Para fingir que a Corte
não está rachada ao meio, Toffoli negará sentido ao "voto de Minerva".
Artigo de José Nêumanne, publicado pelo Estadão:
O vulgo acha que cabe
ao primeiro psicanalista, o austríaco Sigmund Freud, o dom de poder
entender qualquer ação humana. Para explicar, mas nunca justificar, as
duas sessões da semana passada em que o Supremo Tribunal Federal (STF)
adiou sua decisão sobre a extinção da jurisprudência da eventualidade da
prisão para condenados em segunda instância, talvez seja necessário
recorrer à teratologia. Ou seja, ao estudo médico das anomalias de
origem fetal. Homo sum: humani nil a me alienum puto (Sou humano, nada
do que é humano me é estranho), escreveu o poeta romano Públio Terêncio,
no século 2 a. C.
Qualquer ser humano
com quociente de inteligência (QI) de mais de 30 só se conformará com o
que viu no julgamento do plenário sobre culpa, inocência, prisão e
impunidade se aceitar o conformismo do verso clássico. Que consolo lhe
poderá restar se se dispuser a entender por que um tema de exclusivo
interesse de bandidos milionários (com fortuna amealhada no furto
indecente do fruto do empenho e do engenho de milhões de trabalhadores
pobres) ou de cidadãos remediados da classe média tem sido repetido de
forma tão insistente como esse? Que remédio curará a náusea causada pelo
espetáculo abjeto de bajulação e autolatria perpetrado pelo mais antigo
dos máximos julgadores, o decano Celso de Mello, e o presidente da mais
autoindulgente das Cortes, Dias Toffoli?
O chamado pretório
excelso nem sempre atuou de molde a justificar a pomposa nobreza dessa
denominação. Mas nunca antes na história dela – como diria o patrono da
indicação da maioria deles (três dele e três do poste), o multicondenado
Lula – negou sua pompa de forma tão absoluta. A celebração de bodas de
zinco do nada excelso chefe do bando, ao que saiba a plebe ignara, que
lhes paga salários, mas não frui benefícios, é inusitada. Mas lógica. O
procurador indicado pelo advogado Saulo Ramos e nomeado por Sarney é do
mesmo estofo do advogadinho que só serviu a petistas.
Toffoli, reprovado
duas vezes em concursos públicos para a magistratura de primeiro grau,
teve seus anos de serviço prestados aos autores do maior assalto ao
erário da História da Republica. A saga foi celebrada no livro
Democracia e Sistema de Justiça, coordenado pelo colega Alexandre de
Moraes e pelo advogado-geral da União de Bolsonaro, André Luiz de
Almeida Mendonça. O primeiro, lançado no serviço público por Kassab e
Alckmin e nomeado para o mais alto posto por Temer, goza com seu
primeiro chefe na gestão pública, o ex-prefeito de São Paulo, de
conceito similar à descrição de Mello pelo ex-ministro da Justiça da
Nova República no livro Código da Vida, com expressão escatológica.
O outro coordenador
tem ótimas razões para louvar sempre que possível o padrinho secreto,
graças a quem escalou do mínimo ao máximo degraus da Advocacia-Geral
(AGU): tem sido aquinhoado com prenúncios para lá de promissores pelo
presidente da República. Eleito para combater o Partido dos
Trabalhadores (PT), o capitão Bolsonaro define-o sempre que pode como
“mais supremável do que Sergio Moro”, por ser “terrivelmente
evangélico”, a ocupar justamente o lugar de Celso de Mello quando se
aposentar do STF, em novembro de 2020.
O homenageado
suspendeu a primeira sessão da votação para prestigiar com alguns
autores de textos e os dois organizadores o “beijem minha mão”. Vovó
Nanita diria que são da mesma laia. E com toda a razão. Moraes relata o
infame inquérito de Toffoli para calar a boca (alô, alô, Cármen Lúcia)
de cidadãos que erguerem a voz contra ministros da Casa, seus parentes e
aderentes. E assinou a decisão de censurar a revista Crusoé. A futura
promoção de Mendonça à máxima judicatura foi precedida por decisões
monocráticas de Toffoli e Gilmar livrando o primogênito de Jair e as
esposas deles mesmos dos rigores da lei.
Na sessão posterior à
louvação, Rosa Weber foi autorizada por Toffoli a exaurir a paciência
de colegas e ouvintes com um voto mal escrito e precariamente lido,
negando suas três intervenções anteriores ao esconder na gaveta do
toucador sua falsa obediência à colegialidade. Esse decisivo voto impõe a
metamorfose da jurisprudência em publicação periódica na quinta
tentativa em dez anos, uma a cada dois. Os eventuais autores do
cartapácio cometeram a impropriedade de introduzir entre citações
enxundiosas de declarações internacionais de direitos humanos versos
primorosos do poema À espera dos bárbaros, da lavra do alexandrino de
origem grega Constantino Kaváfis, que dizem o oposto do que ela queria
afirmar. Não é de estranhar. Afinal, madame violou o vernáculo ao
atribuir à expressão constitucional “considerar culpado” sinonimia de
“ser preso”.
Lewandowski cometeu
este erro e mais dois no voto em que limitou o combate à corrupção,
prioridade para o povo, a mero anseio de “setor politicamente motivado”.
Disse ainda ser intocável a Constituição que ele mesmo rasurou ao
permitir a Dilma exercer cargo público pós-impeachment, escarrando na
função de evitar o truque de Renan Calheiros e Kátia Abreu. Não se
entenda como correção a derrota de Dilma na eleição para senador em
Minas, pois cabe ao cidadão escolher ou rejeitar, mas não corrigir
falhas de quem acha que se acerca de Deus quem fica longe do povo. Ao
contrário.
Ao sair da função do
alto picadeiro, por ele dirigida, Toffoli insinuou que, em face do
eventual empate de cinco a cinco, não decidirá por sua convicção
“garantista” de impunidade, mas fiel ao dever de presidente e
pacificador. Nunca antes a expressão “voto de Minerva”, referente à
deusa romana da justiça, da sabedoria e da indústria, terá sido tão
imprópria se a usar para transferir ao Superior Tribunal de Justiça a
função que podia ter sido da segunda instância ou da última, no STF. Nem
o rei Salomão recorreria a algo que não consta sequer do Código de
Hamurabi.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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