BLOG ORLANDO TAMBOSI
Ensaio originalmente publicado em The Chronicle of Higher Education e gentilmente cedido pelo autor, Geoff Schullenberger, para tradução pelo Estado da Arte:
No verão passado, o departamento de inglês da Universidade de Chicago explicou
que seu programa de doutorado estaria “aceitando apenas candidatos
interessados em trabalhar no e com [o campo acadêmico dos] Black
Studies”. O anúncio, enquadrado como uma resposta aos protestos exigindo
justiça para George Floyd e outras vítimas negras da violência
policial, declarava que “desfazer a persistente e recalcitrante
anti-negritude [anti-Blackness] em nossa disciplina e em nossas
instituições deve ser responsabilidade coletiva de todo o corpo
docente”. Em contraste com as muitas declarações vagas de solidariedade
emitidas por programas acadêmicos em todo o país, o departamento de
inglês de Chicago se destacou pelo curso de ação específico que traçou.
As reportagens
posteriores no jornal do campus sugeriram que havia um pouco mais do
que meramente o compromisso do departamento com a justiça racial. Como a
maioria das universidades, Chicago havia imposto severos cortes no
início do ano em resposta à crise fiscal ocasionada pela pandemia de
Covid-19. Como resultado, o departamento de inglês limitou-se a admitir
cinco novos alunos de doutorado durante este ciclo. A decisão, então,
foi aparentemente tão pragmática quanto idealista. Ela ofereceu uma
forma de colocar um viés positivo na redução do programa de
pós-graduação e deu ao comitê de admissão um critério simples para
reduzir o número de candidatos em um ano no qual, devido ao desemprego
relacionado à Covid-19, esperava-se um número maior de candidaturas que o
normal.
Este
incidente revela duas tendências convergentes que continuarão a ditar o
futuro das humanidades e das ciências sociais. A primeira é uma ênfase
crescente na justiça social como a raison d’être da pesquisa e do
ensino. A segunda é um novo aumento da austeridade em uma área de
educação superior que tem sido dizimada por cortes no orçamento desde a
recessão de 2008.
A
abordagem de Chicago aponta para um cenário no qual ideais políticos e
restrições orçamentárias podem não estar em desacordo. Forçados a
priorizar, os departamentos poderiam direcionar seus limitados recursos
para o recrutamento de diversidade nas admissões e contratações. Além
disso, como quase todas as universidades americanas declararam
recentemente seu compromisso de corrigir erros históricos, os
departamentos que se concentram neste objetivo podem estar bem
posicionados para pressionar a adminstralçai a apoiar seus esforços com o
corpo docente, as bolsas curriculares [curriculum grants], e assim por
diante. Nessa linha, na Universidade de Leicester, no Reino Unido, os
cortes propostos ao departamento de inglês eliminariam módulos sobre
literatura medieval e outras partes do cânone tradicional e, em vez
disso, enfatizariam o desenvolvimento do que os arquitetos dos cortes
chamam explicitamente de um currículo “descolonizado”. No último caso,
em particular, isso exigiria provavelmente a criação de novos cargos
docentes e programas de doutorado que dediquem maior esforço e
financiamento para expandir os fundos através dos quais se recrutam
alunos em potencial. Dado o panorama financeiro sombrio que as
universidades atualmente enfrentam, isso parece cada vez mais
improvável.
As universidades fora do nível rarefeito de Chicago foram muito além de reduzir ou suspender as admissões: cortaram as áreas de habilitação principal, departamentos e até mesmo dispensaram professores titulares.
Seria possível culpar, com doses de razoabilidade, a tendência de
realocar recursos do corpo docente e do ensino de graduação, mas mesmo
uma mudança de prioridades na direção oposta encontraria limites
externos rígidos nos próximos anos. Em geral, as matrículas nas
universidades americanas estão em uma tendência decrescente há uma
década, e devem cair mais drasticamente devido à “escassez de nascimentos” [birth dearth]
que diminuirá o número de estudantes em idade universitária. Isto
afetará de forma desigual as diferentes instituições, e escolas de elite
como Chicago e as Ivies [universidades membras da chamada Ivy League]
permanecerão suficientemente solventes para manter seus docentes nos
níveis atuais. Mas isso certamente representa uma redução ainda maior
dos postos de professores em tempo integral em todo o país. Os já ruins
anos pré-pandêmicos podem parecer cor-de-rosa no final desta década.
