Uma resposta à Rússia enquanto União Europeia separada irá beneficiar muito os russos, porque irá impedir uma atuação concreta dos EUA e da NATO relativamente a problemas perpetuados por Moscou. Miguel Braz para o Observador:
As
relações entre russos e europeus foram sempre complicadas. A Rússia não
é um país confiável, sendo fácil perceber o porquê. A Alemanha invadiu
duas vezes a Rússia no Séc. XX, a França invadiu uma vez no Séc. XIX e
antes disso, a Suécia no Séc. XVIII. Essas não foram simples incursões,
tinham sim o principal objetivo de capturar o heartland da Rússia
permanentemente. A Rússia representa portanto um animal assustado,
atormentado pela má memória geopolítica, o que a torna perigosa.
Para
compreender a Rússia atual deveremos analisar o mundo pela perspetiva
do seu presidente Vladimir Putin. Para Putin o colapso da União
Soviética foi uma catástrofe e um erro histórico (não o colapso do
comunismo, que é irrelevante para Putin, mas sim a desfragmentação da
União Soviética). A construção original do espaço da União Soviética
pouco teve a ver com o comunismo, era sim uma ideia arquitetada pelos
Czars, um espaço vital que protegia o Império Russo de invasores
externos. É preciso compreender primeiro a geografia existente entre
Moscovo e Berlim para depois compreendermos os receios dos russos. São
as enormes planícies nessas regiões que facilitam a movimentação de
exércitos que podem ameaçar a existência da Rússia. Esta geografia
facilitadora é a razão para as continuas invasões de exércitos europeus
para dentro do heartland russo.
O
colapso da União Soviética fez com que a região tampão entre a Europa e
Moscovo deixasse de existir. Bielorrússia, Ucrânia e Moldova (e outros
proxys) tornaram-se independentes, e a fronteira russa recuou
dramaticamente. Havia pouco a fazer, a Rússia implodiu fruto do seu
modelo económico insustentável e do continuo gasto de recursos numa
guerra que não poderia ser vencida, contra uma superpotência industrial,
como era os EUA. No entanto, a Rússia poderia viver com essa perda,
caso os europeus e americanos não controlassem essa região. A existência
de uma buffer zone poderia assim surgir, com os governos desses países a
pender para a Rússia, ou então pelo menos, a constituição de governos
neutrais. O que não poderia acontecer foi realmente o que aconteceu,
muitos dos antigos satélites soviéticos acabaram por se alinhar com o
bloco ocidental, entrando na NATO ou na União Europeia (ou nos 2 em
simultâneo). Os bálticos Estónia, Letónia e Lituânia são hoje membros da
UE e NATO, tal como Polónia, Eslováquia, Eslovénia, República Checa,
Hungria, Roménia e Bulgária, todos países que gravitavam na anterior
esfera soviética, atrás da chamada Cortina de Ferro.
Após
a queda do muro de Berlim, ao longo de 20 anos, a fronteira contraiu
milhares de km a caminho de Moscovo. A Ucrânia passou assim a ter um
interesse vital para os interesses geopolíticos russos, o que nos levou à
revolução ucraniana de 2014 e a consequente anexação da Crimeia. Putin
sabe da importância do espaço vital que o separa do bloco ocidental, e
nunca poderia permitir que a Ucrânia entrasse na UE. É mais que possível
que a anexação de grande parte do país esteja nos planos de Putin,
pelas movimentações militares que observamos nos últimos meses,
principalmente em Donbas. Nos media russos ouvimos constantemente
referências à “reintegração” da Ucrânia, aliás como foi diretamente
mencionado num artigo oficial de Vladimir Putin em julho passado. A
Rússia está a ser incentivada a manobras cada vez mais extremas devido a
uma série de acontecimentos internacionais, que podem dar uma imagem de
um ocidente fraco. Falamos da retirada caótica do Afeganistão por
exemplo. Algo que os países ocidentais devem entender é que única
linguagem que os russos entendem é a da força, não a das palavras, ou de
qualquer soft power. Prova disso foi a retirada imediata de exércitos
russos em “exercícios” na fronteira da Ucrânia no passado Abril, logo
que foram lançados na região esquadrões de caças da Força Aérea
Americana, com capacidade nuclear. Esquadrões esses que estavam
estacionados na Polónia.
