Em novo livro, o autor francês reafirma-se como grande romancista do
mal-estar atual ao falar do uso de antidepressivos e das tensões de seu
país. Artigo de Eduardo Wolf para a edição impressa de Veja:
Quando o romance Submissão estava para ser lançado na França, uma
charge da bizarra figura de seu autor — um senhor de olheiras profundas e
corte de cabelo à la vassoura de piaçava — estampava a capa do
semanário Charlie Hebdo. A publicação satírica dedicava várias páginas à
lúgubre visão do futuro da França desenhada por Michel Houellebecq: em
2022, o país seria governado por um partido muçulmano fundamentalista,
cedendo cada vez mais terreno ao islamismo e abandonando seu laicismo
republicano. A capa em questão sintetizou uma perturbadora coincidência
entre ficção e realidade: naquele fatídico 7 de janeiro de 2015,
terroristas islâmicos invadiram a redação do Charlie e chacinaram quase
toda a sua equipe. Submissão saiu da zona da “polêmica”, ultrapassou as
acusações de “islamofóbico” e ganhou a notoriedade de um livro
premonitório.
Pois Houellebecq conseguiu antecipar-se aos fatos mais uma vez.
Serotonina, o novo romance do francês de 63 anos, foi publicado em seu
país em janeiro de 2019. Bastaram as primeiras leituras para que
novamente Houellebecq fosse tratado como profeta do caos pela imprensa e
pelos críticos. No livro, um tema de fundo vai ganhando proeminência à
medida que avança a trama: a situação desesperadora dos agricultores
franceses — acossados pelas regulações e burocracias da União Europeia,
eles não têm condições de competir globalmente e estão destinados a um
lento e sofrido desaparecimento. A revolta, com o invariável ingrediente
da violência política, faz-se inevitável. Como inevitáveis foram as
comparações com a irrupção dos protestos dos gilets jaunes, os “coletes
amarelos”, que desde novembro de 2018 (quando Serotonina já estava
escrito) tomaram as ruas do país em protestos radicalizados, pondo na
berlinda o governo do até então promissor, cosmopolita e pró-União
Europeia Emmanuel Macron.
Serotonina oferece, porém, mais que a antecipação do mal-estar social
e político da França contemporânea. A história de Florent-Claude
Labrouste, consultor de 46 anos mais que bem remunerado do Ministério da
Agricultura local, encapsula um mal-estar que ultrapassa em muito o
dos dilemas políticos e sociais. Se é certo que o narrador e
protagonista não poupa de seus cínicos ataques o modo de vida
contemporâneo, com suas falsas crenças na correção política, seu credo
humanista hipócrita e suas ideologias mal ocultadas — o livre mercado e a
União Europeia são alvos preferenciais —, a verdade é que este é um
romance sobre formas de tristeza e depressão de um homem cujos afetos
todos falharam.
O livro começa com Labrouste descrevendo sua rotina matinal e a
ingestão de um comprimido de Captorix, o antidepressivo (fictício) que
aumentaria os níveis de serotonina no organismo. O preço cobrado pela
harmonia química artificial é o desaparecimento de sua libido. Os únicos
vínculos sociais claros do protagonista são com seu trabalho, que
considera estúpido, e com uma jovem namorada japonesa aristocrática e
medíocre, Yuzu, a qual é abandonada quando ele descobre suas aventuras
com múltiplos parceiros em vídeos de sexo grupal. Não há ciúme — no
máximo, algum orgulho de macho ferido. Até mesmo o cinismo depreciativo,
tão característico dos personagens masculinos solitários e autoirônicos
da ficção de Houellebecq, vem abrandado no seu novo romance, conferindo
uma precisa adequação ao tom narrativo.
O abandono da jovem e irrelevante namorada é planejado como uma saída
de cena mais ambiciosa: um desaparecimento completo. Sem dramas e sem
suspense, Labrouste deixa o emprego, encerra contratos, reorganiza a
(confortável) vida financeira e opera o próprio sumiço, submergindo nas
ruas de certas zonas parisienses e nas evocações de seus amores
passados. Sem família, sem amigos, sem ambições e sem libido, só restará
a ele a imersão na própria vida pessoal, um misto de autoexame e
vertigem ególatra povoada por erotismo masculino convencional, alguma
dose de amor verdadeiro mal vivido e o puro fluxo existencial sem
sentido.
Não será surpresa se o livro marcar muitos de seus leitores por cenas
e tiradas típicas do universo de Houellebecq — da moderada misantropia
de Labrouste ao sexo grupal de sua namorada, passando pela figura de um
turista alemão pedófilo na Normandia. Sua percepção da sociedade
francesa (e ocidental) como um universo decadente, emasculado, derrotado
por uma geração de líderes anódinos incapazes de defender seus povos,
mas que morreriam pelo livre-comércio, já é parte de seu legado
literário. Na visão do autor, o Ocidente é um grande e insípido
supermercado, e isso é tudo o que o consenso liberal dos últimos
quarenta anos pôde oferecer.
Mas há algo raro, um tanto mais incomum, em Serotonina. Dificilmente
um personagem da ficção contemporânea conseguiu ser, de maneira tão
abrangente e condensada, um exemplar quase lírico de um tipo muito
peculiar de derrota. Pois Serotonina é, sobretudo, um livro a respeito
da derrota na vida. Não a derrota do desemprego, da pobreza, da
exasperação social; não o fracasso existencial angustiante e intenso —
apenas a derrota lenta, sem alardes, que ocupa pouco a pouco cada espaço
vazio de significação da vida, e que não pode ser compensada nem mesmo
pelo dinheiro e pelo consumo. Se a geração de Labrouste — os chamados
kidults — provou que era possível estender indefinidamente uma
adolescência infantilizada, o personagem também atesta como essa geração
antecipa fracassos e derrotas mais amplos. E assim a literatura de
Houellebecq se reafirma como um remédio que, embora tremendamente
amargo, se faz necessário.
Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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