Texto de Stuart Ritchie, extraído de seu livro recém-lançado nos EUA, com tradução de Desidério Murcho para Crítica na Rede:
Acabei
de escrever o livro Science Fictions (Nova Iorque: Metropolitan Books,
2020) no início de 2020, razão pela qual só incluí uma breve menção ao
que acabou por se tornar a maior crónica científica das nossas vidas: a
pandemia da COVID-19. Desde a Guerra Fria e da Corrida Espacial que não
ouvíamos falar tanto de ciência diariamente, e desde essa altura que não
se depositavam tantas esperanças na ciência. Felizmente para o Science
Fictions — muito muito infelizmente para o mundo — a ciência da pandemia
sofreu precisamente dos mesmos defeitos que expus no livro.
Não
penso que se trate apenas de viés de confirmação da minha parte: a
mesma história que contei no Epílogo, de uma série de descobertas
espantosas poluídas por investigação enganadora, enviesada e mal feita,
desenrolou-se mais ou menos da mesma maneira durante a pandemia — mas
muito mais depressa do que o habitual. Por um lado, houve progressos
incríveis: por exemplo, as vacinas ARNm, que irão salvar inúmeras vidas e
permitir avanços em muitas outras doenças, além da COVID-19.1
Por outro, vimos rimas de artigos científicos de pouca qualidade, que
espalharam a confusão entre o pessoal médico, desperdiçaram tempo e
dinheiro, e alimentaram quem assumiu uma postura de “contracorrente”
quanto à seriedade do vírus.
Haverá
quem escreva livros inteiros para debater a ciência da pandemia: o
índice de mortalidade do vírus e o seu modo de transmissão, o momento em
que se impôs o confinamento (e a ideia de o fazer), o significado de
“imunidade de grupo”, o encerramento das escolas, o uso de máscaras e as
vantagens e desvantagens das várias vacinas… tudo isto despoletou
acrimónia entre os cientistas.2
Para já, consideremos brevemente uma disputa científica na qual nenhum
dos lados se saiu muito bem, e que ilustra vários dos problemas
abordados no meu livro. É o debate sobre a hidroxicloroquina.3
A
hidroxicloroquina é uma droga que certamente funciona — mas para a
malária. A questão, que surgiu desde cedo na pandemia, era se poderia
funcionar também para a COVID-19. Em Março de 2020, um estudo do
microbiólogo e médico Didier Raoult, da Universidade de Aix-Marseille, e
dos seus colegas, mostrou aparentemente um “índice de cura de 100%” de
pacientes com o coronavírus que ingeriram a droga, juntamente com
azitromicina, que é um antibiótico.4
Raoult recebeu a visita, no seu laboratório, do presidente Macron; do
outro lado do Atlântico, o presidente Trump aclamou a hidroxicloroquina
por ser um “divisor de águas”.5
Isto
era um exagero, é claro. Na verdade, não só o estudo reprovou nos
importantes critérios discutidos no meu livro (não era um estudo cego;
não foi apropriadamente aleatorizado; e a dimensão da amostra era
minúscula), como tinha algumas graves deficiências só suas. Talvez a
mais importante das quais seja o facto de, apesar de três pacientes com
COVID-19, e a quem a hidroxicloroquina foi ministrada, terem acabado nos
cuidados intensivos, tendo um deles morrido, os cientistas não
revelaram estes resultados, dado terem observado exclusivamente amostras
de compressas que mediam a quantidade de vírus presente nos narizes de
cada paciente. Nas palavras da jornalista Carrie Wong, “Dado que os
[quatro] pacientes estavam nos cuidados intensivos, ou mortos, não se
podia tirar amostras deles, de maneira que ficaram de fora da análise
final”.6 E pronto: os cientistas conseguiram dizer que nos dados que analisaram, o tratamento funcionava maravilhosamente bem.7
Apesar
deste golpe de magia, o estudo foi publicado, e originou uma corrida à
investigação da hidroxicloroquina: a dado ponto, centenas de testes
independentes — de qualidade muitíssimo variável — estavam em curso por
todo o mundo, para tentar compreender se a droga realmente era uma cura
milagrosa.8
(Podemos agora afirmar, a propósito, que a conclusão dos maiores e mais
robustos testes entre eles é que a hidroxicloroquina não funciona para
tratar a COVID-19.)9
