O uso político do Orçamento compromete a qualidade da democracia. Fernando Schüler para a revista Veja:
O
Deputado Augustinho negocia uma emenda de 3 milhões de reais para São
Miguel do Ribeirinho, perto de São Jorge do Jetiqui, e vota com o
governo. O projeto em si não faz lá muita diferença. Pode ser essa PEC
dos Precatórios, mas podia ser outro. O que será feito com o dinheiro
também não é o tema central. Pode ser para comprar tratores ou por um
asfalto novo na cidade. O ponto é ajudar o prefeito a fazer mais votos
na próxima eleição; o prefeito dar uma força para o deputado na
reeleição, e este para o governo, lá em Brasília.
A
política, no Brasil, tem um lado de clientela. Sua face recente foi o
chamado “orçamento secreto”. As “emendas de relator”, as RP9, na
linguagem do Orçamento. Seu valor vai a 17 bilhões de reais neste ano,
mas o STF, seguindo o voto da ministra Rosa Weber, suspendeu sua
execução. A ministra diz causar perplexidade que “parcela significativa
do Orçamento esteja sendo ofertada aos parlamentares” para que eles usem
os recursos “conforme interesses pessoais”. A ministra Cármen Lúcia
falou em um sistema de “cooptação política”, com potencial para “pôr em
risco” a própria democracia. Talvez seja um exagero. A democracia pode
ir se arrastando. Ela é “inclusiva” das elites políticas, como dizem os
acadêmicos. O que vai sangrando é o “princípio da eficiência”, que
deveria reger o uso do dinheiro do cidadão.
O
sistema de clientela produz uma penca de problemas. O primeiro é a
pulverização de recursos a partir da decisão política de cada
parlamentar. Há quem diga que é melhor fazer assim do que deixar a
decisão nas mãos do governo. Dado que somos um país continental, parece
lógico que os deputados saibam mais sobre cada região do que os
burocratas em Brasília. O argumento é sedutor, mas será verdade? Para
que serviria, então, a estrutura técnica do governo? As centenas de
gestores federais, bem pagos, com seu arsenal de dados e indicadores? E
para que serviriam prefeitos, secretários e governadores? Mesmo com toda
essa parafernália, o melhor que temos para distribuir o dinheiro do
contribuinte são nossos parlamentares escolhendo com base em seus
interesses eleitorais?
O
segundo problema é o personalismo político. Problema que não se resolve
com a execução obrigatória de uma cota igual para cada parlamentar,
como funciona com as emendas individuais. O ministro Gilmar Mendes
acerta quando diz que as emendas, em regra, não são escolhas
“motivadas”. São decisões políticas. Criar uma cota fixa para cada
parlamentar, neste ano em 16 milhões de reais, não muda o fato óbvio de
que o recurso público será alocado com base no interesse personalíssimo
do político em angariar votos. Isso foi colocado lá na Constituição, em
2015. Poderia ser diferente? Houvesse apenas emendas coletivas, o
problema estaria fundamentalmente resolvido. Do jeito que está, não tem
jeito: entregar nacos do Orçamento à decisão individual de cada
parlamentar atinge em cheio o princípio da impessoalidade, inscrito na
própria Constituição.
O
terceiro problema é o uso das emendas como moedas de troca no
Congresso. Também aí há quem defenda. A própria Procuradoria do Senado o
fez dizendo que é do jogo alocar recursos “de acordo com a formação da
base do governo e suas necessidades eleitorais”. Quando leio essas
coisas me vem a pergunta: e o “convencimento”, o “debate de ideias”, o
“mérito” de cada projeto? Contam para o que mesmo? O.k., dirão que essa é
uma visão ingênua da democracia, que há o varejo, o mercado político, e
que tudo isso faz parte do jogo. Se for verdade, então não há lá grande
problema com as emendas de relator. O governo distribui os recursos,
vai formando a base e seguimos em frente. Desconfio que haja um problema
aí. Prefiro que a moeda da República seja algo mais inteligente do que a
distribuição aleatória de pedaços do Orçamento, ainda que isso seja
feito de modo transparente.
As
emendas de relator foram chamadas de “orçamento secreto” pois o público
não consegue saber quem são seus autores e quanto cada parlamentar
recebeu. Eu me lembrei de Norberto Bobbio, nos anos 80, dizendo que a
transparência era uma das “promessas não cumpridas da democracia”.
Continua sendo. Em parte, sempre será assim, visto que os temas de
Estado são complexos e os cidadãos têm mais que fazer. Sua influência
nos assuntos públicos é quase nenhuma e a alienação termina sendo uma
opção racional. Mas não precisamos exagerar. Tem lá cabimento ter de
acionar a Lei de Acesso à Informação para saber qual o deputado que
indicou uma emenda de 20 milhões ou 30 milhões? Precisava o Supremo
entrar em campo para dizer algo tão evidente?
Por
fim, há o problema do desequilíbrio eleitoral. Se você decidir
concorrer a deputado, muito provavelmente terá de disputar com um
político no mandato. Apenas com as emendas individuais, ele terá
“distribuído”, em quatro anos, coisa de 60 milhões de reais. Entre
sessenta e oitenta projetos devidamente anunciados ou inaugurados. Isso
tem algum impacto direto nos eleitores, mas seu efeito maior é na
fidelização de prefeitos e líderes locais, o que é decisivo na eleição.
Fora isso, o deputado tem seus 25 assessores, dinheiro para se deslocar e
imprimir materiais. E quem sabe ainda 1 milhão ou 2 milhões do fundão
eleitoral, pagos pelo contribuinte, porque “a democracia custa caro, não
é mesmo?”.
A
verdade é que criamos um duplo clientelismo. Do governo cooptando
deputados em Brasília, e dos deputados cooptando prefeitos e vereadores
país afora. Poderia funcionar de outro modo? Por esses dias escutei a
esdrúxula tese de que, dado que as coisas são assim, é assim que elas
devem ser. Algo próximo da fina definição de Raymundo Faoro ao nosso
tradicionalismo: “É assim porque sempre foi”.
Não
penso que o uso político do Orçamento para “fazer política”, como ouvi
de um deputado, ponha em risco nossa democracia. Mas compromete sua
qualidade. Expressa a sobrevivência de um elemento arcaico no Estado
brasileiro, que perpetua elites no poder, desorganiza políticas
públicas, desperdiça recursos escassos e, em última instância, contribui
para o descrédito do fazer político no país.
O
professor Edson Nunes definiu o clientelismo como uma das “gramáticas”
definidoras da política brasileira. Nossas elites, ele diz, “contam com
uma complexa rede de corretagem política que vai dos altos escalões até
as localidades”. O clientelismo “não definhou durante o período do
autoritarismo, não foi extinto pela industrialização e não mostrou
sinais de fraqueza no decorrer da abertura política”. O sistema de
emendas é um sistema elegante de clientela, inscrito na Constituição; as
emendas de relator são nosso velho jeitinho. Nu e cru.
Talvez
seja nossa sina. Ao mesmo tempo que avançamos na direção do primado da
técnica e boa regulação de mercado, em temas como a autonomia do Banco
Central ou o novo marco do saneamento básico, mantemos bolsões de atraso
no mundo político. O Supremo deu um recado ao Congresso por estes dias,
mas só vamos acertar o prumo, de verdade, no dia em que os eleitores
aumentarem sua barra de exigências republicanas. Oxalá isso aconteça.
Devagar que seja, mas aconteça.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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