No
calor do sertão, desafiando as adversidades do clima árido, Chanana,
uma exuberante flor resistente, desabrocha. Assim como esse florescer, a
saúde especializada no nordeste é um tesouro difícil de ser encontrado.
O acesso a consultas e procedimentos com médicos especialistas, em
muitos casos, parece ser uma jornada tão rara quanto a própria
existência da flor de Chanana.
A
luta pela própria saúde existe desde os primeiros dias de vida das
gêmeas Maria Júlia e Maria Vitória. “Após o parto, percebemos que uma
nasceu com o peso maior que a outra e isso me fez entender a importância
do acompanhamento delas com o pediatra até o fim da infância”, relatou
Taisla Nunes ao levar suas filhas em uma ação de saúde na sua cidade,
Petrolina (PE).
Apesar
da necessidade da consulta, as irmãs de 4 anos estavam há um ano e meio
na fila de regulação do Sistema Único de Saúde (SUS). “Devido à demora,
decidi verificar os custos de uma consulta particular e a opção mais
acessível que encontrei foi de 360 reais. Como tenho duas filhas, esse
valor não dá para mim”, destacou a mãe.
Além
das implicações financeiras, a espera prolongada na fila pode acarretar
complicações para a saúde das crianças, conforme destacado pela
pediatra Paula Guedes. Ela salienta que as irmãs estão em boa saúde, mas
a demora no atendimento, como vivenciado por essas meninas, pode
resultar em problemas que, se identificados e tratados precocemente,
poderiam ser prevenidos, mas, devido ao adiamento, podem exigir
abordagens terapêuticas mais invasivas.
O
desafio do acesso à saúde especializada enfrentado pelas gêmeas não é
exclusivo da infância e, na vida adulta, Anísio Lino dos Santos, 66
anos, residente na zona rural de Xique-Xique (BA), enfrentou suas
próprias batalhas. Após sofrer um AVC que o deixou com movimentos
paralisados, Anísio foi levado ao hospital, mas logo após a internação
enfrentou a ausência de acompanhamento.
“Me
sinto mais tranquila, pois com as explicações da doutora, consegui
entender a situação de saúde do meu pai e saber o que devo fazer daqui
para frente”, explicou sua filha, Michele Lino, que acompanhou a
consulta do pai realizada com Juliana Amm, médica neurologista
voluntária.
Paula
e Juliana atuam em especialidades completamente diferentes, mas têm
algo em comum: são médicas voluntárias que embarcaram em uma expedição
de saúde por 4 cidades do sertão nordestino para realizar atendimentos
gratuitos de acordo com as suas especialidades. Ao lado das médicas,
outros 87 voluntários de 27 cidades do Brasil embarcaram na ação com o
mesmo propósito.
Chamados de SASers, por integrarem a SAS Brasil,
uma startup social que desde 2013 leva saúde especializada de forma
humanizada e gratuita por todo o país, os voluntários tiveram uma
intensa jornada. No total, quatro cidades receberam a estrutura
itinerante da organização: Petrolina (PE), Xique Xique (BA), Crato e
Cruz (CE), que juntas compuseram uma das maiores expedições da
instituição, tanto em impacto quanto em estrutura.
Impacto e acolhimento para quem mais precisa
A
ação aconteceu durante o Sertões, o maior rally do mundo, entre os dias
8 e 19 de agosto. Enquanto os pilotos levantam poeira em uma competição
repleta de aventura, a startup social realizou mais de 16 mil
atendimentos médicos gratuitos com consultas, exames, procedimentos e
pequenas cirurgias.
O
objetivo foi de levar 12 especialidades médicas para os pacientes que
aguardavam há muito tempo na fila do SUS, já que segundo a Demografia
Médica Brasileira de 2023, apesar do aumento do número de médicos no
país, as desigualdades de distribuição e os problemas de assistência
aumentam na região.
Um
paralelo entre a Bahia, estado com a quinta menor razão médico por
habitantes do país, e o Distrito Federal, com a maior concentração,
ilustra bem as desigualdades de distribuição. A Bahia tem 1,8% dos
médicos do Brasil, enquanto sua população equivale a 7% do total de
habitantes do país. Já o Distrito Federal, com 2,9% dos médicos, conta
com 1,5% da população nacional. Isso acontece especialmente em regiões
mais afastadas dos grandes centros urbanos, onde normalmente as
estruturas para o atendimento à população são mais precárias.
Um
exemplo prático dessa realidade é a cidade de Crato, situada no Cariri
cearense. “Mesmo buscando soluções, infelizmente não temos um
oftalmopediatra em nossa cidade para atender às necessidades das
crianças que precisam de cuidados com a saúde visual." relatou Marina
Solano, secretária de saúde da cidade de Crato (CE), ao visitar a
expedição da organização. A ação itinerante levou dentre suas atividades
o projeto Ver Magia, que promove atendimento oftalmológico e doação de
óculos para as crianças e o Sorrisaria, que oferece atendimento
odontológico e educação em saúde bucal.
"Uma
ação como essa proporciona que as crianças tenham uma melhor qualidade
de vida e até mesmo de desempenho escolar”, ressaltou a secretária ao
acompanhar de perto os atendimentos realizados na localidade. Para que
todos esses atendimentos fossem realizados, os médicos se dedicaram
incansavelmente. Raquel Carvalho, médica dermatologista, trabalhou
durante 12 horas seguidas, durante dois dias, sem pausa para almoço,
atendendo em Xique-Xique (BA). Sua dedicação fez a diferença na vida de
muitos pacientes, incluindo Dona Ana.
Ana
Gonçalves Desidério, de 75 anos, realizou a sua primeira consulta
dermatológica em toda a sua vida. “Todas as minhas cinco irmãs também
têm problemas de pele”, conta a paciente. Mas a senhora teve um destino
diferente: consultou-se com a Dra. Raquel Carvalho e passou por 7
procedimentos dermatológicos, incluindo a retirada de um possível câncer
de pele.
“Apesar
do cansaço, o cuidado de cada paciente comigo foi o motivo de trabalhar
com tanta intensidade na expedição. Saber que posso ajudá-los a tratar
lesões e problemas como câncer de pele em uma população que muitas vezes
nunca foi ao dermatologista é recompensador. Volto para casa com a
sensação de dever cumprido e com o carinho de todos os pacientes que
atendi”, finalizou Raquel Carvalho na sua despedida da expedição.
Essa
jornada de cuidado e solidariedade não apenas proporcionou alívio
imediato às pessoas que dela participaram, mas também serviu como um
lembrete de que, assim como a Flor de Chanana, a saúde especializada
pode florescer mesmo em ambientes áridos e desafiadores.
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