O condutor de um bonde descontrolado precisa decidir se atropela 3
pessoas ou só 1. Nós estamos no trilho e o governo está na direção. O
que fazer? Artigo de Robin Koerner, publicado pela FEE e traduzido para a
Gazeta:
A maioria dos aspirantes a filósofos conhece bem o “Dilema do Bonde”
ou, para ser mais preciso, os vários dilemas do tipo, que buscam revelar
se você prefere agir deliberadamente de modo a prejudicar uns poucos a
fim de reduzir os danos à maioria. O objetivo desses dilemas é lançar
luz sobre a moralidade e a intuição moral.
O exemplo clássico propõe a seguinte dúvida: um bonde está fora de
controle. Em seu caminho, há três pessoas amarradas. Mas felizmente é
possível apertar um botão que fará com que o bonde mude seu percurso
para um trilho onde há apenas uma pessoa amarrada. Se você opta por
fazer com que o bonde mude de direção, o lado bom é que você salva duas
pessoas; o lado ruim é que você é o responsável direto pela morte de uma
pessoa.
Dá quase para ouvir o sussurro do filósofo: “Isso está acontecendo”. O
coronavírus é o dilema do bonde do século XXI. Bom, quase isso.
O dilema moral
Alguns órgãos e autoridades do governo decidiram prejudicar milhões
de pessoas fechando empresas, tirando o emprego de trabalhadores e
separando as pessoas de suas famílias e amigos, na crença justificada
(supõe-se) de que estão mitigando um problema maior.
Talvez. Mas como se pode ter certeza? E por que isso é importante?
Mais assustador do que o vírus — ao menos para este articulista que,
estando saudável, se sente bastante seguro quanto às suas chances de
sobreviver a um vírus que quase com certeza vai ser apenas uma gripe
pesada, na pior das hipóteses — são essas forças governamentais que
decidiram assumir o controle do bonde.
Levando o dilema ao extremo, o governo acha que, ao propor a
paralisação do país, ele salvará a vida das pessoas num dos trilhos ao
custo de apenas quebrar as pernas dos demais.
Cálculo moral
Mas o cálculo moral depende de quantas vidas serão ou poderão ser
salvas (não é a mesma coisa) em comparação com os meios de sustento
destruídos e outros efeitos nocivos.
E a resposta a essa pergunta deve levar em conta o fato de que os
meios de sustento destruídos causarão a perda de vidas — perdas que
talvez sejam menos visíveis do que as mortes causadas pelo vírus.
Todos sabemos por que os governos estão agindo assim. Ao proibirem as
viagens e obrigarem as empresas a fechar, por exemplo, eles estão
tentando “achatar a curva” — diminuir o pico de infecção da Covid-19 na
esperança de que uma porção maior dos doentes possa sem tratada com
sucesso. Isso significa que o pico será retardado, mas a estratégia não
reduzirá a quantidade total de pessoas infectadas ou que morrerão por
causa do vírus no longo prazo (embora isso possa acontecer também).
Agora estou muito próximo de pessoas que já perderam o emprego ou que
ficarão na rua por causa do fechamento obrigatório das empresas. Se
você não puder alimentar e abrigar sua família, então no balanço geral
das probabilidades as consequências para você e os seus serão piores do
que as do vírus — sobretudo se vocês forem saudáveis. (Números recentes
da Itália mostram que 99% dos mortos por coronavírus tinham
comorbidades).
Os efeitos da pobreza e do isolamento se acumularão com o tempo – e
alguns deles talvez alcancem picos como os da doença. Alguns desses
efeitos estão relacionados à falta de acesso a recursos materiais e
outros às consequências psicológicas de problemas para os quais não
temos ainda dados.
Em certo sentido, a reação mundial é como a do aluno que acabou de
descobrir o utilitarismo, mas não entendeu direito a aula. O
utilitarismo é a filosofia moral que diz que a ação boa ou certa é
aquela que gera um bem maior para a maioria dos pessoas. Um dos
problemas fundamentais disso é exemplificado pela seguinte pergunta: se
pudéssemos salvar 10 pessoas matando uma e doando seus órgãos para essas
10 pessoas, deveríamos fazer isso? Há um motivo para a resposta ser
negativa. Ainda assim, no caso da reação à Covid-19 muitas jurisdições
não veem problema em pôr em risco a saúde material e física de muitas
pessoas a fim de salvar outras.
