Lênin iniciou o laboratório maligno como instituição de estado, mas as
histórias ou suspeitas de morte por envenenamento vão de Tchaikovsky a
Rasputin. Coluna de Vilma Gryzinski:
Entrar e sair da cadeia faz parte da rotina de Alex Navalny.
Seguindo a heroica tradição russa, o oposicionista de furinho no
queixo, bonito como um galã de cinema, normalmente nem se abala. Sai da
cadeia como se tivesse acabado de fazer uma sauna.
Dessa vez, foi diferente. Postou uma foto com os olhos bem inchados,
um dos sintomas do que disse ser uma possível tentativa de
envenenamento.
Também tinha secreção nos olhos e erupção cutânea no rosto. O hospital ao qual foi levado disse que era uma alergia grave.
Tratado com corticoide, foi liberado para voltar para mais uma temporada em cana. Geralmente, ele pega penas de um mês.
A oposição a Vladimir Putin é relativamente pequena e concentrada nos círculos mais intelectuais de Moscou e São Petersburgo.
Obviamente, é dividida, inclusive sobre o papel de Alex Navalny, um
defensor da democracia liberal e nacionalista que foi a favor da
anexação da Crimeia – o suficiente para dar um nó na cabeça dos que
sonham colocá-lo na categoria “sabujo da CIA”.
O motivo dos últimos protestos, reprimidos na pancada, foi banal: a eleição para o equivalente à Câmara de Vereadores de Moscou.
É claro que num regime que faz apenas uma imitação de instituições
democráticas, nada é pequeno demais para ser ignorado quando representa
algum tipo à ordem dominante.
Foram mais de 1 400 presos, incluindo todos os candidatos a vereador da oposição.
Além do excessivo uso da força – um conceito muito rarefeito na
Rússia –, a “alergia” de Navalny foi o que mais chamou a atenção.
Por que o regime de Putin se arriscaria a queimar o filme tentando
envenenar um opositor conhecido e controlado, que dificilmente
conseguirá colocar mais do que algumas dezenas de milhares de pessoas
nas ruas – sem diminuir o caráter valoroso dessas manifestações?
Em geral, a resposta é mais simples do que se imagina: porque pode, porque quer, porque já fez antes e vai continuar a fazer.
Alguém acharia uma boa ideia mandar dois agentes secretos à idílica
Salisbury, no interior da Inglaterra, envenenar com Novichok um
ex-espião russo aposentado?
Alguém na cúpula russa, bem no ápice, achou que sim. O prejuízo em
imagem, relações diplomáticas, expulsões mútuas de espiões deve ter sido
considerado pequeno.
Ruim mesmo, nessa ótica, foi Sergei Skripal ter escapado vivo.
BORGIA DO KREMLIN
Em 1921, Vladimir Lênin criou um laboratório de produtos tóxicos,
evidentemente secreto, como arma extra para “combater os inimigos do
poder soviético”.
“Lênin denominou gabinete especial esse laboratório que ele dirigiu
pessoalmente, na condição de presidente do soviete dos comissários do
povo. Os colaboradores do gabinete receberam abertamente a tarefa de
preparar e aperfeiçoar venenos destinados a matar inimigos do regime”,
diz Arkadi Vaksberg no livro O Laboratório dos Venenos.
Para um homem que podia mandar dar um tiro na nuca, fuzilar,
enforcar, queimar ou soterrar vivas centenas de milhares de pessoas, e o
fez com entusiasmo, os venenos eram uma alternativa para o assassinato
de inimigos políticos no exterior ou aliados internos cuja eliminação
pedia métodos discretos.
Ironicamente, depois que ficou paralisado por uma sucessão de AVCs,
preso a uma cadeira de rodas, sem poder falar, vendo a ascensão de um
camarada em quem não confiava, Josef Stálin, Lênin pode ter encerrado
sua teimosa insistência em continuar vivo com alguma coisinha de seu
próprio laboratório secreto.
“Pode” porque não há provas, apenas declarações indiretas. Outra
versão: Lênin teria pedido cianureto a Stálin porque não aguentava mais a
vida vegetativa.
Como, se não falava? A versão foi contada por Nikolai Bukharin
(executado por Stálin em 1938) e repetida por Trotski em 1940 no artigo
intitulado O Super Borgia do Kremlin. Poucos dias depois, recebeu as
picaretadas assassinas.
A ideia, de Stálin, claro, de envenenar o inimigo-mór havia sido
substituída por algo mais garantido. Persistem até hoje as suspeitas de
que o filho de Trotski, Lev Sedov, foi envenenado em Paris. Assim como o
filho de Maxim Gorki. E a viúva de Lênin, Nadejda Krupskaia.
A lista não acaba. A ideia de mortes por envenenamento é
profundamente arraigada na psique coletiva russa. Qualquer czar que
morresse novo, não abertamente assassinado, era dado como vítima das
artes negras em pequenos frascos.
Como matar pais, maridos, filhos e até bebês não era alheia aos grandes do Kremlin, a boataria não acabava nunca.
BOA NOITE, RASPUTIN
Uma das suspeitas mais persistentes continua a cerca a morte de
Tchaikovsky, o compositor fenomenal que tinha uma nada oculta – e nada
difícil – vida de homossexual prolífico.
