Hoje, da esfera estadual para baixo nos Estados Unidos, e em todas as esferas, inclusive a constitucional, na Suíça, tudo e cada vez mais é decidido diretamente pelos eleitores que, não por outra razão, tornaram-se os mais bem educados e ricos do mundo. Fernão Lara Mesquita:
Quando
a Constituição dos Estados Unidos foi ratificada, em 1788, a
Confederação Suíça, estabelecida pelo Bundesbrief, o documento assinado
pelos três primeiros cantões a se unirem para formar a primeira nação
européia (e a única que jamais teve um rei) em 1º de agosto de 1291, já
existia havia quase meio milênio.
O
“Pacto do Mayflower” é o exemplo mais conhecido. E as Câmaras
Municipais das vilas autárquicas perdidas nas “Índias” e no Brasil do
antigo Império Português tiveram traços dessa característica. Mas o da
Confederação Suíça é o primeiro modelo acabado da “democracia
espontânea”, esse modo de grupos humanos isolados se organizarem
consensualmente “entre iguais” para um objetivo comum.
Quando
a Biblioteca do Congresso incorporou a biblioteca particular de Thomas
Jefferson, os primeiros pesquisadores já registraram a presença com
destaque de dois autores suíços – Emerich de Vattel e Jean-Jacques
Burlamaqui (1694-1748, membro do Conselho de Estado de Genebra e
professor de ética e natural law) – entre os volumes mais manuseados
pelo autor da Declaração de Independência americana. Foi ela que, pela
primeira vez, afirmou como “verdades auto-evidentes” que “todos os
homens foram criados iguais” e estabeleceu como “inalienáveis os
direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade” não segundo esta
ou aquela fórmula estabelecida como “santificada” ou “correta” por
terceiros, mas como cada um preferisse faze-lo.
Naqueles
volumes grifados e anotados à margem, estavam até frases inteiras
reproduzidas na Declaração que iniciou a terceira jornada da democracia
na Terra ao afirmar, na cara de um mundo de monarcas absolutistas
hereditários detentores de poderes “atribuídos diretamente por deus”
que, tudo mentira, “todo governo deriva os seus poderes do consentimento
dos governados” e que “é direito e até dever desses governados corrigir
ou abolir qualquer governo que se volte contra esses direitos
inalienáveis”.
Com
origem nos exilados das cidades-estado que viriam a constituir os
reinos da Alemanha, da França, da Áustria e da Itália para a “Sibéria”
mais próxima – aquelas montanhas inóspitas nas suas fronteiras comuns – a
democracia suíça passara meio milênio como a única experiência
divergente a sobreviver à margem do poder dos papas primeiro, dos
reizinhos municipais depois, e dos monarcas absolutistas da Europa
finalmente, graças à sua localização hiper-estratégica para o comércio
europeu e às condições imbatíveis de defesa daquelas gargantas e
“passos” nas montanhas que só eles conheciam e dominavam.
Desde
o primeiro minuto, portanto, os suíços viram na experiência americana o
parentesco com a sua própria e entenderam a importância do sucesso dela
para a vitória da democracia sobre a opressão reinante.
Havia
batalhões suíços na Guerra da Independência e o “Kentuky-rifle”, arma
decisiva dos colonos, evoluiu do Swiss-Jaeger. Henry Miller (Johan
Heinrich Möller), estabelecido na Filadelfia em 1762 onde editava um
jornal que fazia campanha pela entrada dos “alemães” americanos na
guerra contra a Inglaterra era suíço. Seu jornal foi o primeiro a
anunciar a Declaração da Independência.
Depois
da vitoria, John Witherspoon, representando New Jersey na Convenção da
Filadélfia, propôs formalmente a Suíça como modelo de confederação.
Madison escreveu que as maiores influências na constituição americana
foram Vattel, Burlamaqui, Montesquieu e Locke, embora tanto ele quanto
Hamilton, cada um por seu viés, criticassem o sistema suíço pela
ausência de um poder central mais forte que consideravam essencial à
sobrevivência da democracia americana num mundo ainda totalmente
adverso.
Os
suíços, por sua imprensa e sua academia, também sempre acompanharam com
o máximo interesse a revolução americana. Invadida por tropas francesas
em 1798, a Suíça viu abolida a independência dos cantões. Restituída a
independência passou os 40 anos seguintes debatendo o modelo americano.
Em 1815 a soberania dos cantões estava restabelecida mas eles eram
controlados por oligarquias. Em 1830 a revolução em Paris favoreceu a
queda dessas oligarquias. Abriu-se então o debate da mudança do sistema
de governo.
