A preocupação de governos e empresas multinacionais de não depender
apenas de um país (no caso, a China) pode abrir novas frentes - e isto
pode ser bom para o Brasil, se fizer a lição de casa. Diogo Schelp para a
Gazeta:
Em algum momento, possivelmente em poucos meses, a epidemia do novo
coronavírus vai acabar, como ocorreu com os outros episódios recentes de
infecções virais de alcance global. O impacto mais duradouro será o
econômico, como atesta o pessimismo demonstrado nas bolsas de valores em
diversos países nos últimos dias. O susto está sendo tão grande que a
relação do mundo — e aí estamos falando tanto de governos quanto de
grandes corporações — com a China nunca mais será a mesma. O Brasil
também pode ser afetado por essa mudança.
A questão nem é tanto a responsabilidade que a China tem como local
de origem e propagação da doença. O que vai fazer a ficha cair para os
detentores de poder e capital é que não se pode depender tanto da China
como o chão de fábrica do mundo ou como casa de máquinas do crescimento
econômico global.
O imediatismo comercial e industrial terá de ser substituído por um
pensamento mais estratégico, geopolítico até. Essa mudança, se for
profunda, pode se revelar uma oportunidade para países emergentes e
razoavelmente industrializados como o Brasil. Mas voltarei a isso mais
para frente.
Antes, é preciso saber de que tipo de dependência estamos falando.
Quando a China enfrentou uma epidemia de SARS (síndrome respiratória
aguda grave), que se iniciou no final de 2002 e agravou-se no início do
ano seguinte, o impacto na economia foi limitado. O PIB do país crescia
de maneira alucinante (mais de 10% ao ano) e, por isso, registrou apenas
uma desaceleração entre o primeiro e o segundo trimestres de 2003. O
efeito na economia global tampouco foi catastrófico.
Mas há duas grandes diferenças para a situação atual. A primeira é
que a China já vive uma tendência de desaceleração econômica, com uma
projeção de crescimento anual do PIB de pouco mais de 5% em 2020. A
segunda, crucial, é que o tamanho da economia chinesa hoje é oito vezes
maior do que em 2003. Como consequência, o peso do país na produção de
riqueza global é muito maior.
O mundo, atualmente, é muito mais dependente da China do que a China
do mundo. A maior dependência do mundo em relação à China reside
principalmente no fato de o país ter se tornado o maior exportador
global de produtos intermediários (necessários para a fabricação de
outros bens em outros países). Já a redução na dependência da China em
relação ao mundo explica-se porque agora o crescimento chinês
sustenta-se mais no consumo interno do que nas exportações.
O que deve levar o mundo a rever sua relação econômica com a China é
essa dependência em relação ao país como principal fornecedor de
produtos intermediários: os chineses abastecem um terço desse mercado.
Com isso, quando um espirro de coronavírus suspende a atividade de uma
fábrica ou interrompe o funcionamento da estrutura logística de
transportes, o efeito imediato é o corte brusco na cadeia de suprimentos
global.
E é exatamente por isso que a Apple e outras empresas multinacionais
estão há várias semanas buscando fornecedores alternativos para fazer
seus produtos.
Um exemplo próximo de nós é o das peças para a indústria elétrica e
eletrônica. Quatro em cada dez componentes usados pelas empresas
brasileiras do setor são importados da China. Com o coronavírus e a
necessidade de manter os trabalhadores em casa, a produção desses itens
na China caiu e a indústria brasileira se viu obrigada a também reduzir o
ritmo.
Outro exemplo dramático é o da indústria farmacêutica. A China é a
maior produtora mundial de insumos para o setor. Dependendo do princípio
ativo utilizado nos remédios, é a única fornecedora. Vêm da China 80%
dos medicamentos consumidos nos Estados Unidos, sem falar em
equipamentos médicos ou seus componentes.
Do ponto de vista estratégico, isso já não fazia sentido antes mesmo
do coronavírus. Imagine se os Estados Unidos se vissem envolvidos em uma
disputa política ou mesmo em uma guerra com a China e Pequim resolvesse
proibir subitamente a venda desses produtos vitais para os americanos?
A questão dos itens farmacêuticos já vinha sendo discutida nos
Estados Unidos antes mesmo da epidemia de coronavírus e era um dos
argumentos de assessores do presidente Donald Trump para a guerra
tarifária com a China: segundo eles, é preciso fazer algo para reduzir a
dependência americana de importações chinesas, especialmente de
produtos estratégicos.
A guerra de tarifas entre Estados Unidos e China já tinha levado
executivos de diversas empresas a concluir que seria necessário procurar
fornecedores alternativos para insumos essenciais para os seus
negócios. Pouco foi feito, porém, nesse sentido, pois é muito difícil
encontrá-los. A China tem uma combinação quase imbatível de mão de obra
flexível e boa infraestrutura de produção, além de um mercado consumidor
interno em si muito atraente.
A crise do coronavírus e o fechamento temporário de diversas
fábricas, em muitos casos de cidades inteiras, na China, porém, podem
ser o que faltava para tirar as empresas da inércia. Para quem produz na
China para vender na China, como ocorre com diversas montadoras de
automóveis que tiveram que parar a produção nas últimas semanas, não há
muito o que fazer. Outros setores, porém, ganharam um incentivo
redobrado para não depender tanto da China como local de produção ou
como fornecedor de componentes essenciais.
Isso abre oportunidade para países que dispõem de uma indústria bem
estabelecida, infraestrutura razoável e mão-de-obra barata e
relativamente qualificada. Outros países da Ásia preenchem esses
requisitos, mas estão demasiadamente conectados às cadeias de valor
chinesas para servirem ao propósito de redução da dependência. Sobram
como opção o México, alguns países do Leste Europeu e, por que não, o
Brasil. Afinal, em alguns setores, como o farmacêutico, não nos falta
expertise.
A China, em um cenário pós-coronavírus, vai continuar sendo o chão de
fábrica do mundo. Mas um pensamento mais estratégico de governos e
empresas multinacionais preocupados em não depender apenas de um país
pode abrir novas frentes de investimentos em produção industrial.
Restará ao Brasil fazer a lição de casa para atraí-los.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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