A faculdade do ministro do STF retoma os convescotes europeus para integrantes do Judiciário com as impropriedades de sempre e algumas novidades, como afagos a caciques do Centrão e participação de réus. Mensagens mostram que a diversão em eventos do tipo é garantida. Fábio Leite e Paulo Capelli para a Crusoé:
Nos
próximos dias, hotéis, restaurantes e auditórios de Lisboa vão respirar
a essência de Brasília. Figurões brasileiros desembarcam em Portugal
para participar de um “fórum jurídico” no qual os encontros privados
costumam ser muito mais atraentes do que os debates em público. Será o
retorno, em grande estilo, dos eventos organizados pelo IDP, a faculdade
do ministro Gilmar Mendes. Depois do longo período de restrição imposto
pela pandemia, a instituição e seus parceiros convidaram juízes de
cortes superiores, autoridades do governo, políticos e advogados para
discutir, do outro lado do Oceano Atlântico, o tema “sistemas políticos e
gestão de crises”. A lista para o check-in dos convidados é bem
extensa, abarca até lideranças do Centrão, e a programação reúne em
“mesas redondas” julgadores e réus em processos de corrupção. O fórum
vai durar três dias, mas não são poucos os que aproveitarão a
oportunidade para esticar a estadia na Europa sem pôr a mão no bolso.
A
primeira a embarcar foi a ministra da Secretaria de Governo, Flávia
Arruda, do PL, o partido de Valdemar Costa Neto, que foi escolhido pelo
presidente Jair Bolsonaro para abrigá-lo nas eleições do ano que vem.
Flávia partiu para Lisboa na noite da última terça-feira, 8, para ficar
dez dias em Portugal, com as despesas pagas pelo governo. Antes de
palestrar em um painel sobre “políticas públicas de educação e saúde” no
fórum do IDP, no dia 17, a ministra do Centrão irá participar de dois
seminários organizados pelas comissões de Relações Exteriores da Câmara e
do Senado: um da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e outro
sobre o “Agronegócio Sustentável no Brasil”. Entre o evento que busca
vender o país como potência agroambiental aos europeus, que ocorre nesta
sexta-feira, 12, em um hotel cinco estrelas de Lisboa, e o fórum
promovido por Gilmar, há um fim de semana livre para passeio pelos
pontos turísticos da capital portuguesa. Como sempre, os eventos são
organizados cuidadosamente de modo a combinarem com o feriado prolongado
brasileiro, e isso não é apenas uma coincidência.
Os
seminários organizados pelo deputado Aécio Neves e pela senadora Kátia
Abreu, bancados pelo Congresso, serviram de escala para que autoridades
convidadas pelo IDP pudessem prestigiar o evento do atual decano do STF
na esteira da “missão oficial”. O Poder Legislativo não informou os
gastos. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que fará o discurso
inaugural do fórum de Gilmar, no dia 15, tem previsão de chegada a
Lisboa nesta sexta, direto da Escócia, onde participou da COP26. Já o
presidente da Câmara, Arthur Lira, aterrissou na capital portuguesa na
quinta-feira, para se hospedar no luxuoso Hotel Epic Sana. Ele terá
participação de menor destaque no evento do IDP, mas fez questão de
atender ao convite de Gilmar, um dos dois únicos ministros que votaram
contra a suspensão do orçamento paralelo usado pelo governo Bolsonaro – e
controlado pelo próprio Lira, para garantir apoio no Congresso.
Entre
os representantes do Judiciário que estarão no fórum do IDP, estão três
ministros do STF – além de Gilmar, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli
constam da programação –, cinco do Superior Tribunal de Justiça, o
desembargador federal Ney Bello, do TRF-1, e o ministro Bruno Dantas, do
Tribunal de Contas da União, que recentemente investiu contra
ex-procuradores da Lava Jato, acusando-os de ter usado indevidamente
dinheiro público para trabalhar. Um dos painéis contará com a
participação do vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet,
responsável por investigar denúncias que chegam ao Tribunal Superior
Eleitoral, área de grande interesse da classe política, que estará
representada por dez políticos. Há ainda um grupo de advogados
renomados, alguns deles defensores dos políticos convidados pelo IDP em
ações nas próprias cortes superiores, e outras autoridades de peso do
governo, como o presidente do Banco Central, Roberto Campos. O “quase-ministro” do STF André Mendonça também está entre os convidados.