Seja você um utilitarista ou não, você tem de admitir a importância da pergunta e do princípio em jogo.
Antes que você decida se é ou não justo questionar as políticas
oficiais, lembre-se de que não usamos a força nem para tirar um rim de
uma pessoa saudável e salvar a vida de outra — ainda que a remoção de um
os rins não tenha consequências maiores para o doador.
Então por que se pode tirar um emprego ou um lar ou o sustento de uma
pessoa para salvar qualquer outro desconhecido — sobretudo quando esse
outro não é vítima de uma ação maligna e é livre para agir para evitar
um dano em potencial?
O termo fundamental aqui – a palavra moral — é, claro, “obrigatoriedade”.
Escolhas
Temos de revisar nossa analogia com o Dilema do Bonde. Para adequá-lo
à situação na qual nos encontramos diante da ameaça da Covid-19,
precisamos mencionar que as pessoas presas aos trilhos podem agir. Elas
sabem que o bonde está se aproximando e a maioria delas (embora não
todas) pode fazer o que quiser para sair dos trilhos.
Ainda que as pessoas que temem a Covid-19 possam se precaver, aquelas
que perderam o emprego ou moradia por causa das medidas impostas pelo
governo não têm voz para contestar o que está lhes acontecendo. Se os
restaurantes na minha cidade, Seattle, permanecerem abertos, ninguém
será obrigado a frequentá-los e se expor ao risco. Todos os envolvidos —
proprietários, trabalhadores e clientes — teriam de fazer uma escolha.
Por outro lado, o trabalhador que ganha salário mínimo e que foi
demitido ou o empresário que não consegue cobrir os custos não têm como
se proteger.
Mesmo assim, muitas pessoas veem com bons olhos a forma como o
governo está agindo. É compreensível e a razão para isso é simples.
Muitos de nós acreditamos que “se permitirmos que as pessoas façam essas
escolhas, aumentará a probabilidade de o vírus me matar”.
Talvez. Mas a validade disso depende sobretudo de você. Que tal as seguintes alternativas mais justas e proporcionais?
Alternativas
Se tenho mais medo da possibilidade de perder meu sustento fechando
meu restaurante ou sendo demitido, então me deixe trabalhar. Se tenho
mais medo da probabilidade de perder minha vida comendo ou trabalhando
num restaurante, deixe-me ficar em casa.
Claro que as pessoas devem dispor das melhores informações possíveis
para avaliar e comparar os riscos cotidianamente – mas por que lhes
tiraríamos isso quando há vidas e empregos em jogos e as circunstâncias
de cada um são tão diferentes?
Entre as informações estariam a baixa probabilidade de receber
tratamento com os hospitais lotados — assim você saberia do risco que
estaria correndo ao frequentar estabelecimentos comerciais como
trabalhador ou consumidor. Mesmo sob condições semidraconianas (e essa
não é uma palavra dura demais para uma medida que tira o emprego de
dezenas de milhares de pessoas e possivelmente as joga na mendicância),
você provavelmente não vai conseguir tratamento quando precisar porque
talvez não haja leitos disponíveis.
Então por que não dar às pessoas informações sobre todos esses
fatores e riscos e deixar que elas decidam sozinhas por si mesmas ou
para seus entes queridos, inclusive os filhos?
Ao deixarmos de fazer isso, estamos num caminho bastante perigoso.
Revisando o Dilema do Bonde
As projeções mais pessimistas de mortes por coronavírus mencionam 3%
da população. Alguém já fez as contas de quantas vidas serão perdidas
por causa das consequências econômicas de uma quarentena que durará o
necessário para que essa doença desapareça, tendo em mente o fato de
que, quanto mais retardarmos o contágio, mais tempo levará para que a
doença atinja seu pico e para que o povo fique imune a ela? Alguém já
tentou calcular a expectativa de vida de um idoso com a saúde frágil em
relação ao ganha-pão de famílias inteiras? Será que queremos pensar
nesses termos?
Se a resposta é “não”, então, para voltar ao dilema do bonde, como o
governo pode dizer qual trilho tem menos pessoas ou pessoas menos
vulneráveis — e por que caminho ele deve seguir?
Vamos fazer uma última modificação na analogia do bonde aplicada ao
coronavírus: você não está no comando, o governo é que está e você é uma
das pessoas nos trilhos. A ação do governo que você apoia provavelmente
tem relação com o trilho no qual você se encontra — e isso dependerá da
sua personalidade, saúde física e financeira, entre outros fatores.
