Lucas Miotto Lopes resenha, para a Crítica na Rede, a coletânea de artigos organizada por Brian Leiter, reunida no livro Objectivity in Law and Morals (Cambridge University Press):
A
objetividade é um conceito bastante discutido em filosofia. Discute-se
se a ciência pode ser objetiva, se a justificação de nossos juízos
morais é objetiva, se é possível conhecer a realidade objetivamente e
outras questões correlatas. Porém, não é só na filosofia que o termo
objetividade é relevante. Usamos também o termo no nosso cotidiano ao
dizer coisas como “O professor não foi objetivo ao corrigir a prova”;
“Luiz só gostou do filme porque a Sharon Stone participou, não foi
objetivo”; “As pesquisas sobre a satisfação da população quanto aos
governantes não foram objetivas, já que foram feitas por órgãos do
próprio governo”.
O
uso do termo “objetivo” designa algo que é livre de influências. Em
outras palavras, tomamos “objetivo” como algo neutro. Apesar de
corriqueiro, esse uso parece captar um aspecto importante de relevância
filosófica: o de que algo objetivo é mais confiável para conhecermos
como as coisas são. Obviamente essa afirmação é disputada por alguns
filósofos, mas é uma intuição importante para o problema.
O
livro organizado por Brian Leiter se divide em duas discussões acerca
da objetividade: a primeira é acerca da objetividade do direito e a
segunda é acerca da objetividade da moral. Apesar dos problemas serem
tratados distintamente, e com isso pressupormos que a objetividade da
moral é uma coisa e outra a do direito, é disputável se a objetividade
se restringe a domínios, isto é, se a objetividade do domínio da moral é
diferente da objetividade do domínio do direito.
O
problema da objetividade do direito — o qual exporei com maior detalhe —
consiste em saber se o direito é objetivo ou não. À primeira vista
tendemos a pensar que esse problema pode assumir diversas formas:
1.Objetividade em relação ao conteúdo das normas jurídicas — tratar as pessoas igualmente a não ser quando haja diferenças relevantes;
2.Objetividade em relação à aplicação de normas pelos juízes — não serem tendenciosos;
3.Objetividade
em relação aos resultados das sentenças — esperamos que as decisões
jurídicas alcancem aquilo que o direito realmente requer e não sejam
expressões de preferências pessoais;
4.Objetividade
em relação a padrões de conduta — esperamos que o direito estabeleça
alguns padrões objetivos de conduta (homem bom, razoabilidade) para não
deixar que os agentes usem critérios subjetivos de comportamento.
Os
problemas 1, 2 e 4 apesar de relevantes para o direito, têm pouca
expressão nos debates filosóficos. A real preocupação dos filósofos é 3.
Isso porque de imediato 3 levanta a questão de saber se de fato existe
algo que o direito realmente requer, ou seja, se existe algum padrão de
correção independente do que os juízes e legisladores pensam e proferem.
Se o direito realmente requer algo, então há respostas corretas em
direito.
O
problema da objetividade do direito também é conhecido como o problema
da determinação. Isso porque questiona se o direito é determinado por
algum padrão de correção. Porém, penso que tomar o problema da
objetividade como sinônimo do problema da determinação — como é feito em
todo o livro — não é correto. Não é correto, pois o problema da
objetividade é justamente se existe um padrão de correção que é capaz de
atribuir valor de verdade às proposições jurídicas, posto que saber se o
direito é determinado ou não é independente da existência desse padrão
de correção, já que o direito pode ser simplesmente determinado pelas
preferências dos juízes. Apesar dessa impropriedade, é possível
distinguir claramente quando alguém está discutindo a determinação
propriamente dita de quando se está discutindo a objetividade.
Quanto a este problema, temos basicamente três posições relevantes:
A.Ceticismo extremo;
B.Ceticismo Moderado; e
C.Objetivismo Extremo.
As
posições B e C são opostas: enquanto B defende que em alguns casos não
há um padrão de correção para o direito, C defende que há em todos os
casos um padrão de correção. A posição A é a de que não há um padrão de
correção do direito em qualquer caso.