Paul
Vital Troxler, líder dos “americanistas”, dizia que “a constituição dos
EUA é uma obra de arte que a inteligência humana criou baseando-se nas
leis eternas da divina natureza” e “um modelo para a Suíça e todas as
outras repúblicas”. Os tradicionalistas, igreja católica à frente,
resistiam. Os cantões dividiram-se num movimento secessionista que tinha
paralelo com o que se insinuava nos Estados Unidos. Em 1847 um
movimento militar deteve o conflito iminente e convocou uma
constituinte. Em 1848 ratificaram uma constituição que embora volumosa
comparada à original – tinha 147 artigos e 7 disposições transitórias –
baseava-se na americana e estabelecia um federalismo de dupla soberania
com um sistema bicameral como o deles: um Conselho de Estados como
Senado, com dois votos por estado, e o Conselho Nacional, comparável à
Câmara, eleito pelo povo. Em vez de um executivo único instituiram um
conselho de 7 membros e uma suprema corte sem poderes de rever as leis
passadas no Legislativo.
A
diferença, segundo um autor, “é de DNA”: nos Estados Unidos uma
aristocracia, movida pelas circunstâncias, criou uma constituição para
atalhar os poderes dos estados independentes; na Suíça ocorreu o exato
contrário; forças democráticas forçaram a criação de um governo central
forte para se impor às aristocracias que tinham passado a mandar nos
cantões.
A
Suíça acompanhou a Guerra de Secessão americana consciente de que o seu
resultado seria decisivo para ela própria. Em 1863, quando pareceu que o
Sul estava ganhando, publicou-se por lá o “Manifesto de Berna”:
“Do
vosso lado do oceano agora levanta-se renascida uma grande e poderosa
republica, superior a todos os seus inimigos. Com suas próprias forças
os americanos venceram a doença que arruinou as esplêndidas republicas
da antiguidade. Rejuvenescida, a republica americana instala-se para a
eternidade, como o modelo e o escudo da liberdade. Ela será livre no
futuro e para toda a História. Ninguém mais pode negar que as republicas
podem existir em países de muita extensão. Essa vitória é um marco para
a humanidade”.
Quando
a “disrrupção” provocada pela “ferroviarização” do continente americano
e a explosão da corrupção pela associação entre os robber barons dos
albores da revolução industrial e seus monopólios e os políticos
corruptos num país institucionalmente despreparado para enfrentá-los
corroeu todo o apoio popular à democracia, foi a vez dos americanos
voltarem-se para a Suíça para reconstrui-la.
As
ferramentas do recall e da iniciativa e referendo de leis eram
desconhecidas do grande publico nos Estados Unidos até 1888 mas usadas
na Suíça desde 1847. A partir de então surgem os primeiros trabalhos
semi-acadêmicos sobre o sistema suíço. Seja qual tenha sido a faísca que
iniciou o incêndio, o interesse pela Suíça começou a correr como fogo
na macega na década dos 1890s. Entre 1891 e 1898 houve mais de 70
publicações sobre o assunto. Mas foi a imprensa que fez a revolução. O
sistema suíço passou a ser o tópico jornalístico mais quente da década.
Nenhum editor podia ignorá-lo e vários jornais e revistas mandaram
equipes à Suíça para a execução de reportagens e estudos extensos.
A
Suíça virou a meca de todos os reformadores e cientistas políticos e
literalmente todos os americanos alfabetizados foram expostos ao tema
que, finalmente, Theodore Roosevelt e o Partido Progressista encamparam.
Isso os ensinou que antes do início da introdução desses instrumentos,
nos 1830s, a Suíça estava dividida entre senhores e servos, plutocratas
despóticos e políticos corruptos que exploravam o país servindo-se do
sistema representativo, e que com sua adoção “o parasitismo político
simplesmente desapareceu, as máquinas políticas ficaram sem uso, as leis
foram re-escritas em linguagem que qualquer leigo podia entender, os
impostos foram reduzidos e os privilégios dos monopolistas vieram ao
chão”.
Em
1898 South Dakota foi o primeiro estado a adotar iniciativa e
referendo. Utah foi o segundo em 1900 e Oregon o terceiro em 1902. Em
1912 ja eram 18. Entre 1913 e 1918 mais 5 estados aderiram.
As
duas guerras mundiais sufocaram o espírito reformista. Mas ele viria a
reviver com a Proposition 13 da California em 1978 que iniciou uma
rebelião nacional contra impostos abusivos. Hoje da esfera estadual para
baixo nos Estados Unidos, e em todas as esferas, inclusive a
constitucional, na Suíça, tudo e cada vez mais é decidido diretamente
pelos eleitores que, não por outra razão, tornaram-se os mais bem
educados e ricos do mundo.
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