Existem características únicas, desenvolvidas nos retratos do
Renascimento italiano, que serviram de modelo para o restante da Europa
até o final do século XVII. Artigo de Laura Ferrazza para o Estado da Arte:
Se o desejo pela representação de si já existia antes do
Renascimento, foi durante esse período que ele atingiu seu apogeu.
Movida pelos ideais do humanismo e florescendo nas cidades italianas, a
imagem de si tomou novas e importantes características a partir do
século XV. As famílias de nobres e comerciantes, que dominavam as
cidades-estados italianas, usaram seu crescente poder para investir em
arte. Assim surgiu o sistema do mecenato, por meio do qual uma cidade,
uma corte ou mesmo uma família patrocinava determinados artistas. Foi
também nesse período que surgiu a noção do artista intelectual. Antes, o
trabalho artístico era visto como algo menor, uma tarefa que demandava o
uso das mãos e era realizada por artesãos especializados. Durante o
Renascimento, os artistas modificaram a visão quanto ao estatuto de sua
produção, sublinhando a necessidade de um conhecimento intelectual
vinculado ao prático. Assim, a autoria das obras tornou-se relevante,
cada artista desenvolvendo em certa medida seu estilo dentro das novas
diretrizes. A busca pela individualidade incentivou a produção de
autorretratos pelos grandes mestres. Foi na Renascença Italiana que o
retrato ganhou uma nova dimensão e as principais bases da restratística
surgiram. Elas foram lentamente modificadas nos séculos seguintes, mas
demoraram muito para serem confrontadas.
Existem características únicas, desenvolvidas nos retratos do
Renascimento italiano, que serviram de modelo para o restante da Europa
até o final do século XVII. Quando o homem foi colocado no centro dos
questionamentos filosóficos, a religião não foi excluída, mas a visão
sobre ela mudou. Além dos quadros com temas bíblicos, a admiração pela
cultura greco-romana e seu legado artístico se refletiram em novos temas
para a arte. Além disso, a busca por um nova forma de representação e
espacialidade visual marcaram a escolha dos artistas renascentistas.
Assim, o retrato também ganha força, pois um dos temas de interesse era o
homem e seu lugar no mundo.
O retrato desse período busca captar o caráter próprio de um
indivíduo e desempenha ao mesmo tempo uma função política e cultural.
Inicialmente eram retratos coletivos, em geral dos encomendantes de
obras religiosas, retratados na cena escolhida. Personagens reais e
contemporâneos ocupam às vezes o lugar de personagens bíblicos, como no
afresco pintado por Benozzo Gozzoli (1420 – 1497) para a capela da
residência da família Médici, uma encomenda feita por Lorenzo, o
Magnífico (1449 – 1492). Nominalmente, o tema que reveste todas as
paredes da pequena capela é “A jornada dos magos a Belém” (1469 – 1472).
Contudo, sabe-se que nesse magnífico cortejo, que pouco nos lembra os
tempos de Jesus, estão todos os proeminentes cidadãos florentinos
daquela época. Em destaque, está o próprio Lorenzo, como um dos reis
magos, seguido por seu pai e seu avô, todos a cavalo. Outros membros da
família seguem o cortejo andando. Para nós isso, não parece ser um
retrato, mas uma encenação; isso era algo comum para a sociedade
florentina do século XV. Porém, pouco a pouco, foi ganhando destaque a
arte do retrato individual, no qual um único individuo é representado
num recorte que evidencia seu rosto e, portanto, seus traços pessoais.
Giorgio Vasari (1511 – 1574) utiliza em seus escritos sobre a pintura
renascentista de retratos os seguintes termos: ritrarre, ritratto di ou
dal naturale. Essas expressões eram utilizadas para indicar uma nova
prática na pintura que levava em conta a imagem viva de determinado
sujeito, ou seja, a representação de uma face individual numa imagem. A
palavra ritrarre queria dizer ainda a reprodução das feições de uma
pessoa através da concessão a uma face de traços individualizados
criados livremente. Isso significa que, mesmo que houve-se uma
observação do modelo, não era sua aparência real que importava. Os
traços individuais recebiam a interpretação do artista, passando do
individual ao ideal. Isso explica porque algumas figuras famosas
aparecem com rostos tão diferentes, conforme o artista que o retratou.
Um bom exemplo na variação da face dos retratados são os retratos da
musa dos renascentistas do quatroccento Simonetta Vespucci (1453 –
1476), personagem trágica, morta aos 23 anos. Foi amante de Giuliano de
Médici, irmão mais jovem de Lorenzo. Considerada a mais bela jovem de
Florença, muitos nutriam por ela um amor nos moldes do platonismo. O
poeta Angelo Poliziano dedicou-lhe belos versos; dizem que mesmo Lorenzo
era fascinado pela beleza de Simonetta. Ela teria servido de inspiração
para o rosto da Vênus de Botticelli, no famoso quadro pintado em 1485,
embora nessa época ela já estivesse morta. Mas Botticelli já havia
pintado um retrato de Simonetta quando ela estava viva: “Retrato de
Simonetta Vespucci como ninfa”, de 1475. Já seu colega artista Piero de
Cosimo realizou um retrato mais sensual da jovem musa: “Retrato de
Simonetta Vespucci como Cleópatra,” datado de aproximadamente 1480
(nesse caso, seria póstumo). Esses dois retratos nos mostram não apenas
um rosto diferente para a mesma pessoa, mas a interpretação dos artistas
sobre esse rosto. Além disso, nos revelam uma moda que iria perdurar na
retratística europeia, a de representar a pessoa como personagem
histórica ou mitológica da antiguidade.
Os artistas do renascimento tinham mais de um caminho a seguir quando
concebiam um retrato. Podiam refletir no personagem representado o novo
espírito artístico, ou espelhar o lugar do sujeito na sociedade. Na
maioria das vezes, o artista acabava optando por uma forma expressiva
que unisse as duas anteriores. Assim, a semelhança com o modelo ou
pormenores podiam perder importância frente aos novos ideais artísticos.
O retrato se constituiu como gênero artístico autônomo no final do
século XV e início do XVI. Nesse curto espaço de tempo, segundo Jacob
Burckhardt (1818 – 1897), houve o triunfo de retrato histórico e a
afirmação da independência do gênero do retrato, com o completo
predomínio do retrato individual. Um dos pintores que mais influenciaram
a trajetória do retrato individual foi Rafael Sanzio (1483 – 1520), que
apregoava o encontro entre os valores universais e a figura do homem,
promovendo um equilíbrio clássico entre semelhança e idealização. Assim,
o Renascimento lançou as bases da retratística moderna, que iria
influenciar a representação de importantes figuras históricas do
contexto europeu moderno e a própria criação da imagem idealizada dos
soberanos da época. Mais do que buscar a verossimilhança, o que devemos
pensar frente aos retratos pintados é todo um universo de intenções,
pensamentos, técnicas artísticas, mas também quem era esse sujeito que
se faz representar numa imagem.
Laura Ferrazza é doutora em História da Arte pela Sorbonne/PUCRS e pesquisadora do PPG de História da UFRGS.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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