Como
representantes da posição A temos os primeiros realistas jurídicos
(apesar do nome “realista” ser quase uma impropriedade, já que têm uma
posição claramente anti-realista). Os realistas jurídicos defendem que o
direito é na verdade aquilo que os juízes dizem. Como os juízes tomam
decisões conflitantes em casos semelhantes, não há uma resposta correta.
Não há direito antes do proferimento de uma sentença; as leis e
decisões anteriores são elementos meramente informativos que não
vinculam a decisão dos juízes. Isso implica que os juízes nunca cometem
erros jurídicos, são infalíveis. No máximo, podem cometer erros morais
ou pragmáticos.
Apesar
de bastante contra-intuitiva, essa posição capta um elemento importante
do direito: o da autoridade. Os tribunais têm autoridade em dizer o que
significa o direito. Não só têm autoridade, mas o dever e a
exclusividade em fazer isso. Além do mais, os tribunais superiores
representam a última palavra numa questão jurídica. Seria esse papel da
autoridade prova suficiente de que não há qualquer direito para além do
que os juízes dizem?
As
posições B e C discordam. Os céticos moderados normalmente defendem que
o direito é um sistema de regras. O critério de validade e existência
do direito é dado por convenções feitas por autoridades. Um elemento
importante é que as próprias autoridades se submetem a essas convenções,
deixando apenas pequenos espaços para que a convenção original seja
alterada em circunstâncias relevantes. Sendo assim, aquilo que os juízes
dizem é, na verdade, a aplicação das convenções adotadas, ou no máximo
uma interpretação coerente dessas convenções.
Obviamente,
haverá casos não previstos nas convenções ou casos em que a convenção é
vaga ou ambígua. Nesses casos, as próprias autoridades poderão
discordar quanto à solução a adotar. Imaginemos que um sistema jurídico
contenha uma regra que disponha o seguinte: “É proibido causar
sofrimento a seres vivos”. Imaginemos também que há uma disputa no
tribunal acerca de se essa norma dá margem para a permissão do aborto ou
não. Ora, nesse caso os termos “seres vivos” e “sofrimento” podem ser
muito bem motivos de desacordo. Dado que os defensores dessa posição
admitem a falibilidade dos juízes, se não existir qualquer outra regra
para solucionar essa disputa, estaremos no caso em que não há uma
resposta correta.
Os
objetivistas extremos discordam dos céticos moderados justamente nesse
ponto. Defendem que há uma conexão entre o direito e a moral, tal que
nesses casos os juízes usarão necessariamente razões morais para
decidir. Dado que defendem que a moral é objetiva, esta dará apenas uma
resposta correta para o caso. Essa posição ficou famosa com Ronald
Dworkin que, grosso modo, defende que alguns princípios integram o
ordenamento jurídico de forma a preencher as lacunas deste ao fornecer
uma razão moral para os juízes na ausência de uma regra clara.
Porém,
essa posição dos objetivistas extremos é muitíssimo controversa.
Primeiro, porque pressupõem haver uma conexão entre o direito e a moral,
o que na verdade é um dos debates mais calorosos na filosofia do
direito. Segundo, pressupõem que a moral é objetiva; terceiro,
pressupõem que o critério de objetividade moral é o mesmo do que a
objetividade do direito a ponto de concluir que basta que um seja
objetivo para que o outro também o seja.
Este
ponto do debate acaba revelando a conexão entre o problema da
objetividade com o da natureza do direito. Os defensores do direito
natural — o direito tem uma conexão necessária com a moral — são
propícios a serem objetivistas extremos, enquanto os defensores do
positivismo jurídico — a conexão entre o direito e a moral é contingente
ou não há conexão alguma — tendem a defender ou o ceticismo extremo ou o
ceticismo moderado. O problema da objetividade pode, portanto, trazer
boas razões para adotar uma ou outra posição no debate acerca da
natureza do direito.
O
outro problema tratado no livro, da objetividade moral, é um dos
principais debates da metaética contemporânea. Nessa discussão é
relevante saber se a justificação da moralidade é relativa às culturas,
se os juízos morais têm valor de verdade e se existem fatos morais.
Destacam-se algumas posições: cognitivismo moral, não cognitivismo,
realismo e anti-realismo moral.