Neste
momento, para além da Ucrânia existem 2 regiões vitais para a Rússia,
que representam as ultimas chances para conseguir com que a história
volte ao que era antes. Falamos de uma região especifica na Moldova
chamada Transnistria, que tem uma maioria demográfica russa, e falamos
também da Bielorrússia. Na primeira, os russos há muito que pressionam
uma possível anexação, sendo impulsionados por uma maioria russa na
região, que já teve referendos sobre essa questão (com a esmagadora
maioria a querer entrar na Federação Russa). No que toca a Bielorrússia,
Putin estará incondicionalmente com o ditador bielorrusso Lukashenko, o
que é facilmente observável, tendo em conta as ações cada vez mais
afirmativas e confrontacionais da Bielorrússia em relação à UE e aos
americanos (exemplo do voo desviado da Ryanair). A Bielorrússia é um
país pobre, que não poderia se dar ao luxo de tais confrontações caso
não tivesse um acordo em absoluto com Putin.
Mas
foi a intenção da Ucrânia entrar na UE que foi a gota de água
relativamente ao confronto da Rússia com o ocidente. Os russos acreditam
que o ocidente quebrou um acordo implícito na região, o de neutralidade
de uma buffer zone. Outros aspectos pioraram ainda mais a relação, como
o facto da economia russa ter entrado em forte detioração na segunda
década do Séc.XXI. Essa situação fez com que Putin tivesse de encontrar
alternativas para continuar no poder. O retorno de uma grande Rússia e
confrontos internacionais para entreter os russos parecia algo que
poderia resultar. Adicionalmente, a falta de portos de águas quentes
também fez com que Putin olhasse novamente para os antigos territórios
soviéticos a sul, como é o exemplo da Crimeia e o seu Porto de
Sebastopol.
Vladimir
Putin não tem outra hipótese se não continuar a pressionar para o
ocidente, porque foi isso que a maioria dos lideres Czars fizeram no
passado. A nível da sua vida privada, Putin também sabe que tem de o
continuar a fazer, pois a hipótese de sair tranquilamente do poder para
uma reforma é completamente impossível.
Assim,
a grande questão que se impõe é, o que é que a Europa e os EUA irão
fazer quanto a isso? A relação entre UE e EUA será central na contenção
da Rússia. Mais que isso, a própria caracterização do que é a Europa ou a
UE será muito importante. Como sabemos, a UE não tem política externa
comum sem ser para assuntos de comércio. Uma resposta à Rússia enquanto
Europa separada irá beneficiar muito os russos, porque irá impedir uma
atuação concreta dos EUA e da NATO relativamente a problemas perpetuados
pela Rússia, que irão seguramente continuar a surgir. A NATO é um
organismo que funciona com unanimidade, e os EUA não irão atuar sem
coordenação concreta dos europeus. Outra desvantagem é o facto da UE ser
adversa a questões de segurança que prejudiquem a economia. Essa é a
razão pelo facto da UE ter ficado “chateada” pelo incidente da Ryanair
na Bielorrússia ou com a situação na Crimeia, mas não o suficiente para
entrar num confronto direto com a Rússia, tanto militarmente, como
economicamente (não esquecendo que muitos países europeus, inclusive a
Alemanha, dependem do gás russo). A fragmentação e os diferentes
interesses dentro da própria UE impossibilitam a atuação da NATO, e sem
esses interesses alinhados, os EUA apenas irão atuar separadamente, país
a país. Tal atuação será mais demorada, menos assertiva, apenas
incentivando ainda mais os russos, cada vez mais convencidos da tal
fraqueza ocidental.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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