Se você teme pegar o vírus (talvez por causa da saúde debilitada ou
porque você fica ansioso), é mais provável que apoie as decisões do
governo de arruinar o sustento dos outros para protegê-lo. Se você não
teme (talvez porque é jovem, saudável ou está mais preocupado em perder
seu emprego), é mais provável que você se ressinta dos danos causados ao
seu sustento e ao dos outros e se preocupe com as consequências de
longo prazo das decisões que estão sendo tomadas.
Em outras palavras, sua preferência depende de seus princípios — e também de seu enviesamento.
Como estamos lidando com vidas e mortes, temos o dever moral de
analisar esse olhar enviesado antes de permitir que qualquer um tome a
decisão quanto ao rumo do bonde, sobretudo porque, uma vez que deixemos
que o governo assuma o controle, pode apostar que ele vai querer mudar o
rumo do bonde o tempo todo.
Há vários enviesamentos em ação. Eis aqui apenas três deles.
O primeiro, o efeito pseudocerteza, é bastante claro. Trata-se da
tendência de fazer escolhas avessas ao risco (como evitar que as pessoas
façam negócio) quando se espera um resultado positivo, mas fazendo
escolhas de risco (como paralisar toda a economia) para evitar
resultados negativos.
O segundo é o viés de otimismo. Trata-se da tendência de subestimar a
possibilidade de consequências indesejáveis (como as consequências da
destruição de milhares de empresas, milhões de empregos e meses de
educação) e superestimar consequências agradáveis (como a redução na
quantidade de pessoas infectadas pelo vírus).
O terceiro é o viés de disponibilidade. Isto é, a tendência de dar
peso demais a consequências sobre as quais temos mais informações e
conhecimento (como a morte por causa de uma doença) e peso de menos para
consequências sobre as quais não temos informações e não podemos
conceber (como, e eu odeio me repetir, as consequências da destruição de
milhares de empresas, milhões de empregos e meses de educação).
Em relação a tudo isso, lembre-se de que muitas das medidas que estão
sendo tomadas por autoridades emergenciais para proteger vidas no curto
prazo terão consequências incalculáveis sobre a saúde e a vida tanto no
curto quanto no longo prazo.
Mais uma vez, será que alguém fez as contas — ou só estamos reagindo?
E, se estamos apenas reagindo, será que (para usar uma expressão da
moda nos círculos progressistas) “fizemos a autocrítica”?
Voltemos à terceira preconcepção – a do viés de disponibilidade. É
dela que são feitas as tiranias, porque ela faz com que nós, o povo,
abdiquemos de nossos direitos civis (e, ao menos nos Estados Unidos,
constitucionais) “para nosso próprio bem”. Num momento de medo ou
pânico, preferimos uma segurança precária à liberdade individual
(“Aqueles que abdicam da liberdade fundamental para adquirirem uma
segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança”, como
disse Benjamin Franklin), assim como a segurança à responsabilidade
individual.
"É fácil para você dizer"
Você pode desprezar tudo o que foi dito aqui com um “é fácil para
você dizer”. E você estaria com toda a razão: é mesmo muito fácil para
mim.
Mas meu ponto é que eu — e você — deveria ao menos ter voz quando há
tanta coisa em jogo — e morrer por causa de um vírus ainda é uma forma
bastante improvável de perder a partida.
Voz e escolha. A moralidade e a liberdade exigem essas duas coisas
apenas porque o fato de eu ter escolha não significa que a sua escolha
foi tirada e não o condena à morte. Não chega nem perto disso.
Se, por outro lado, a voz e a escolha forem tiradas de mim e de
todos, então é melhor você ser capaz de olhar nos olhos da mãe que ganha
salário mínimo e dizer que não há nada de mau no fato de ela perder o
emprego a fim de reduzir em uma fração sua chance de morrer por causa de
uma doença.
E se pessoas como eu saírem para comer e contraírem a doença, você
pode me desprezar de novo, já que estarei sofrendo em casa, uma vez que
não haverá leitos o bastante no hospital.
Não que isso fosse fazer muita diferença para mim se eu perdesse meu
plano de saúde — e meu teto — juntamente com meu trabalho e minha
liberdade.
Robin Koerner é o fundador da WatchingAmerica.com, consultor e escritor.
© 2020 FEE. Publicado com permissão. Original em inglês.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário