
falar, do lado ucraniano, da tentativa de romper as mais densas linhas
defensivas na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, sem uma clara
superioridade no domínio aéreo ou naval, bem pelo contrário. Os EUA no
Iraque, em 1991 e em 2003, por exemplo, puderam avançar com uma guerra
de movimentos sem grandes dificuldades, por contarem com uma enorme
vantagem a todos os níveis, do treino ao equipamento, e porque tinham
total domínio aéreo, permitindo identificar e destruir facilmente as
concentrações de forças do inimigo. As possibilidades de a Ucrânia
flanquear as linhas defensivas russas também são reduzidas, desde logo
por causa desta ausência de grandes capacidades navais ou aéreas. E
ficaram ainda mais reduzida pelo rebentamento da barragem de Kakhovka. O
que a Ucrânia tem conseguido fazer é raides usando milícias russas
anti-Putin para desviar algumas tropas russas da frente para proteger a
zona fronteiriça. Será que conseguirá multiplicar estes e outros
ataques, sabotagens, emboscadas na retaguarda do inimigo? Para já elas
não parecem ser numa escala decisiva, no sentido de precipitar aquilo
que seria o objetivo principal da Ucrânia – provocar o colapso da
resistência organizada russa.
O que se segue?
Nestas
duas últimas semanas estive em dois eventos com outros colegas
dedicados à história militar e aos estudos de segurança, no Instituto
Universitário Militar e na Universidade de Lancaster. Em ambos os casos
houve amplo consenso – o que é raro – no facto de que, se os ucranianos
tiverem um grande e rápido sucesso nesta sua ofensiva, estaremos perante
o maior feito militar desde a Segunda Guerra Mundial. O que nunca foi
realista foi pensar que uma guerra deste nível de intensidade, em que
estão em causa objetivos vitais para ambos os lados – a sobrevivência
duma Ucrânia livre, a sobrevivência do regime de Putin e de todos os que
vivem dele – seria resolvido sem uma fase de atrição, de desgaste, de
perdas significativas de vidas e de equipamentos.
A
Ucrânia tem a lei internacional do seu lado e já alcançou vitórias
importantes face a uma agressão brutal por uma grande potência nuclear.
Mas ter toda a razão não garante a vitória total numa guerra.
Não
estou com isto a decretar a derrota da ofensiva ucraniana. Recordo que
contrariei nas primeiras semanas da guerra os que declaravam uma clara
vitória da Rússia ou da Ucrânia, ou os que depois anunciavam a
inevitabilidade de um acordo de paz para a semana seguinte. Fui avisando
que era provável uma guerra prolongada. Não há nenhuma ofensiva na
história, numa frente tão ampla, cujo resultado tenha ficado claro e
irreversível nas primeiras horas ou mesmo nos primeiros dias. Para a
Ucrânia alcançar resultados significativos precisa de romper linhas
defensivas russas, e precisa de um colapso pelo menos parcial da frente,
para evitar cair numa atrição prolongada. Se não o conseguir nas
próximas semanas, o Ocidente deve ponderar mudar a sua abordagem. Há
meses que defendo a necessidade de reforçar o poder aéreo (e naval) da
Ucrânia – e não precisa ser com jatos ou fragatas – e de acabar com
algumas linhas vermelhas artificiais no emprego de armamento de maior
alcance. Até aqui não se pode ou não se quis fazê-lo. É urgente fazê-lo
agora. Seja para melhorar as possibilidades de sucesso da ofensiva
ucraniana, seja para reforçar a posição da Ucrânia em eventuais
negociações para as quais Kiev será provavelmente mais pressionada à
medida que o verão avance e o outono chegue.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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