segunda-feira, 30 de março de 2020

Guzzo: "Os 'invisíveis' pagam a conta".


O problema, como ocorre em dez de cada dez casos de desordem econômica e social, são os brasileiros que precisam trabalhar todos os dias para não cair automaticamente na miséria. J. R. Guzzo, texto publicado na Oeste:

Quem é a favor e quem é contra o “confinamento” total, absoluto e por tempo indeterminado para combater a epidemia do coronavírus? Esqueça um pouco a política. Em política, é fácil: é a favor do isolamento, em linhas gerais, quem é contra o governo, e quanto mais detesta o presidente da República, mais a favor fica. Pode jogar no mesmo saco os governadores que imaginam que vão ser escolhidos para o lugar dele nas eleições presidenciais de 2022, como o de São Paulo, os que apostam que o confinamento vai destruir a economia (e com isso acabar com Bolsonaro) e os vira-casaca que sentiram cheiro de fraqueza no governo e acham que vão lucrar pulando fora do barco.

A questão são todos os outros – e esses “todos”, desta vez, não são uma “leitura” de sociólogo ou pesquisa de ibope, mas milhões de brasileiros de carne e osso. Muito simplesmente, há uma enorme parte da população que está com medo de morrer – veem todos os dias as fileiras de caixões na Itália, a computação em tempo real do crescimento do número e mortos e as previsões que anunciam, por exemplo, “2 milhões de mortos no Brasil”, e sabe lá mais quantos no mundo, e acreditam que o melhor jeito de salvar a própria vida é ficar em casa. Este é um sentimento muitíssimo poderoso. Não há ciência que vença isso: informação, lógica, cálculos, opiniões médicas divergentes e tudo o que não estiver em acordo com o duplo lema “fique em casa-fecha tudo” não vai convencer ninguém. O confinamento é a única saída.

Todas essas pessoas só vão aceitar a volta da produção, a abertura das escolas e tudo mais que compõe a vida normal de uma sociedade quando o contágio parar. Só aí vão achar que é seguro sair de casa – eventualmente, para ser assaltado e morrer com uma bala na cabeça; 50.000 brasileiros, aliás, foram assassinados em 2019. Passarão o resto da vida, de qualquer forma, convencidos de que só escaparam do coronavírus porque foram capazes de fazer a quarentena. Não há nenhuma utilidade, portanto, em determinar quem está certo e quem está errado nessa história. O cidadão isolado tem certeza das suas razões. Tem, também, o pleno direito de defender cada uma delas.

Obviamente, o isolamento completo e a proibição de permitir qualquer aglomeração de gente, em qualquer lugar – que hoje resolveram chamar de confinamento “horizontal” – reduz o contágio pelo vírus e limita o número de infectados. A questão é a maneira pela qual essas medidas devem ser executadas, e as inúmeras gradações, variáveis e ênfases envolvidas nelas. Mas isso, para quem está a favor de ficar em casa até que a peste acabe, não é uma questão moral. É apenas uma decisão de ordem prática: o que eu acho que devo fazer para aumentar as minhas chances de não pegar a epidemia? Como muita gente está certa de que o melhor é isolar-se, é daí que vem todo esse apoio dado à repressão sanitária das autoridades locais. As pessoas podem não gostar dessas autoridades; mas são a favor, descontados os exageros e as variadas exibições de estupidez, do que elas estão fazendo.

Nem poderia ser de outra maneira: nenhum governo conseguiria impor o que está sendo imposto à população se apenas uma pequena minoria estivesse a favor. Pode ser uma minoria – e as rachas no apoio ao isolamento “horizontal” podem estar começando a se tornar mais amplas e mais frequentes – mas sem dúvida há muita gente dentro dela. Quem são? Não há informações sólidas a respeito, mas de um modo geral se pode dizer que está a favor do “fica em casa-fecha tudo” quem não precisa, realmente, de dinheiro no bolso para enfrentar o dia seguinte. Coloque ai, por exemplo , a maior parte dos 12 milhões de funcionários públicos e dos aposentados – sobretudo os que têm renda suficiente para não precisar complementá-la com nenhuma atividade remunerada. Não é nenhum grupinho que possa ser ignorado; é gente que não acaba mais, somada às suas famílias.

Junta-se a todo esse povo alguns outros milhões de habitantes dos múltiplos degraus da classe média que não dependem de emprego fixo ou trabalho diário para sobreviver. Há os que podem trabalhar à distância, em suas próprias casas – a turma do “teletrabalho”. Há os que recebem aluguéis, ou outras rendas, ou que podem recorrer à reservas financeiras que acumularam ao longo do tempo. Há os que podem fazer crédito aos clientes. Há os investidores. Muitos profissionais liberais, prestadores de serviços que podem receber depois, comerciantes com fôlego para perder faturamento – ninguém, aí, vai morrer por ficar em casa, desde que a quarentena não dure pelo resto da vida. Acham mais seguro, e não correm o risco de ter dificuldades financeiras sérias ou imediatas.

O problema, como ocorre em dez de cada dez casos de desordem econômica e social, são os brasileiros que precisam trabalhar todos os dias para não cair automaticamente na miséria. São os que estão perdendo seus empregos, aos milhares a cada dia, e não têm onde achar outros. São os investidores que arriscaram suas economias numa atividade produtiva qualquer, e que se encontram subitamente às portas da falência. São as empresas que estarão mortas ou aleijadas quando os governadores lhes derem permissão para funcionar de novo. Mas essa gente é feita de celofane – os que proíbem, os que pensam por todos, os que condenam e absolvem, olham para ela e não enxergam ninguém. São invisíveis. Sempre foram. Continuarão a ser.
 
BLOG ORLANDO TAMBOSI

Nenhum comentário:

Postar um comentário