A leniência com o crime destrói o tecido social de um país e é mazela que merece tanta atenção quanto problemas socioeconômicos como o desemprego; é com preocupação que o Brasil vê mais um ano perdido no combate à corrupção. Editorial da Gazeta do Povo:
Quando
deu o voto decisivo para acabar com a prisão após condenação em segunda
instância no Brasil, no fim de 2019, o ministro do STF Dias Toffoli
deixou a responsabilidade para o Congresso Nacional: se os parlamentares
quisessem, poderiam alterar a Constituição para deixar bem claro a
partir de que ponto poderia ocorrer o início do cumprimento da pena. Em
reação ao voto de Toffoli, surgiram vários projetos de lei e PECs para
permitir a prisão em segunda instância. Passou o ano de 2020 sem que o
assunto caminhasse, o que em parte se explica pela novidade da pandemia;
e 2021 termina da forma como começou, apesar de um fiapo de esperança
que o país chegou a ter agora neste fim de ano.
Aprovar
a prisão em segunda instância, infelizmente, não era prioridade nem de
Executivo, nem de Legislativo: no começo do ano, o governo federal
enviou ao Congresso uma relação de 35 assuntos que gostaria de ver
aprovados em 2021 e, apesar da extensão da lista, a prisão em segunda
instância não estava entre eles. Da mesma forma, nem Arthur Lira (PP-AL)
nem Rodrigo Pacheco (PSD-MG) usaram o tema como forma de angariar votos
nas disputas que fizeram deles os presidentes da Câmara e do Senado,
respectivamente, ocorridas em fevereiro de 2021. Apenas a insistência
dos parlamentares realmente comprometidos com o combate à corrupção
conseguiria fazer andar algum dos projetos de lei ou PECs propostos para
instaurar a prisão em segunda instância, mas mesmo eles chegaram a
julgar, em algumas ocasiões, que o momento político não era adequado
porque outros temas estavam monopolizando a atenção do Congresso e da
opinião pública.
Quando
finalmente alguns temas como a CPI da Covid e a PEC do Voto Impresso
saíram da frente, a comissão especial da PEC 199/19 – o texto que acabou
se tornando o preferido dos congressistas para conseguir trazer de
volta a prisão em segunda instância – viu uma janela de oportunidade
para fazer caminhar o texto, aprová-lo e finalmente submetê-lo ao
plenário da Câmara. Mas uma jogada regimental de última hora travou
tudo: em 8 de dezembro, quando a comissão votaria o relatório de Fábio
Trad (PSD-MS), PSC, MDB, DEM, PT, PL, Republicanos e PP trocaram membros
do colegiado. “Parlamentares que eram favoráveis à PEC foram,
coincidentemente, substituídos por parlamentares que são contrários à
PEC”, resumiu o deputado Gilson Marques (Novo-SC). Como havia sério
risco de derrota do texto, Trad retirou seu parecer, alegando que o
relatório não tinha sido discutido com aqueles que haveriam de votá-lo.
O
ano termina, portanto, sem nenhuma definição quanto ao futuro da PEC
199 e com mais uma demonstração de que há, na Câmara dos Deputados, um
grupo disposto a usar sua força para que tudo permaneça como está,
atrapalhando qualquer iniciativa no Legislativo que ajude no combate à
corrupção, uma das principais áreas a se beneficiar com o retorno da
prisão em segunda instância. Continua em curso no Congresso, portanto,
uma das estratégias para a destruição da Operação Lava Jato e de seu
legado: rejeitar os projetos de lei que fortaleçam a investigação e a
punição dos crimes de colarinho branco, enquanto se aprovam aqueles
projetos que dificultam a vida de promotores, procuradores e juízes.
A
“prisão em quarta instância” é uma jabuticaba brasileira que destoa
completamente da prática de vários países desenvolvidos, que levam seus
criminosos à prisão às vezes até mesmo depois da condenação em primeira
instância, sem que com isso se considere haver qualquer violação do
direito de defesa ou do devido processo legal. No caso brasileiro, é
importante sempre recordar que a análise da culpabilidade do réu termina
na segunda instância – os tribunais superiores verificam apenas
questões processuais, não se o réu é culpado ou inocente; tanto é assim
que eles não podem inocentar ninguém, cabendo-lhes no máximo determinar o
reinício do processo quando encontram alguma irregularidade. Além
disso, a prisão em segunda instância vigorou no Brasil pela maior parte
do período pós-Constituição de 1988, com aval do próprio Supremo, que
havia decidido por sua constitucionalidade já em 1991; a situação atual é
uma exceção que valeu entre 2009 e 2016, e novamente a partir do fim de
2019.
O
modelo processual atual brasileiro favorece a impunidade: criminosos
que conseguem dominar o labirinto de ações e recursos adiam ao máximo o
trânsito em julgado de suas sentenças; sabedores de que o dia em que
terão de ir para trás das grades está distante, ou jamais virá, eles se
veem estimulados a seguir delinquindo, em vez de cooperar com as
autoridades. A leniência com o crime destrói o tecido social de um país e
é mazela que merece tanta atenção quanto problemas socioeconômicos como
o desemprego; é com preocupação que o Brasil vê mais um ano perdido no
combate à corrupção.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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