O passado recente bem demonstra a que ponto o Supremo se arrogou o papel de “superpoder”. Editorial da Gazeta do Povo:
Quase
um ano e meio depois de afirmar que o Supremo Tribunal Federal (STF)
atua como “editor de uma nação inteira” no abusivo inquérito das fake
news, o ministro Dias Toffoli atribuiu uma nova função à corte – e que,
assim como a de “editor”, não vem nem das leis, nem da vontade popular.
Durante o 9.º Fórum Jurídico de Lisboa, o ex-presidente do Supremo
afirmou que hoje o Brasil vive um “semipresidencialismo com um controle
de poder moderador que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal.
Basta verificar todo esse período da pandemia”.
A
discussão sobre semipresidencialismo – um sistema em que o presidente
da República divide formalmente poderes com o Legislativo, embora não a
ponto de se falar na adoção do parlamentarismo – já vem de alguns anos e
sempre retorna quando se observam impasses entre poderes, especialmente
entre Executivo e Legislativo. Se há a constatação de que o Brasil de
hoje já funciona em parte de modo semipresidencialista, é porque a
Constituição de 1988, embora afirme que o Brasil é uma república
presidencialista – escolha ratificada pela população no plebiscito de
1993 –, teve entre seus redatores muitos adeptos do parlamentarismo, e
que acabaram deixando sementes espalhadas pelo texto constitucional.
Resultado disso é o dito “presidencialismo de coalizão”, em que o
governante de turno precisa montar uma maioria parlamentar à base de
muitas negociações, nas quais se recorre ao fisiologismo e à corrupção
pura e simples. O que mais assusta na frase de Toffoli, no entanto, não é
a menção à solução fora de lugar representada pelo
semipresidencialismo, mas a um papel que o Supremo concedeu a si mesmo
ao arrepio de qualquer previsão legal.
Não
existe “poder moderador” de nenhum tipo no Brasil, e quem o afirma é o
próprio Supremo. Em 2020, a corte havia sido chamada a esclarecer o
papel das Forças Armadas na ordem institucional brasileira, e em liminar
o ministro Luiz Fux (hoje presidente da corte) afirmou expressamente
que “inexiste no sistema constitucional brasileiro a função de garante
ou de poder moderador: para a defesa de um poder sobre os demais a
Constituição instituiu o pétreo princípio da separação de poderes e seus
mecanismos de realização. O conceito de poder moderador, fundado nas
teses de Benjamin Constant sobre a quadripartição dos poderes, foi
adotado apenas na Constituição Imperial outorgada em 1824. Na
conformação imperial, esse quarto Poder encontrava-se em posição
privilegiada em relação aos demais, a eles não se submetendo. No
entanto, nenhuma Constituição republicana, a começar pela de 1891,
instituiu o Poder Moderador. Seguindo essa mesma linha e inspirada no
modelo tripartite, a Constituição de 1988 adotou o princípio da
separação de poderes, que impõe a cada um deles comedimento,
autolimitação e defesa contra o arbítrio, o que apenas se obtém a partir
da interação de um Poder com os demais, por meio dos mecanismos
institucionais de checks and balances [freios e contrapesos]
expressamente previstos na Constituição”.
Mais
adiante, na mesma liminar, Fux afirma que “considerar as Forças Armadas
como um ‘poder moderador’ significaria considerar o Poder Executivo um
superpoder, acima dos demais”; ora, se é assim, não estaria Toffoli
querendo fazer do Supremo esse “superpoder, acima dos demais”? E podemos
perguntar mais ainda: não estaria o STF realmente agindo desta forma,
acima dos demais poderes e acima das próprias leis, extrapolando
completamente o seu papel de guardião e intérprete da Constituição
Federal?
O
passado recente bem demonstra a que ponto o Supremo se arrogou o papel
de “superpoder”. Não bastando as inúmeras e constantes interferências
nas funções dos poderes Executivo e Legislativo, a corte vem rasgando a
Constituição e as leis ao promover um apagão da liberdade de expressão
no Brasil, instaurar inquéritos abusivos nos quais o devido processo
legal é ignorado, criar crimes sem previsão legal (como na recente
equiparação da homofobia ao racismo), anular processos e decisões
judiciais realizadas em completo respeito às leis penais e processuais, e
inventar suspeições. Como afirmamos neste espaço em março de 2021,
“quando a Constituição, a lei, a jurisprudência, os princípios legais e a
coisa julgada são ignorados, entra em ação o voluntarismo. Já não
existe uma única Constituição, mas tantas Constituições quanto
magistrados. Já não existe jurisprudência, mas apenas as convicções e as
conveniências de cada julgador. E, no Brasil atual, poucas instituições
têm representado esse caos judicial de forma tão intensa quanto aquela
que deveria ser a principal guardiã da Carta Magna e da segurança
jurídica”.
A
confissão de Toffoli pode fazer corar Montesquieu, o grande teórico
iluminista da tripartição de poderes, mas já fora prevista muitos
séculos antes pelo poeta romano Juvenal, que nas suas Sátiras
questionava: quis custodiet ipsos custodes?, o que poderia ser traduzido
como “quem vigia os vigilantes?”, ou “quem guardará os guardiões?”. Sem
os limites que o bom uso dos freios e contrapesos traria, a tendência
dos ministros do Supremo é realmente se tornarem um superpoder que
decide como bem entende, sem ter de prestar contas a ninguém. E então a
ressalva de que “presidir o Brasil não é fácil” soa ainda mais
sarcástica, já que agir como um superpoder, decidindo como se bem
entender, sem precisar negociar nada com ninguém ou sem prestar atenção a
lei alguma, é a coisa mais fácil que há.
BLOG ORLANDO TAMBOSII
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