A
proporções entre estudantes de doutorado e vagas abertas nos
departamentos está desequilibrada há décadas, e se tornará ainda mais
nos próximos anos. Mas a decisão razoável de suspender ou reduzir os
programas de pós-graduação provavelmente irá alargar ainda mais a
lacuna: Menos alunos de pós-graduação significa menor necessidade de
docentes em instituições que concedem doutorado, o que significa mais
postos de docência em determinada área não renovados. O encolhimento dos
programas de doutorado e o declínio do corpo discente constituem um
cenário pouco promissor para a criação de um “local mais inclusivo e
igualitário”. Por esta razão, mesmo que os programas de doutorado vejam
seu financiamento restaurado após os cortes atuais, é difícil ver como
seria ético para eles admitir novamente grupos inteiros de estudantes de
pós-graduação. Já há décadas há um desequilíbrio na proporção entre
doutorados e vagas abertas, o que tende a aumentar ainda mais nos
próximos anos. Mas a decisão sensata de suspender ou diminuir os
programas de pós-graduação provavelmente ampliara ainda mais a lacuna:
menos estudantes de pós-graduação significa uma menor necessidade de
professores em instituições de doutorado, o que significa mais postos
não renovados. Programas de doutorado em processo de redução e o
declínio do corpo estudantil se somam a um cenário pouco promissor a
criação de um “local mais inclusivo e equitativo”.
Dada
esta aparente espiral de declínio, que tipo de futuro profissional
aguarda os cinco doutorandos da área de Black Studies que Chicago
planeja admitir este ano? O ano mais recente para o qual o departamento
de inglês de Chicago fornece informações sobre empregos é 2017. De
acordo com o próprio site do departamento, apenas um em cada oito graduados daquele ano foi colocado em uma posição de titularidade docente. Uma análise estatística
separada sugere que essa estatística sombria foi um ponto fora da
curva, oferecendo uma comparação plurianual e mostrando que 57,69% de
jovens doutores terminaram em posições titulares ou de acompanhamento
probatório para a titularidade dentro de cinco anos. Mas, considerando
que Chicago possui o programa de doutorado em inglês com melhor
classificação no ranking
da U.S. News, ainda assim as probabilidades de conseguir o emprego para
o qual você foi treinado ainda são desanimadoras. E isso foi antes do
Covid.
Como
as disciplinas das humanidades estão lutando contra as ameaças
existenciais que elas enfrentam? Obviamente, é possível encontrar uma
série de argumentos contra os cortes e a desvalorização do estudo das
humanidades. Por outro lado, os membros de corpo docente dessas áreas às
vezes parecem oferecer uma linha de argumentação que contraria seu
próprio valor. Por exemplo, o anúncio de Chicago afirma que “a língua
inglesa como disciplina tem uma longa história de proporcionar
racionalizações estéticas de colonização, exploração, extração e
anti-negritude”. Aqueles que tomam as decisões de financiamento podem
muito bem perguntar por que tal disciplina merece continuar existindo.
Em
outra disciplina de contratação, a antropologia, um celebrado artigo
publicado na principal revista do ramo no ano passado ofereceu “The Case for Letting Anthropology Burn”.
Como o departamento de inglês de Chicago, o autor culpa sua disciplina
por uma infinidade de injustiças. Enquanto isso, sem notar qualquer
contradição, ele denuncia os “burocratas universitários” que “cancelam
as linhas de estabilidade do corpo docente, que reduzem o financiamento
programas de pós-graduação e fecham departamentos de antropologia como
medidas de redução de custos impulsionadas pela mercantilização do
ensino superior”. Por que não deveriam, se as mentes jovens mais
brilhantes do campo querem que se “deixe queimar?” (O autor ajuda a
explicar que “o argumento para se deixar a antropologia arder implica um
chamado para abandonar suas suposições liberais”, mas um título
expressando este objetivo bastante mais modesto certamente teria
recebido menos atenção).
Tais
ataques a suas próprias bases disciplinares têm sido valorizados dentro
das humanidades e em algumas esferas das ciências sociais há algum
tempo. (Já em 1993, um professor de literatura titular publicou um
manifesto disciplinar intitulado Contra a Literatura).
No
entanto, quando essas disciplinas argumentam publicamente contra os
cortes, elas voltam a uma retórica muito mais moderada. Em agosto
passado, uma carta aberta
intitulada “Covid-19 e o papel fundamental das ciências humanas e
sociais nos Estados Unidos” foi postada online, com assinaturas dos
chefes de todas as sociedades científicas e associações profissionais
relevantes. A carta proclama “a contribuição vital feita pelas ciências
humanas e sociais para o bem público”. Os autores evidentemente não se
referem a uma versão futura radicalmente transformada destas
disciplinas: eles se descrevem como “administradores dos estudos
humanísticos” e citam a necessidade de “sustentar a centralidade dos
estudos humanisticos”.