Um dos estudos, em resposta à investigação de Raoult, foi feito pelos
cientistas do Hospital de Brigham de Mulheres, que faz parte da Escola
de Medicina de Harvard. Juntamente com uma companhia de análise médica
denominada Surgisphere, que tinha acesso a uma base de dados sobre
muitos milhares de pacientes de COVID-19 por todo o mundo. Sobre a
hidroxicloroquina, os dados eram claros, e não era apenas que «a
hidroxicloroquina não funciona». Na verdade, os pacientes que eram
tratados com a droga tinham maior probabilidade de morrer. Tratou-se de
um estudo de correlação, e não de um teste aleatório, mas, apesar disso,
os resultados pareciam importantes — suficientemente importantes para
serem publicados numa revista do prestígio da Lancet, em Maio de 2020.10
Foi
uma grande notícia, de uma fonte aparentemente fidedigna. Em resposta, a
Organização Mundial de Saúde interrompeu os testes com a
hidroxicloroquina, e a França mudou as recomendações dadas aos médicos.11
Mas, como outros estudos muito ventilados mencionados no meu livro, o
facto de as atenções do mundo se terem aí concentrado suscitou questões
sérias quando ao estudo de Harvard. Como foi exatamente que uma
companhia tão pequena, a Surgisphere, com poucos empregados, conseguiu
deitar a mão a tantos dados, de tantos hospitais, tão depressa?12
Por que razão não foram esses hospitais mencionados ou reconhecidos no
artigo? E não são os efeitos, pensando bem, algo excessivamente
pronunciados para que sejam realistas? Os analistas de dados deitaram-se
aos números e encontraram algumas discrepâncias estranhas13
Eis
onde se descobriu a negligência. Ao enfrentar as perguntas que lhes
foram feitas, os cientistas de Harvard admitiram que não tinham de facto
visto os dados. Tinham-se limitado a confiar na Surgisphere para lhes
fornecer a análise e, ao ver os resultados, puseram alegremente os seus
nomes no estudo, antes de o enviarem para a Lancet. A Surgisphere
recusava-se agora a deixá-los ver os dados brutos, dizendo que isso
violava os acordos de confidencialidade que eles tinham. Só havia uma
opção: a Lancet tinha de anular o artigo — mal tendo passado duas
semanas desde a publicação.14
São
os dados questionáveis da Surgisphere um exemplo de fraude científica?
Ao contrário de muitos outros casos, não houve ainda uma investigação
formal da base de dados da Surgisphere (é mais difícil fazê-lo porque se
trata de uma companhia privada, e não de uma universidade).
Simplesmente não sabemos se foram terrivelmente incompetentes ou se se
enganaram, ou se algo de mais sinistro estava em jogo. Independentemente
disso, a história é um exemplo clássico de como a corrida para publicar
— não apenas para preencher o CV, mas também para fazer uma descoberta
proveitosa relacionada com a pandemia — pode levar até os melhores
investigadores e as melhores revistas a fazerem figura de parvos.
Talvez
a Lancet seja de ora em diante menos crédula. Depois do fiasco da
Surgisphere, anunciaram planos para mudar a maneira como fazem a revisão
entre colegas. A partir de agora, quando recebem estudos que usam bases
de dados de grande dimensão, a revista passa a garantir que um dos
revisores tem competência nos géneros de análises exigidas.15
Seria de esperar que este tipo de política tivesse já sido adotada numa
revista de tão “elevado impacto”, mas mais vale tarde do que nunca.
No
momento em que escrevo estas palavras, Didier Raoult enfrenta um painel
disciplinar depois de uma série de queixas de colegas franceses,
clínicos que consideram que a sua promoção da hidroxicloroquina foi
“imoral”.16
Caso acabe por ser censurado, será uma valente queda de um dos mais
citados cientistas do mundo, com um imenso índice h de 187 e uma lista
sem fim de publicações (por exemplo, foi coautor de um terço de todos os
728 artigos publicados na história de uma revista específica de
microbiologia).17
Caso o leitor se pergunte como um cientista que pode orgulhar-se de ter
um CV tão impressionante pode mesmo assim entregar-se a investigação de
fraca qualidade e mais do que exagerada, é porque não leu o meu livro.
