A questão não é quando vão chegar novas cepas, mas qual será a intensidade e o preparo, adverte o biólogo Fernando Reinach, em artigo publicado pelo Estadão:
Tudo
indica que um tsunami vai atingir o Brasil. A Europa e Manaus já estão
sofrendo com novas cepas do Sars-CoV-2 que se espalham rapidamente. Elas
são difíceis de controlar, aumentam o número de mortes por 100 mil
habitantes, e conseguem ludibriar parcialmente o sistema imune dos já
infectados e vacinados. A solução na Europa tem sido trancar a população
em casa e vacinar em questão de semanas todo o grupo de risco com as vacinas da Pfizer
e Moderna. E na falta destas, com a vacina da AstraZeneca. A questão
não é se esse tsunami vai se espalhar pelo Brasil, é quando isso vai
acontecer, qual a intensidade, e se vamos estar preparados.
Para
sentir o perigo basta entender um dos trabalhos publicados esta semana
sobre as novas cepas. Escolhi o estudo feito pelo grupo de David Ho. Ele
é um cientista que você pode descrever em uma frase: Ho transformou a
AIDS de uma sentença de morte em uma doença crônica controlável por um
coquetel de antirretrovirais. Foi dele a ideia de evitar o aparecimento
de novas cepas de HIV usando combinações de drogas. São os coquetéis que
usamos até hoje.
O trabalho possui uma quantidade enorme da dados coletados usando uma versão da metodologia que descrevi semana passada.
Utilizando técnicas de engenharia genética o grupo de Ho é capaz de
construir e testar as propriedades das mais diferentes cepas do
SARS-CoV-2. Cada cepa contém uma ou mais das mutações da Inglaterra (B.1.1.7)
e da África do Sul (B.1.351). Para a cepa inglesa, além da original que
já circula, os cientistas construíram cepas contendo cada uma das 8
mutações mais importantes. Para a cepa da África do Sul, além da
própria, foram construídas cepas com cada uma das 9 mutações. De posse
dessa coleção, os cientistas mediram sua capacidade de invadir células
humanas. Essa medida foi feita na presença e na ausência de anticorpos
gerados contra o SARS-CoV-2 original. Esse experimento permite
determinar a capacidade de cada anticorpo de bloquear a entrada de cada
cepa em células humanas. Anticorpos que evitam a entrada (chamados de
neutralizantes) devem proteger a pessoa. Os que não evitam a entrada não
devem proteger.
Num primeiro estudo foi averiguada a capacidade de 18 anticorpos monoclonais (como os utilizados para tratar Donald Trump)
de neutralizar cada uma das cepas. São 324 experimentos distintos. Em
seguida os cientistas repetiram o experimento usando os anticorpos
presentes no soro de 20 pacientes que se recuperaram de casos graves e
leves de covid-19 causado pelo SARS-CoV-2 original. Isso gerou outra
tabela com 360 resultados. Finalmente repetiram os experimentos usando
os anticorpos presentes no soro de 22 pessoas que haviam sido imunizadas
com a vacina da Pfizer (10 pessoas) e da Moderna (12 pessoas) para
verificar se essas cepas conseguiam escapar dos anticorpos gerados por
essas duas vacinas. São mais 396 resultados.
Os
cientistas conseguiram determinar quais anticorpos neutralizam qual
cepa. A primeira conclusão é que a inglesa, B.1.1.7, não é neutralizada
por nenhum dos anticorpos dirigidos para a região N-terminal da proteína
Spike do SARS-CoV-2 original. Entretanto ela é parcialmente bloqueada
pelos anticorpos que se ligam na região que o vírus usa para entrar na
célula. Mais importante, a cepa B.1.1.7 é três vezes mais resistente aos
anticorpos presentes nas pessoas que tiveram covid-19 causada pelo
SARS-CoV-2 original e duas vezes mais resistente aos anticorpos
presentes nas pessoas vacinadas. Ou seja, não somente ela se espalha
rapidamente, mas parece possuir características que a ajudam a despistar
a resposta do sistema imune.
Já
a cepa da África do Sul, B.1.351, é muito mais preocupante. Ela não é
bloqueada pelos anticorpos monoclonais, é de 11 a 33 vezes mais
resistente aos anticorpos presentes no soro de pessoas previamente
infectadas e de 6,5 a 8,6 vezes mais resistente que o vírus original aos
anticorpos gerados pelas vacinas da Pfizer e Moderna.
A
conclusão é de que essas duas cepas, que estão se espalhando pelo
mundo, podem tornar inúteis os anticorpos monoclonais que estão sendo
desenvolvidos como tratamento e devem ameaçar de forma significativa a
eficácia das vacinas. É por esse motivo que a Pfizer e a Moderna já
anunciaram que estão desenvolvendo novas versões de suas vacinas.
Esse
estudo não analisou a nova cepa de Manaus (semelhante à cepa
sul-africana), e não analisou a capacidade das três cepas (Inglaterra,
África do Sul e Manaus) de burlar as defesas criadas pelas vacinas
Cononavac e AstraZeneca. Ou seja, não sabemos ainda as propriedades da
cepa de Manaus nem como as vacinas que dispomos vão se comportar diante
dessas novas cepas.
É
uma questão de tempo a disseminação dessas cepas pelo Brasil, mas muito
provavelmente elas vão chegar antes de vacinarmos uma fração
significativa da população. Nos EUA se acredita que elas serão
dominantes nas próximas semanas.
Desculpem
o pessimismo, mas é melhor apertar os cintos e nos prepararmos para o
pior. E lembrem: no início de 2020, quando o coronavírus demorou um
pouco mais para chegar ao Brasil, muitos acreditavam que ele não
chegaria por aqui.
MAIS INFORMAÇÕES: INCREASED RESISTANCE OF SARS-COV-2 VARIANTS B.1.351 AND B.1.1.7 TO ANTIBODY NEUTRALIZATION. (2021)
*É
BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E
AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS; E A
LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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