No seu entusiasmo negativo contra Trump, Bolsonaro e outros, Sousa
Tavares supõe-lhes uma miraculosa coordenação e um desígnio comum
planeado com uma extravagante antecedência. O professor Paulo Tunhas
(Filosofia, Porto) critica a teoria conspiratória do jornalista
português em artigo publicado no Observador - que vale também para alguns jornalistas e políticos brasileiros, notadamente do PT:
É sempre fascinante procurar perceber não só aquilo em que as pessoas
acreditam, como o modo como acreditam, a forma e a intensidade da sua
crença. O que é quase uma outra maneira de dizer: o que faz sentido para
elas, as exigências de sentido que têm, a tolerância ou a intolerância
face ao que parece não fazer sentido ou que, de facto, não o faz.
Na vida corrente, a maior parte das pessoas lida bem com aquilo que
aparenta não fazer sentido. É, de resto, uma condição indispensável da
sobrevivência. O sem-sentido, real ou imaginário, está em todo o lado na
realidade humana que nos rodeia: à superfície, nas acções que
observamos, e no mais profundo, nas intenções que supomos nos outros (e,
já agora, nas nossas próprias). Saber conviver com ele é uma
necessidade absoluta. Claro que é preciso tentar compreender. Mas
compreender é exactamente procurar determinar algo contra o pano de
fundo de uma enorme indeterminação, isto é, de aparente não-sentido.
Há, é claro, excepções a esta atitude comum, que é uma atitude muito
saudável. Uma é a dos grandes sistemas filosóficos. Eles ambicionam,
regra geral, fazer sentido de tudo, ou, pelo menos, reduzir o espaço do
sem-sentido a um resto indiferente e superficial. Este excesso faz parte
do seu projecto e justifica-se por ele. Deixo-o, portanto, aqui de
lado. Outra excepção, de uma natureza substancialmente diversa, é a de
certas patologias mentais para as quais tudo obrigatoriamente faz
sentido. Para um paranóico, no seu delírio sistemático, nada
verdadeiramente é destituído de sentido: tudo tem obrigatoriamente de o
possuir.
É curioso verificar que o pensamento político apresenta, mesmo nas
mais pacatas criaturas, uma certa tendência a encaminhar-se para este
pouco recomendável modo de pensar. Tudo tem que fazer sentido, e um
sentido absolutamente unívoco, sem o mais leve vestígio de equivocidade.
Todas as analogias são mobilizadas, das mais verosímeis às mais
inverosímeis e selvagens. Longe de mim pretender que as analogias não
são um modo necessário de pensamento. As próprias ciências se servem
delas abundantemente e os assuntos humanos, por maioria de razão,
requerem-nas certamente. Mas há limites para o seu uso. O entusiasmo,
seja ele negativo, seja ele positivo, exigindo uma adesão total, descura
por inteiro tais limites. Tudo conspira, como diziam certos filósofos
gregos. Quer dizer: tudo participa do mesmo movimento, tudo, no limite,
está ligado com tudo. A crença é absoluta e sem falhas.
Estas reflexões muito abstractas vieram-me ao espírito por causa de
um artigo publicado por Miguel Sousa Tavares no último Expresso. Escreve
ele, logo à abertura: “Há uma conspiração de extrema-direita a nível
internacional, muitíssimo bem pensada, bem planeada e que vem sendo
executada passo a passo”. O resto do texto pretende ilustrar a tese
geral, com a já indispensável referência ao potencial totalitário das
“redes sociais” e desconsiderações avulsas por quem com ele não
concorda. Miguel Sousa Tavares tem como sua característica, entre outras
sem dúvida apreciáveis, uma intensidade nas suas crenças políticas que
atinge proporções cósmicas. Mas a passagem citada é particularmente
interessante.
Senão, vejamos. Há uma “conspiração”. A palavra é forte: um acordo
mais ou menos secreto para derrubar os poderes actuais. E uma
conspiração “internacional”, reunindo “conspiradores” oriundos de várias
partes do mundo, unidos, imagina-se, por sinistros juramentos. A
conspiração, coordenada por uma inteligência diabólica (Steve Bannon?),
desenrola-se meticulosamente, “passo a passo”. Sem pressas, como convém a
planos sabiamente orquestrados, não deixando lugar ao acaso e à
improvisação. O Special Executive for Counter-intelligence, Terrorism,
Revenge and Extortion é um bando de amadores por comparação.
Qual é o principal problema desta tão poderosa visão? É exactamente o
de tudo aqui fazer demasiado sentido para ser real. A realidade é, por
definição, rugosa e imperfeita. A realidade imaginada por Sousa Tavares,
pelo contrário, é uma superfície polida que em tudo reflecte uma
intenção única e límpida. No seu entusiasmo negativo contra Trump,
Bolsonaro e outros, Sousa Tavares supõe-lhes uma miraculosa coordenação e
um desígnio comum planeado com uma extravagante antecedência. Dizer que
isto vai muito além do razoável é dizer pouco.
Há nisto, no entanto, um mérito indiscutível. É o de ilustrar de
forma exemplar uma verdade geral. Quando se procura um sentido absoluto
que não deixe lugar a contingência alguma e à indeterminação do sentido,
uma coisa é certa: é porque se abdicou, sabendo-se isso ou não, do
esforço intelectual necessário para perceber algo do mundo à nossa
volta.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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