No meio de uma pandemia, ciência mal feita é a última coisa de que precisamos.18
Mas aqui está uma história em que investigadores proeminentes e
credenciados de instituições respeitadas publicaram artigos em revistas
de “destaque mundial” que nos empurraram para direções completamente
erradas. Estudos mal concebidos e que não passam de desperdício; dados
duvidosos; afirmações estrondosas que as provas não sustentam; uma
confiança entre cientistas a roçar a credulidade; e não só —
dificilmente poderia eu ter pedido uma melhor recapitulação dos temas do
meu livro. Apesar de isso não me dar qualquer satisfação.
Em
vez de o processo científico funcionar como deveria, caçando erros
implacavelmente e aproximando-se da verdade, no caso da
hidroxicloroquina deixou que a porta aberta deixasse entrar aqueles
erros na bibliografia, de onde saltaram para a mesa de trabalho dos
políticos de topo. E, enquanto isso, as pessoas que a ciência deveria
supostamente beneficiar — os pacientes com COVID-19, que morriam aos
milhares, e cujos médicos precisavam desesperadamente de informação
fidedigna quanto aos tratamentos — ficaram catastroficamente
dececionadas.
Apesar
de os erros na investigação da COVID-19 constituírem a ilustração mais
incisiva dos problemas discutidos em Science Fictions, ao longo do
último ano não houve falta de má ciência sem ser sobre a pandemia.
Estivesse eu agora a escrever o livro, e poderia abordar o caso do
engenheiro de investigação Ali Nazari, que ficou com o quinto lugar que
Diederik Stapel detinha no Retraction Watch Leaderboard, depois de ver
61 artigos anulados (em contraste com os 58 de Stapel) devido a plágio
prolífico e a fingidas revisões entre colegas.19
Ou como os investigadores continuaram a construir modelos de como o
p-hacking e o viés de publicação distorcem a bibliografia científica.20
Ou como um campo científico imensamente excitante, como a futurista
computação quântica, passa por uma crise de reprodutibilidade.21
Ou a história surreal de como um cardiologista publicou dezanove
artigos na revista científica Early Human Development sobre o Star Trek.22
E
ao passo que estes exemplos poderão não ter tanto impacto quanto a saga
da hidroxicloroquina, ilustram que em quase todo o lado para onde se
olhe na ciência se encontra os mesmos problemas de fraude, viés,
negligência e exagero — assim como os incentivos perversos que estão na
sua origem.
Encontrar
maneiras eficazes para corrigir o nosso sistema científico deveria ser
uma prioridade primeira em todas as áreas de investigação. A esperança é
que, dado estarmos todos no mesmo barco, consigamos aprender uns com os
outros.
Stuart Ritchie
Science Fictions: How Fraud, Bias, Negligence, and Hype Undermine the Search for Truth (Nova Iorque: Metropolitan Books, 2020)
Notas
1“Moderna Provides Business Update and Announces Three New Development Programs in Infectious Disease Vaccines” Moderna, 11 Jan. 2021. ↩︎
2No início de 2021, eu e alguns amigos fizemos o Antivírus,
um website com uma lista de Perguntas Frequentes sobre a COVID-19 que
visa desconstruir algumas das piores desinformações que estão sendo
veiculadas durante a pandemia. ↩︎
3Discuti
a crónica da hidroxicloroquina, juntamente com várias outras fábulas da
pandemia do coronavírus, e que podem servir de lição, em Stuart
Ritchie, “The Great Reinforcer”, Works in Progress 3 (Fev. 2021). ↩︎
4Philippe Gautret et al., “Hydroxychloroquine and Azithromycin as a Treatment of COVID-19: Results of an Open-label Non-randomized Clinical Trial”, International Journal of Antimicrobial Agents 56, n.º 5 (Julho de 2020); 105949. ↩︎