É
importante mencionar que o problema da objetividade moral assume pelo
menos três formas diferentes: semântica, epistêmica e ontológica. Por
exemplo, o debate acerca do relativismo cultural é predominantemente
epistêmico, uma vez que procura determinar se as justificações das ações
morais são relativas a uma cultura ou não. Já o problema de saber se os
juízos morais têm valor de verdade diz respeito à melhor forma de
interpretar a linguagem e o pensamento moral: portanto, tem um caráter
semântico, além do epistêmico. É nesse meio que surge o debate entre
cognitivistas e não cognitivistas. O cognitivismo é a tese de que os
termos morais funcionam como predicados e expressam propriedades que
permitem formar proposições com valor de verdade. Já o não cognitivismo
defende que os termos morais expressam indicadores de emoções e atitudes
e, por isso, não têm qualquer valor de verdade.
Saber
se existem fatos morais é um problema eminentemente ontológico, dado
que o que está em causa são as categorias que compõem a realidade. Nesse
âmbito, há o debate entre realistas e anti-realistas morais. Os
realistas defendem que há fatos morais e tais fatos é que tornam nossas
proposições morais verdadeiras ou falsas. Portanto, o realista moral tem
de pressupor o cognitivismo como verdadeiro. É importante observar que o
cognitivista não precisa endossar o realismo, já que pode simplesmente
defender que estamos em erro ao pressupor um dado compromisso ontológico
com fatos morais, defendendo então que todas as proposições morais são
falsas, como John Mackie. Do outro lado, o anti-realista defenderá que
não há fatos morais. Pode defender isso a partir da tese não
cognitivista de que os juízos morais são estados mentais que expressam
sentimentos e, por isso, não dependem de qualquer fato no mundo, ou pode
ainda ser um cognitivista, mas defender que a verdade das proposições
morais não se dá pela relação entre um fato e a própria proposição, mas
antes pela relação entre essa proposição e outras proposições relevantes
para ela.
Sendo
este livro composto por sete artigos, os três primeiros exploram o
problema da objetividade do direito e os quatro últimos o problema da
objetividade da moral.
No
primeiro artigo, “Legal Interpretation, Objectivity, and Morality”,
David Brink defende que o problema da objetividade do direito está
relacionado com o problema de como interpretar o direito. David Brink
argumenta que o uso das teorias clássicas da referência e do
significado, segundo as quais o significado das proposições jurídicas é
determinado pelo conjunto das descrições que os falantes com elas
associam, não é bem-sucedido, uma vez que não consegue distinguir entre a
crença dos falantes acerca da referência e a própria referência, e
implica a infalibilidade dos falantes. Brink propõe que usar teorias da
referência mais sofisticadas, como a histórico-causal de Kripke, é uma
saída plausível para explicar o significado dos termos jurídicos, pois
levará em conta a intenção do legislador, princípios subjacentes aos
conceitos jurídicos e crenças colaterais. Por fim, argumenta que a sua
teoria da interpretação oferece uma reconciliação entre o positivismo
jurídico e o direito natural, já que se adequa tanto com aspectos
convencionais da lei, como com aspectos de aceitação moral das normas
jurídicas.
No
segundo artigo, “Objectivity, Morality and Adjudication”, Brian Leiter
examina a teoria de Dworkin de que há sempre respostas corretas em
direito devido ao fato de o direito ter uma conexão com a moral e a
moral ser objetiva. Leiter mostra as inconsistências da teoria de
Dworkin e também mostra que as respostas oferecidas por essa teoria às
teses subjetivistas como a de John Mackie não são procedentes. Após
isso, Leiter distingue a concepção naturalista da não naturalista
tomando como parâmetro não naturalista a teoria de McDowell. Por fim,
Leiter mostra que a teoria de Dworkin implica o não naturalismo e, na
pior das hipóteses, o não cognitivismo — tese que o próprio Dworkin
rejeita. A argumentação de Leiter contra Dworkin parece indicar que de
fato não há respostas corretas em direito, que este não é objetivo.
O
terceiro artigo do livro, “Objectivity Fit for Law”, de Gerald Postema,
tem como principais objetivos indicar que tipo de objetividade é
adequado para o direito e refutar a tese de que o uso de valores morais e
políticos nas decisões judiciais tornam o direito subjetivo. Postema
defende que a objetividade varia de acordo com os domínios e que a
natureza da objetividade de um domínio dependerá da natureza desse
domínio, do conteúdo desse domínio e das razões que fazem a objetividade
nesse domínio importante. Apesar de defender que a objetividade varia
de um domínio para outro, Postema admite que os domínios partilham
certas características estruturais.
Passando
para o problema da objetividade da moral, o quarto artigo do livro —
“Does Metaethics Rest on a Mistake?” de Sigrún Svavarsdóttir — é
devotado a encontrar uma interpretação coerente da posição de Thomas
Nagel acerca da objetividade e do desafio proposto por Nagel a Mackie de
que a teoria deste depende de caracterizar questões sobre a natureza
dos valores de modo errôneo. A autora defende que a posição de Nagel é
eminentemente epistêmica e que este filósofo não fornece qualquer
argumento metafísico que clarifique a questão dos fatos morais. Por fim,
a autora defende que o principal erro das teorias filosóficas e,
principalmente, das teorias metaéticas é o não uso de uma metodologia
naturalista, ou seja, uma metodologia próxima das ciências naturais.
Em
“Notes on Value and Objectivity”, o quinto artigo do livro, Joseph Raz
está interessado na noção de objetividade como elemento necessário para a
formação do conhecimento e como condição para a aplicação de noções
como certo e errado. Para se referir a esse tipo de objetividade, Raz
usa o termo “objetividade de domínio”. Raz põe em causa a suposição de
que um domínio é objetivo se, e somente se, for capaz de ser passível de
conhecimento e, em seguida, tenta verificar se o pensamento prático tem
objetividade de domínio. Raz argumenta que se o pensamento prático
tiver objetividade de domínio, precisa satisfazer pelo menos alguns dos
cinco requisitos apresentados, sendo um deles o de que sejam possíveis
erros no seio do domínio. Tais requisitos são denominados “a longa
rota”. Ainda sobre o pensamento prático, Raz ataca o problema de o
pensamento prático depender de fatos sociais e de, por isso, ter
interferência subjetiva. Sua posição é a de que a dependência de fatos
sociais em nada afeta a objetividade do pensamento prático.
Philip
Pettit em “Embracing Objectivity in Ethics”, argumenta que dizer que a
moral é objetiva é equivalente a defender a objetividade em três
aspectos, nomeadamente, semântico, ontológico e epistêmico. No seu
artigo, dedica uma sessão para cada aspecto da objetividade e fornece
sua posição sobre cada um deles. A posição geral que adota é o
funcionalismo moral, segundo a qual os termos morais dependem da
resposta dos agentes cognitivos, mas ao mesmo tempo são em parte
independentes das respostas desses agentes e, por isso, objetivos.
Pettit defende que os valores não são transcendentais, mas antes coisas
do gênero das cores (constantes que sofrem influências de fatores
externos). Isso porque considerar valores como algo transcendental é
incompatível com uma caracterização naturalista do universo (composto
unicamente por partículas microfísicas). Um ponto positivo do artigo é
que apesar de ser um artigo especializado, Pettit oferece uma boa
introdução à discussão que pode ser bem aproveitada por aqueles que
desconhecem a bibliografia.
No
último artigo do livro, “Pathetic Ethics”, David Sosa argumenta que a
falha principal das teorias sensibilistas é que elas são patéticas, isto
é, atribuem propriedades não naturais às ações e juízos éticos. Sosa
também argumenta que a despeito de as teorias sensibilistas terem
surgido para responder à teoria do erro de Mackie, rejeitam-na por
razões erradas e não fazem jus à relevância dessa teoria. Por fim, Sosa
defende uma teoria da objetividade que toma os valores como algo
objetivo de forma primária, ou seja, independentes da influência dos
agentes cognitivos.
O
livro é indispensável para quem quer estudar tanto o problema da
objetividade do direito, quanto o da objetividade da moral. O livro
também conta com uma boa introdução de Brian Leiter na qual expõe alguns
aspectos gerais sobre a objetividade e resume cada artigo do livro.
Apesar da introdução, o livro não é introdutório: os artigos são
técnicos, longos e densos, o que requer bastante tempo e atenção a
pormenores por parte do leitor. No fim, o livro ainda contém uma enorme
bibliografia capaz de atender os leitores mais famintos por filosofia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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