As
despesas, que em outras edições já foram bancadas por grandes
patrocinadores da iniciativa privada, agora serão custeadas pelas
entidades organizadoras do evento, incluindo as estadias nos hotéis
cinco estrelas PortoBay e The Vintage, cujos preços das diárias variam
entre 1,2 mil e 2,9 mil reais. Normalmente, os convidados de honra do
evento viajam com tudo pago, desde as passagens até a hospedagem.
Nenhuma das cortes informou por quanto tempo os ministros ficarão em
viagem para participar do tour europeu.
Flávia
Arruda não foi a única a chegar mais cedo. Dias Toffoli e os ministros
do STJ também viajaram antes. Nesse caso, para participar de outro
evento em Madri, na Espanha, promovido pela revista Justiça &
Cidadania. A publicação tem como presidente do conselho editorial o
ministro Luis Felipe Salomão, que também estará presente em Lisboa, e
como parceiras as empresas JBS e Qualicorp, cujos controladores e
ex-dirigentes já confessaram ter corrompido políticos em acordos de
delação premiada homologados pelo Supremo.
No
caso dos representantes do Poder Executivo, a viagem foi classificada
como “missão oficial”, com as despesas pagas com recursos públicos. E
muitos dos prazos de afastamento do país autorizados para o evento
extrapolam o período de duração do fórum. É o caso do chefe da Agência
Nacional de Saúde Suplementar, a ANS, Paulo Rebello, que chegou a
prestar depoimento à CPI da Covid no Senado por supostas falhas na
fiscalização das operadoras de saúde durante a pandemia. No evento de
Gilmar, ele falará em um painel sobre “desafios regulatórios” no dia 16,
mas pegou licença entre os dias 13 e 19 e ficará a semana toda na
Europa. Outros servidores da ANS, da Agência Nacional de Energia
Elétrica, da Aneel, da Agência Nacional de Águas, a ANA, e da Caixa
Econômica Federal também obtiveram autorização para acompanhar o fórum.
Sócio-fundador
do IDP, hoje dirigido pelo seu filho, Gilmar Mendes é a grande estrela
do evento. Responde como coordenador científico do fórum e abrirá vários
debates. Em uma das mesas redondas, sentará ao lado do ex-presidente
Michel Temer e do ex-ministro Gilberto Kassab, ambos réus em processos
de corrupção, para falar sobre “presidencialismo de coalizão e
semipresidencialismo”. Defensor de Kassab e Arthur Lira em ações no
Supremo, o criminalista Pierpaolo Bottini também participará como
palestrante em um painel moderado pelo desembargador Ney Bello, do
TRF-1, um dos nomes que Gilmar tenta emplacar no STJ. Outro convidado a
moderar os debates em Lisboa é o governador Ibaneis Rocha, do MDB, cuja
gestão à frente do Distrito Federal está sob investigação por suspeitas
de desvio de dinheiro público na pandemia. A relação do IDP com o
governo brasiliense, aliás, vai além do convite ao governador para
participar do evento. O instituto tem contrato com a gestão local para
ministrar cursos de mestrado a servidores.
Antes
de a Lava Jato atingir em cheio alguns dos parceiros privados do IDP,
os eventos promovidos pelo instituto de Gilmar no Brasil e no exterior
recebiam altas cifras de patrocínios de grandes empresas e entidades,
como a JBS e a Fecomércio do Rio de Janeiro. Em 2018, Crusoé revelou uma
lista com 23 patrocinadores do IDP que repassaram cerca de 7 milhões de reais,
em cinco anos, para financiar congressos e seminários jurídicos como o
de Lisboa. A lista incluía gigantes do setor privado, como Souza Cruz,
Bradesco e Google, e estatais como Itaipu e Eletrobrás. Chamava a
atenção que parte das companhias, a despeito de terem dado dinheiro ao
instituto, não quiseram ter seus nomes vinculados aos eventos. Era um
método de patrocínio oculto para o instituto do ministro. No caso da
JBS, o IDP acabou devolvendo 650 mil reais dos mais de dois milhões
repassados, depois que os irmãos Joesley e Wesley Batista foram presos e
fecharam um acordo de delação premiada.
