O problema, como ocorre em dez de cada dez casos de desordem econômica e
social, são os brasileiros que precisam trabalhar todos os dias para
não cair automaticamente na miséria. J. R. Guzzo, texto publicado na Oeste:
Quem é a favor e quem é contra o “confinamento” total, absoluto e por
tempo indeterminado para combater a epidemia do coronavírus? Esqueça um
pouco a política. Em política, é fácil: é a favor do isolamento, em
linhas gerais, quem é contra o governo, e quanto mais detesta o
presidente da República, mais a favor fica. Pode jogar no mesmo saco os
governadores que imaginam que vão ser escolhidos para o lugar dele nas
eleições presidenciais de 2022, como o de São Paulo, os que apostam que o
confinamento vai destruir a economia (e com isso acabar com Bolsonaro) e
os vira-casaca que sentiram cheiro de fraqueza no governo e acham que
vão lucrar pulando fora do barco.
A questão são todos os outros – e esses “todos”, desta vez, não são
uma “leitura” de sociólogo ou pesquisa de ibope, mas milhões de
brasileiros de carne e osso. Muito simplesmente, há uma enorme parte da
população que está com medo de morrer – veem todos os dias as fileiras
de caixões na Itália, a computação em tempo real do crescimento do
número e mortos e as previsões que anunciam, por exemplo, “2 milhões de
mortos no Brasil”, e sabe lá mais quantos no mundo, e acreditam que o
melhor jeito de salvar a própria vida é ficar em casa. Este é um
sentimento muitíssimo poderoso. Não há ciência que vença isso:
informação, lógica, cálculos, opiniões médicas divergentes e tudo o que
não estiver em acordo com o duplo lema “fique em casa-fecha tudo” não
vai convencer ninguém. O confinamento é a única saída.
Todas essas pessoas só vão aceitar a volta da produção, a abertura
das escolas e tudo mais que compõe a vida normal de uma sociedade quando
o contágio parar. Só aí vão achar que é seguro sair de casa –
eventualmente, para ser assaltado e morrer com uma bala na cabeça;
50.000 brasileiros, aliás, foram assassinados em 2019. Passarão o resto
da vida, de qualquer forma, convencidos de que só escaparam do
coronavírus porque foram capazes de fazer a quarentena. Não há nenhuma
utilidade, portanto, em determinar quem está certo e quem está errado
nessa história. O cidadão isolado tem certeza das suas razões. Tem,
também, o pleno direito de defender cada uma delas.
Obviamente, o isolamento completo e a proibição de permitir qualquer
aglomeração de gente, em qualquer lugar – que hoje resolveram chamar de
confinamento “horizontal” – reduz o contágio pelo vírus e limita o
número de infectados. A questão é a maneira pela qual essas medidas
devem ser executadas, e as inúmeras gradações, variáveis e ênfases
envolvidas nelas. Mas isso, para quem está a favor de ficar em casa até
que a peste acabe, não é uma questão moral. É apenas uma decisão de
ordem prática: o que eu acho que devo fazer para aumentar as minhas
chances de não pegar a epidemia? Como muita gente está certa de que o
melhor é isolar-se, é daí que vem todo esse apoio dado à repressão
sanitária das autoridades locais. As pessoas podem não gostar dessas
autoridades; mas são a favor, descontados os exageros e as variadas
exibições de estupidez, do que elas estão fazendo.
Nem poderia ser de outra maneira: nenhum governo conseguiria impor o
que está sendo imposto à população se apenas uma pequena minoria
estivesse a favor. Pode ser uma minoria – e as rachas no apoio ao
isolamento “horizontal” podem estar começando a se tornar mais amplas e
mais frequentes – mas sem dúvida há muita gente dentro dela. Quem são?
Não há informações sólidas a respeito, mas de um modo geral se pode
dizer que está a favor do “fica em casa-fecha tudo” quem não precisa,
realmente, de dinheiro no bolso para enfrentar o dia seguinte. Coloque
ai, por exemplo , a maior parte dos 12 milhões de funcionários públicos e
dos aposentados – sobretudo os que têm renda suficiente para não
precisar complementá-la com nenhuma atividade remunerada. Não é nenhum
grupinho que possa ser ignorado; é gente que não acaba mais, somada às
suas famílias.
Junta-se a todo esse povo alguns outros milhões de habitantes dos
múltiplos degraus da classe média que não dependem de emprego fixo ou
trabalho diário para sobreviver. Há os que podem trabalhar à distância,
em suas próprias casas – a turma do “teletrabalho”. Há os que recebem
aluguéis, ou outras rendas, ou que podem recorrer à reservas financeiras
que acumularam ao longo do tempo. Há os que podem fazer crédito aos
clientes. Há os investidores. Muitos profissionais liberais, prestadores
de serviços que podem receber depois, comerciantes com fôlego para
perder faturamento – ninguém, aí, vai morrer por ficar em casa, desde
que a quarentena não dure pelo resto da vida. Acham mais seguro, e não
correm o risco de ter dificuldades financeiras sérias ou imediatas.
O problema, como ocorre em dez de cada dez casos de desordem
econômica e social, são os brasileiros que precisam trabalhar todos os
dias para não cair automaticamente na miséria. São os que estão perdendo
seus empregos, aos milhares a cada dia, e não têm onde achar outros.
São os investidores que arriscaram suas economias numa atividade
produtiva qualquer, e que se encontram subitamente às portas da
falência. São as empresas que estarão mortas ou aleijadas quando os
governadores lhes derem permissão para funcionar de novo. Mas essa gente
é feita de celofane – os que proíbem, os que pensam por todos, os que
condenam e absolvem, olham para ela e não enxergam ninguém. São
invisíveis. Sempre foram. Continuarão a ser.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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