“Meu Deus, que criatura angelical, como eu gostaria de ser seu
escravo, seu brinquedo, sua propriedade”, escreveu ele numa das cartas
“secretas” sobre suas variadas atividades sentimentais e sexuais – uma
das mais estranhas foi a paixão por uma mulher, a soprano francesa
Désirée Artôt.
As suspeitas de que o compositor teria sido induzido ao suicídio por
envenenamento desafiaram a ampla cobertura da doença e morte dele, com
sofrimentos lentos e horríveis, por cólera.
Subsistem duas correntes: Tchaikovsky suicidou-se por pressão do czar
Alexandre III pois, se não o fizesse, seria levado a julgamento pelo
caso escandaloso com o filho do embaixador espanhol.
Ou por indução de um “tribunal de honra” formado por ex-alunos da
faculdade de direito, também para não ser exposto por um outro
envolvimento heterodoxo.
O fato de que o czar venerava o compositor, além de ter livrado mais
de um grão-duque de escândalos homossexuais, não interferiu na boataria.
O fascínio por mortes com venenos atingiu o ápice com Rasputin, o
curandeiro e autoproclamado monge que mantinha a czarina Alexandra sob
seu poder com artes do além para preservar a vida frágil do único
herdeiro homem, o hemofílico Alexei.
Com a monarquia gravemente ameaçada pelos abusos, imaginários e
reais, praticados por Rasputin, os príncipes que resolveram matá-lo
famosamente recorreram a um arsenal completo.
O primeiro: chá com bolinhos envenenados com cianeto de potássio
oferecidos pelo príncipe Felix Iusupov em seu palácio em São
Petersburgo. Quando Rasputin pediu um Madeira, o vinho foi servido numa
taça também previamente “preparada”.
No “Boa noite, Cinderela” mais famoso da história, Rasputin resistiu
ao veneno – três taças –, a tiros e briga física. Só acabou quando os
assassinos aristocratas o enrolaram numa colcha e jogaram no
semicongelado rio Neva.
COBAIAS HUMANAS
O “laboratório de Lênin” foi reinstalado em 1937 na rua
Varsanofievski, atrás do complexo da Lubianka, a prisão política que se
transformou em metonímia do mais avassalador estado policial da
história.
Dos porões da Lubianka vinha um estoque inesgotável de cobaias
humanas para as experiências. Químicos e outros cientistas eles próprios
presos nos ciclos intermináveis dos expurgos stalinistas continuavam a
contribuir para as “pesquisas”.
Nada surpreendentemente, todos os monstros que chefiavam a máquina
das polícias secretas eram loucos pela “cozinha do diabo”. E não houve
monstro igual a Lavrenti Beria.
“A impunidade, a sensação de onipotência, a ausência de freios
morais, próprias a toda organização criminosa e, finalmente, a
impotência dos serviços secretos e dos órgãos diplomáticos ocidentais
permitiram que os criminosos agissem sem temor e utilizassem seu arsenal
de meios de destruição”, escreveu Vaksberg.
Como ex-agente da KGB, Putin retomou a tradição e a atitude
desafiadora escandalosamente reveladas no envenenamento de Alexander
Litvinenko, morto do uma dose de polônio-210 colocada no chá que tomou
num hotel de Londres com um agente russo.
O rosto de Litvinenko, inchado pelos remédios que tentavam,
inutilmente, combater a radiatividade letal do polônio, tornou-se um
símbolo mundial da reativação do laboratório russo dos venenos.
Outro caso escandaloso foi revelado pelo rosto literalmente cinzento,
desfigurado por cicatrizes de erupções, marcas do envenenamento por
dioxina, de Viktor Yushchenko, o ucraniano que sobreviveu para ser
eleito presidente anti-Kremlin.
Antes de ser assassinada no elevador de seu prédio, a jornalista Anna
Politvskaia foi internada depois de tomar um chá no avião que deveria
levá-la até Beslan, onde tentaria interferir no trágico sequestro das
crianças de uma escola inteira.
Acordou num hospital com uma enfermeira dizendo “Querida, tentaram te envenenar”.
O oposicionista Vladimir Kara-Murza acredita que sobreviveu a duas
tentativas de envenenamento, em 2015 e 2017. Foi hospitalizado nas duas
ocasiões depois de começar a suar e vomitar, desmaiando. O pai dele,
também oposicionista, morreu ontem.
Era muito ligado a Boris Nemtsov, físico e inimigo mortal de Vladimir
Putin, na grande tradição russa dos cientistas dissidentes.
Nemtsov foi assassinado em 27 de fevereiro de 2015 com uma saraivada
de balas pelas costas em plena rua, ao atravessar uma ponte em frente ao
Kremlin.
Cinco chechenos foram julgados e condenados pelo crime, sem que nada fosse revelado sobre os mandantes.
Menos discretos, mas mais eficientes do que as poções malignas. Mas
não se pode eliminar a hipótese que pelos menos alguns dos
envenenamentos fracassados tenham sido avisos tóxicos.
Como se Alex Navalny não soubesse, o tempo todo, o que pode acontecer com ele.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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