Na
edição deste ano, não há patrocinador privado vinculado ao evento. No
material de divulgação, aparecem apenas os nomes das outras instituições
acadêmicas que organizam o encontro na Universidade de Lisboa, como a
Fundação Getúlio Vargas, além do recém-criado Fórum de Integração
Brasil-Europa, financiado pelas duas entidades.
A
despeito de reunir grandes nomes do mundo jurídico e político
brasileiro e internacional – o primeiro-ministro de Portugal, Antônio
Costa, também é aguardado para a cerimônia de abertura –, com o objetivo
de trocar conhecimento e experiência em assuntos que de fato são
relevantes para o país, como a crise sanitária e a recuperação
econômica, eventos como esse que Gilmar promove agora em Lisboa viram
uma oportunidade para que autoridades e seus respectivos cônjuges façam
turismo no exterior, economizando com passagens aéreas e estadias em
hotéis.
Em 2018, Crusoé mostrou como um evento organizado pela FGV em parceria com a Universidade de Columbia,
nos Estados Unidos, foi usado como pretexto para que alguns dos
ministros que agora estão em Portugal, como Gilmar e Salomão, fizessem
passeios e compras em Nova York. Dois anos antes, em outro seminário de
verão promovido pela FGV em Coimbra, a farra também foi grande.
Mensagens de WhatsApp capturadas pela Polícia Federal no celular de
Marconny Albernaz Faria, o lobista da Precisa Medicamentos acusado de
organização criminosa pela CPI da Covid no Senado, revelam detalhes dos
passeios e convescotes feitos pelos togados e familiares na cidade
portuguesa. À época, Marconny namorava a filha do então presidente do
STJ, João Otávio de Noronha, e estava não apenas na comitiva de dez
ministros da corte que foram a Portugal, mas também no grupo criado no
aplicativo para trocar as experiências de viagem e dicas de passeios.
Os
diálogos revelam visitas a praias de regiões paradisíacas como o
Algarve, passeios turísticos de trem, rodadas de chopp, charutos à beira
da piscina do hotel e compras realizadas pelos magistrados e seus
familiares durante a viagem institucional. O evento ocorreu entre os
dias 5 e 6 de julho de 2016, mas ao menos três ministros chegaram antes,
no dia 3, e só deixaram a Europa no dia 13. Em uma das conversas
travadas no grupo “Portugal Privado”, criado e administrado pelo
ministro João Otávio de Noronha no WhatsApp, o ministro do STJ Sebastião
Reis compartilha fotos de lugares paradisíacos. Em seguida, a mulher de
Noronha, Denimar, escreve: “Olha onde fomos”. Em algumas das imagens, o
grupo aparece posando para fotos. Filha de Noronha e namorada de
Marconny à época, a advogada Ana Carolina Noronha, conhecida como Nina
Noronha, responde: “Uma goto (foto) mais linda que a outra. Nunca
imaginei que o Algarve fosse lindo assim!”.
Outro
diálogo, do dia 11 de julho, ilustra bem como os ministros usam
seminários no exterior para aproveitar “miniférias” após os eventos
institucionais. O ministro do STJ Sebastião Reis escreveu o seguinte,
sobre um passeio que fazia de trem: “O trem empacou aqui literalmente”.
Pouco depois, no mesmo dia, Benedito Gonçalves envia a mensagem:
“Noronha estou no bar da piscina te aguardando”. O então presidente do
STJ responde: “Estou esperando. DENIMAR. Já já voltaremos pode esperar
aí mesmo”. Benedito, então, finaliza: “Estou aqui com charuto e chopp”.
Nina, a filha de Noronha, aproveitou a viagem para uma esticadinha pela
Europa. De Portugal, seguiu para um tour pela Itália. Na ocasião, ela e
Marconny passaram seis dias em Milão e Roma. Depois regressaram a Lisboa
para, juntamente com o restante da turma, finalmente retornar ao
Brasil. No universo paralelo de Brasília, a mistura de interesses e o
gosto pela dolce vita são só mais um sintoma da desconexão da realidade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI









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