Relativismo moral e indignação seletiva é o que mais se vê por aí: parece que o problema não é o roubo em si, mas de quem se rouba. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
A cruzada iniciada pelo escritor e jornalista Fernando Morais contra a pirataria digital de sua biografia de Lula, tema do meu artigo da última sexta feira,
está repercutindo e ganhando adeptos. Parece que só agora muita gente
descobriu, escandalizada, que versões digitais de livros circulam
gratuitamente na internet. Que horror!
Vamos
aos fatos. Durante as duas últimas décadas, vendeu-se para a sociedade
brasileira a ideia de que era moralmente justificável e até bonitinho
piratear obras alheias, com a justificativa de que todos devem ter
acesso à cultura e ao conhecimento. Criaram até um nome para isso:
“copyleft” (em oposição a “copyright”, direito autoral), assim definido:
“Copyleft
é uma forma de usar a legislação de proteção dos direitos autorais com o
objetivo de retirar barreiras à utilização, difusão e modificação de
uma obra criativa devido à aplicação clássica das normas de propriedade
intelectual.”
Desnecessário
dizer, o argumento de que o copyleft só prega a livre reprodução e
distribuição sem fins lucrativos de obras alheias é desonesto e
falacioso. A ausência de fins lucrativos de quem rouba não muda o fato
de que o autor e a editora estão sendo roubados. Obviamente, se autores e
editoras deixam de ser remunerados pelo seu trabalho em função da
pirataria, é questão de tempo para autores procurarem outra fonte de
renda e para editoras fecharem as portas.
(Não
deixa de ser curioso, porém, que muitos dos escritores e editoras que
agora estão reclamando porque a pirataria destrói o seu modelo de
negócios são os mesmos que lançam e aplaudem obras lacradoras, dedicadas
a sabotar o sistema capitalista, a democracia liberal e o mercado
malvadão).
Como
mostra uma simples busca no Google por “livros em PDF”, a pirataria é
escancarada. Há dezenas de comunidades nas redes sociais que se dedicam
exclusivamente ao “compartilhamento” de livros (os meus, inclusive). Mas
só agora o assunto virou objeto de indignação: diversos escritores se
manifestaram pedindo que as editoras e o governo façam alguma coisa.
Mas, quando a pirataria era “do bem”, ninguém se manifestava. O Brasil
cansa.
Sinto
informar: a pirataria é apenas o sintoma de uma sociedade doente. De
nada adianta pedir uma legislação mais dura contra quem pirateia livros e
continuar a bater palma e achar bonito quando outros direitos à
propriedade são violados por gente “do bem” – como na ocupação de terras
e imóveis por “movimentos sociais”, para só citar um exemplo óbvio.
Relativismo
moral e indignação seletiva é o que mais se vê por aí. Aliás, o próprio
Fernando Morais é contra a pirataria da sua própria obra, mas sugeriu,
em entrevista à revista “Fórum”, aspas: “Se por acaso eles querem
piratear quem não depende do trabalho para viver, eles que se dediquem a
piratear o Banco Itaú. Vão aos cofres do Itaú, do Bradesco, do
Santander, que aí, sim, eles vão bater no lugar certo”. Ou seja, parece
que o problema não é o roubo em si, mas quem se rouba.
A
disseminação da pirataria só tende a crescer em uma sociedade sem
valores compartilhados e sem noções claras de certo e errado; uma
sociedade na qual, cada vez mais, se incentiva as pessoas a confundir
vontades com direitos e a exigir direitos diferenciados conforme o grupo
ao qual se pertence. Uma sociedade assim não tem a menor chance de dar
certo, como demonstram os crescentes conflitos entre grupos identitários
que começam a se cancelar mutuamente.
O
mal feito à cabeça das pessoas foi enorme. Em relação a direitos
autorais, a mentalidade que se consolidou no Brasil foi: se eu quero ler
um livro que acabou de ser lançado e não tenho dinheiro para comprar,
eu tenho o direito de baixar uma versão digital pirata; se eu quero
assistir ao filme ou à série que todo mundo está comentando e não quero
pagar a assinatura de uma empresa capitalista malvadona com o a Netflix,
eu tenho o direito de acessar um site pirata ou de usar senhas alheias
nos sites legais. A sociedade tem obrigação de me dar acesso a esses
produtos culturais, e quem discordar de mim é reacionário, fascista e
genocida.
Querem
realmente resolver o problema da pirataria? Trabalhem contra essa
cultura. Ensinem aos seus filhos que existem o certo e o errado, e que o
certo e o errado devem ser os mesmos para todos, e que ninguém deve ter
privilégios com base em sua origem ou classe social. Valorizem o
estudo, o mérito, o trabalho e a dedicação individual como caminhos para
o êxito e a realização pessoal.
Lutem
por uma sociedade na qual o esforço e o talento sejam recompensados,
não por uma sociedade na qual só existem direitos, e nenhum dever. Parem
de incentivar o ressentimento e o ódio entre os brasileiros.
Ataquem
o problema no ponto de partida. Lutem por uma educação básica universal
de qualidade, que proporcione igualdade de oportunidades para todos, em
vez de fingir acreditar que é possível resolver o problema no ponto de
chegada, distribuindo diplomas e vagas em universidades com base em
políticas supostamente compensatórias - cujo único resultado é gerar um
exército de desempregados com diploma, que só aprenderam em sala de aula
a lacrar, exigir mais direitos e apontar o dedo para os outros nas
redes sociais.
Se começarem a fazer isso agora, talvez daqui a duas ou três gerações o Brasil tenha alguma chance de dar certo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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