5“Macron Visits Marseille Doctor Behind Hydroxychloroquine Coronavirus “Cure” Touted by Trump”, France 24, 9 de Abril de 2020; “Trump Announces Potential “Game Changer” on Drugs to Treat Novel Coronavirus, But FDA Says More Study is Needed”, ABC News, 19 de Março de 2020. ↩︎
6Julia Carrie Wong, “Hydroxychloroquine: How an Unproven Drug Became Trump’s Coronavirus “Miracle Cure””, Guardian, 7 de Abril de 2020. ↩︎
7No seu blog, Elisabeth Bik identificou muitos outros problemas no artigo: Elisabeth Bik, “Thoughts on the Gautret et al. Paper About Hydroxychloroquine and Azithromycin Treatment of COVID-19 Infections”, Science Integrity Digest, 24 de Março de 2020; veja-se também Oliver James Hulme et al., “A Bayesian Reanalysis of the Effects of Hydroxychloroquine and Azithromycin on Viral Carriage in Patients with COVID-19”, PLOS ONE 16, no. 2 (19 Fev. 2021): e0245048. ↩︎
8Paul P. Glasziou et al., “Waste in Covid-19 Research”, BMJ 369 (12 de Maio de 2020): m1847. ↩︎
9Um exemplo é o RECOVERY, um imenso teste de alta qualidade. The RECOVERY Collaborative Group, “Effect of Hydroxychloroquine in Hospitalized Patients with Covid-19”, New England Journal of Medicine, 383 (19 Nov. 2020): pp. 2030–2040. ↩︎
10Mandeep R. Mehra et al., “Hydroxychloroquine or Chloroquine With or Without a Macrolide for Treatment of COVID-19: A Multinational Registry Analysis”, Lancet (22 de Maio de 2020). ↩︎
11Jason Beaubien, “WHO Halts Hydroxychloroquine Over Safety Concerns”, NPR 12Coronavirus Updates, 25 de Maio de 2020; Alex Ledsom, “France Says No to Hydroxychloroquine Prescription After Lancet Study”, Forbes, 26 de Maio de 2020. ↩︎
13Melissa Davey et al., “Surgisphere: Governments and WHO Changed Covid-19 Policy Based on Suspect Data from Tiny US Company”, Guardian, 3 de Junho de 2020. ↩︎
15Mandeep R. Mehra et al., “Retraction
– Hydroxychloroquine or Chloroquine With or Without a Macrolide for
Treatment of COVID-19: A Multinational Registry Analysis”, Lancet
395, no. 10240 (13 de Junho de 2020): p. 1820. A revista New England
Journal of Medicine anulou também ao mesmo tempo um artigo baseado na
Surgisphere: Mandeep R. Mehra et al., “Retraction: Cardiovascular Disease, Drug Therapy, and Mortality in Covid-19. N Engl J Med. DOI: 10.1056/NEJMoa2007621”, New England Journal of Medicine 382, (25 de Junho de 2020): p. 2582. ↩︎
16The Editors of the Lancet Group, “Learning From a Retraction”, Lancet 396, no. 10257 (10 Out. 2020): p. 1056. ↩︎
17AFP, “French Professor Faces Disciplinary Case Over Hydroxychloroquine Claims”, Guardian, 12 Nov. 2020. ↩︎
18Cathleen O’Grady, “Journals Singled Out For Favoritism”, Science, 25 Fev. 2021; o perfil académico de Raoult no Google Scholar, que tem o seu índice h e outras informações, encontra-se aqui. ↩︎
19Para
um resumo de mais ciência mal feita sobre a pandemia, juntamente com
algumas maneiras de isso se ter talvez conseguido evitar, veja-se Lonni
Besançon et al., “Open Science Saves Lives: Lessons from the COVID-19 Pandemic”, bioRxiv. ↩︎
20Adam Marcus, “Researcher to Overtake Diederik Stapel on the Retraction Watch Leaderboard, with 61”, Retraction Watch, 2 Fev. 2021. ↩︎
21Malte Friese e Julius Frankenbach, “p-Hacking and Publication Bias Interact to Distort Meta-analytic Effect Size Estimates”, Psychological Methods, 25, n.º 4 (Ago. 2020): pp. 456–471. ↩︎
22Sergey Frolov, “Quantum Computing’s Reproducibility Crisis: Majorana Fermions”, Nature 592 (12 Abr. 2021): pp. 350–352. ↩︎
23Adam Marcus, “Elsevier Looking Into “Very Serious Concerns” after Student Calls Out Journal For Fleet of Star Trek Articles, Other Issues”, Retraction Watch, 10 Dez. 2020. ↩︎
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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