Quarenta e seis anos depois, é fazendo as contas ao estado deste país adiado que se deve olhar, lembrar e julgar o 25 de Novembro. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Os
vencedores têm geralmente o cuidado de escrever a História. Pelo menos
nos tempos que se seguem à vitória. Depois, com o passar de outros
tempos e depois das desilusões dos vencedores que vão ficando pelo
caminho, esboça-se uma visão alternativa, uma “revisão histórica”, uma
outra verdade ou realidade.
Sempre
assim foi: os homens, mesmo os tiranos, sempre souberam a importância
da fama, boa ou má, e sempre cuidaram da própria história, para que ela
inspirasse a História ou até para ela se pudesse vir a misturar
indistintamente com a História.
Talvez
por isso Marx nos tenha alertado para a importância da história de quem
conta a História, a história do historiador – pesando-lhe os
preconceitos, os interesses, as afinidades, as devoções e as
dependências ideológicas, sociais e familiares, a relação com os
acontecimentos, os protagonistas e as situações.
Um
exemplo clássico da influência na História dos interesses do
historiador é a famosa De Vita Caesarum, de Suetónio, que viveu na
transição do primeiro para o segundo século da nossa Era. Pertencendo à
classe dos equites, uma espécie de classe média romana, entre a
aristocracia senatorial e a plebe, Suetónio foi protegido por membros da
classe senatorial, e traduziu, nos seus escritos, algum do rancor dos
seus protectores pelos imperadores. Uma das vítimas dessa damnatio
memoriae foi Domiciano, que, por sua vez, vitimou muitos cristãos e não
seria grande peça. De qualquer modo, Suetónio retratou-o de forma
exacerbada e interessada como sedento de protagonismo, impulsivo,
imaturo e em guerra permanente com seu irmão mais velho, Tito, contra
quem nunca parara de conspirar. Uma vez no poder, fora um Domiciano
hipócrita, corrupto e sanguinário que perseguiria a classe senatorial
com “uma crueldade selvagem”, esbanjando o erário público em grandes
espectáculos de massas. O cristãos também foram grandes vítimas de
Domiciano que, de qualquer modo, não seria grande peça
A
Vida dos Doze Césares, a principal fonte da percepção futura dos
primeiros imperadores de Roma, viria assim a basear-se no testemunho
interessado de Suétónio. E a maioria das histórias fixadas para a
posteridade vinham de um anedotário hostil, fruto do “pensamento
correcto” então dominante na sociedade romana.
Estas
histórias da História e a facilidade com que hoje uma opinião pública
cada vez com mais informação e menos formação as recebe obrigam à
revisão crítica das fontes: documentos e pessoas, fake news e
polígrafos, noticiadores e comentadores ditos “objectivos”.
Na
Europa, à volta dos grandes movimentos da Modernidade, da Reforma à
Revolução Francesa e às revoluções totalitárias do século XX, surgiram
inúmeras lendas negras. Os ingleses, na sua rivalidade com a Espanha dos
Áustrias, construíram e disseminaram uma imagem tenebrosa dos povos
católicos do Sul, detentores de retrógrados “impérios pré-industriais”
que, na versão interessada dos novos imperialistas, por pertencerem à
Idade das Trevas, por lá deviam ficar enterrados. Napoleão foi
persistentemente exaltado como um génio militar e da governação e
atacado como um oportunista que semeou a guerra e a destruição na Europa
durante um quarto de século.
Polémicas portuguesas
A
História de Portugal é também fértil nestas polémicas, sobretudo a
partir do Liberalismo e do século XIX: o julgamento da acção de Pombal,
que ainda hoje decorre e que divide até campos ideológicos opostos; os
escritos de Herculano sobre a Igreja e a Inquisição; a revisão histórica
pessimista do constitucionalismo liberal, feita por Oliveira Martins no
Portugal Contemporâneo.
Não
será, assim, de estranhar que o século XX e a História do século XX
continuem pródigos em polémicas versões oficiais. O Estado Novo, chegado
pela via militar, tal como o Liberalismo e a República, incorporou o
espírito do tempo – o nacionalismo autoritário e anticomunista. O
nacionalismo revolucionário fascista já tinha, em Itália, pactuado com
as forças conservadoras; e num país agrário da periferia europeia, com o
peso da Igreja e das classes médias tradicionais, a balança pendeu
claramente para o nacional-conservadorismo e não para o fascismo.
Através da solução do problema financeiro – a dívida pública externa que
tornava o país refém dos credores estrangeiros – Salazar venceria a
competição pelo investimento militar na chefia civil. E seria também o
teorizador político e institucional do novo regime, que era um híbrido,
em termos de política institucional.
O
Estado Novo fez a crónica do regime anterior, acentuando a fragmentação
partidária da Primeira República, a hegemonia dos Democráticos apoiados
nos “activistas” de rua, a desordem, os constantes pronunciamentos, a
“balbúrdia sanguinolenta”. Tal garantiu-lhe trinta anos de relativa
hegemonia nos espíritos e nas ruas. Em 1958, a candidatura de Humberto
Delgado marcou a mudança, pelo menos entre as classes médias urbanas de
Lisboa e Porto. O peso do tempo ideológico euroamericano e o fim da era
dos Impérios fariam o resto.
De Abril a Novembro
O
25 de Abril foi uma revolução corporativa, na origem e no desenrolar
das suas fases mais agudas, com incipientes clientes políticos lutando
pelo favor dos pretorianos, também sempre condicionados e limitados pela
conjuntura exterior, que era a Guerra Fria.
Quem
conheceu e viveu a resistência ao PREC não pode deixar de ler a maioria
dos relatos oficiais desse período, entre 25 de Abril de 1974 e 25 de
Novembro de 1975, como uma fábula interessada, composta para uso e
consagração dos príncipes. E sobre o 25 de Novembro, a narrativa
maniqueísta é ainda dominante: desloca protagonismos e chefias, minimiza
o pessoal no terreno – as companhias de Comandos convocados – e exalta
grandes chefes e cérebros estratégicos. E é sobretudo omissa quanto ao
papel das forças sistémicas, internas e externas, no controlo do que
poderia ter sido uma viragem na revolução portuguesa, caso tivesse sido
politicamente explorada.
Assim,
foi um Thermidor em que, em nome da pacificação e da moderação, se
congelou o PREC e o seu contrário, iniciando-se a consolidação do regime
sob uma ideologia de esquerda antifascista, com uma classe política de
centro-esquerda – o Centrão PS-PSD – e uma marginalização das direitas,
sempre carregando as culpas do anterior regime.
Quarenta
e seis anos depois, é fazendo as contas ao estado deste país adiado que
se deve olhar, lembrar e julgar o 25 de Novembro, o esforço e
sacrifício dos seus combatentes e o modo como os derradeiros vencedores
contaram e contam a História.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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