Essa
disjunção entre a retórica voltada para dentro e a retórica voltada
para fora também não é nova, como Bill Readings descreve em seu livro de
1996, The University in Ruins. Para Readings, uma incerteza tanto sobre
o lugar das pesquisas em humanidades dentro da universidade quanto
sobre o lugar da universidade na sociedade levou a um “impasse entre o
radicalismo militante e o desespero cínico” que aflige os estudiosos das
humanidades como ele. No modo “militante”, eles podem propor revisões
radicais de seus próprios campos de estudo; mas no modo “desespero” é
primordial manter o que eles têm, de modo que aderem da boca pra fora
aos valores humanistas tradicionais que, de outra forma, denunciariam,
não por convicção alguma, mas por falta de qualquer outra justificativa
disponível que possa ser vista como válida em contextos externos.
Fiel
à convenção, a carta aberta mencionada acima proclama a importância das
“histórias e crenças que nos guiam, das culturas e valores que
construímos e compartilhamos, e das aspirações visionárias dos
pensadores do passado e do presente”. Como nos mostra a leitura, esse
tipo de linguagem é o resíduo de um antigo ethos norteador da
universidade, orientado em torno do conceito de “cultura” e vinculado ao
moderno Estado-nação. A função das humanidades, nessa orientação, era
preservar e transmitir um senso coerente de cultura nacional
compartilhada para a elite governante. Os radicais acadêmicos atacaram
esta função e continuam a fazê-lo, mas Readings argumenta que o que
realmente a minou foi o declínio do Estado-nação e a ascensão do capital
transnacional. Por essa razão, diz ele, a nostalgia conservadora pela
antiga função de preservação da cultura da universidade é um beco sem
saída.
É
nesse sentido que a retórica radical não desafia necessariamente o novo
regime ideológico da universidade — e pode até mesmo ser dele um
cúmplice. Os ataques às bases disciplinares geralmente visam a versão da
disciplina orientada em torno dos antigos valores da “cultura”. Mas
essa orientação já é, em grande parte, obsoleta. Além disso, como
Readings segue apontando, é por isso que a “crítica de esquerda” ao
antigo humanismo “está se adaptando tão bem aos protocolos
institucionais, seja na sala de aula ou no perfil de carreira”. Um ideal
de “excelência” desprovido de conteúdo viria para substituir a
ideologia da “cultura” como a lógica norteadora da universidade.
A
ênfase moral na justiça social nas humanidades pode ser vista como um
esforço para reafirmar valores substantivos contra a “burocracia
corporativa” em que a universidade se tornou. Mas essa contestação
acabará se revelando ilusória. Os membros do corpo docente e os
departamentos que perseguem estas causas também são obrigados a operar
como agentes de mercado que adquirem recursos em um ambiente
hipercompetitivo. Como resultado, sua retórica ainda está sujeita à
neutralização por parte da universidade corporativa. Isto é ainda mais
óbvio agora que muitos presidentes, administradores e reitores abraçaram
o discurso da justiça social. O compromisso total com as causas
políticas é agora um meio pelo qual as faculdades competem por
publicidade, prestígio e subsídios. E se o apoio a essas causas for
integrado à missão proclamada da universidade, os departamentos que as
enfatizam perdem sua distinta proposta de valor.
Alguns
anos atrás, o jornalista Jon Schwarz propôs o que ele chamou de “Lei de
Ferro das Instituições”. Esta lei afirma que “as pessoas que controlam
as instituições se preocupam antes de tudo com seu poder dentro da
instituição, e não com o poder da própria instituição”. Como resultado,
“eles preferem que a instituição ‘falhe’ enquanto permaneçam no poder
dentro da instituição do que a instituição ‘tenha sucesso’ se isso
exigir que eles percam o poder dentro da instituição”.
O
radicalismo político, incluindo até mesmo o aparente repúdio da própria
esfera de estudo, funciona como um sinal de mercado dentro do sistema
de valores reinante das ciências humanas e sociais. De fato, em meios e
ramos acadêmicos hipercompetitivos cujos recursos materiais estão
desaparecendo, a retórica anti-institucional tornou-se um dos
estratagemas mais bem sucedidos para o avanço individual. Tal retórica,
entretanto, também tende a enfraquecer a posição pública e institucional
desses ramos. É por isso que, como qualquer pessoa familiarizada com
eles provavelmente observou, os radicais arremessadores de bombas se
transformam em humanistas enfadonhos quando precisam defender o motivo
pelo qual seus departamentos ainda devem ser financiados. Mas a
conjunção das conseqüências da pandemia com a trajetória de declínio a
longo prazo pode empurrar esta contradição para além do ponto em que ela
pode ser sustentada.
Tradução de Guilherme Bianchi.
Geoff Shullenberger é um escritor e acadêmico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário