Nas “redes sociais”, fervorosos inimigos do racismo e da xenofobia
desataram a insinuar com variável franqueza a deportação da maioria de
brasileiros que, por cá, votou no sr. Bolsonaro. Houve quem recomendasse
a varridela incondicional dos brasileiros. Houve quem sugerisse
trocá-los por brasileiros bonzinhos e predispostos à fraternidade. E
houve quem prometesse o despedimento imediato da empregada doméstica,
essa fascista que preferiu entregar o país dela ao sr. Bolsonaro do que à
associação caritativa chamada PT. Alberto Gonçalves, no Observador, com seu humor ferino e impiedoso:
Não vou escrever sobre o sr. Bolsonaro, o alegado fascista que, com
os votos de milhões de alegados fascistas, vai liderar um governo de
alegados fascistas e estabelecer o alegado fascismo no Brasil. Digo
apenas que é triste ver uma nação que até aqui se distinguia pela
prosperidade e pelo sossego arriscar cair na intolerância e no ódio. O
lado positivo é que Portugal não arrisca nada: já caiu.
Na noite de Domingo, as eleições brasileiras interessaram-me menos do
que as respectivas reacções deste lado do mar. Nas “redes sociais”,
fervorosos inimigos do racismo e da xenofobia desataram a insinuar com
variável franqueza a deportação da maioria de brasileiros que, por cá,
votou no sr. Bolsonaro. Houve quem recomendasse a varridela
incondicional dos brasileiros. Houve quem sugerisse trocá-los por
brasileiros bonzinhos e predispostos à fraternidade. E houve quem
prometesse o despedimento imediato da empregada doméstica, essa fascista
que preferiu entregar o país dela ao sr. Bolsonaro do que à associação
caritativa chamada PT.
Por regra, estas manifestações de harmonia universal partiram de
anónimos (que urge promover à notoriedade). Algumas, porém, saíram de
gente que, talvez por causa da flagrante sofisticação, ocupa cargos
políticos ou distribui palpites na televisão. Mesmo o prof. Marcelo, o
exacto avesso do populismo, concedeu uns resmungos contra o populismo, a
intolerância, a xenofobia, o chauvinismo e o radicalismo que, além de
um desastre diplomático, são um insulto à escolha livre de milhares de
habitantes do território a que em teoria preside. À primeira trombada na
realidade, os fanáticos da indiscriminação discriminam com curioso
fanatismo. Não foram muitos? Foram demasiados.
Aliás, a questão não peca por excesso, e sim por defeito: quantos dos
que não ofenderam pública e desalmadamente os eleitores do sr.
Bolsonaro estavam, e estão, mortinhos por isso? Sem grande risco, aposto
na esquerda em peso, salvaguardando as excepções que se contam pelos
dedos de Lula, o Generoso. É hábito velho. De Reagan a Passos Coelho,
com escalas em Sá Carneiro, Thatcher, os Bush, Cavaco, Merkel e o sr.
Trump, a esquerda anuncia o advento das trevas sempre que um dos seus
não é designado para apascentar os simples. E os simples que, nas urnas,
caucionaram a tragédia são cúmplices da dita, logo indignos da
cidadania.
Evidentemente, o problema da esquerda com o sr. Bolsonaro e com os
eleitores do sr. Bolsonaro não se prende com eventuais restrições à
liberdade no Brasil. É ridículo ter de lembrar que as restrições à
liberdade noutras paragens nunca incomodaram a esquerda. Pelo contrário.
Nos paraísos aprovados pelas boas consciências, a censura oficial ou
oficiosa, os saneamentos, as perseguições, as detenções, a corrupção, a
miséria e a genérica opressão dos infiéis são minudências ocultadas, ou
desvalorizadas enquanto indispensáveis à implantação da Felicidade
Eterna. Não há que enganar, embora o engano seja língua franca: fala-se
na ditadura que aí vem para dissimular a ditadura que deveria vir,
invoca-se a “política do medo” para assustar os impressionáveis,
lamenta-se o ódio para odiar à vontade, finge recear-se que corra mal
por se recear que corra bem. Agitar tiranos hipotéticos é estratégia
típica de tiranos comprovados. Os autodenominados democratas não querem
saber da democracia, mas mandar em nós.
De resto, uma democracia funcional é o pior pesadelo dos
autodenominados democratas. Onde já se viu as pessoas decidirem o futuro
pela própria cabecinha, com frequência mal informada e carente das
luzes que abrilhantam por exemplo o dr. Louçã? Não admira que, durante a
semana, diversas “personalidades” desfilassem preocupação com a
libertinagem que reina no Facebook e no Twitter, antros em que a Verdade
não beneficia do filtro da RTP, da Sic, do “Público”, do “Expresso” e
demais faróis. É em faróis assim que os drs. Louçãs da vida, que ocupam a
existência a venerar atrocidades incomparáveis aos maiores desvarios
que o sr. Bolsonaro venha a cometer, ensinam o povo a pensar
correctamente, leia-se de acordo com eles. A chatice é que raramente o
povo aprende, pelo que se impõe o castigo.
A propósito de castigos, os últimos acontecimentos convenceram certa
“direita” de que a eleição do sr. Bolsonaro, depois do sr. Trump (e do
“Brexit”), preparam Portugal para a chegada de um Messias e a sublevação
do “homem comum”, enfim cansado de enxovalhos. Não sou tão optimista.
Primeiro, porque apesar da propaganda nem o sr. Bolsonaro é o sr. Trump,
nem o Brasil, há décadas cenário de uma espécie de guerra civil, é a
América. Segundo, porque os portugueses são óptimos a aderir à última
hora a golpes de Estado e terríveis a golpear sozinhos essa sagrada
entidade. Terceiro, porque a raiva que o sr. Bolsonaro e os eleitores do
sr. Bolsonaro inspiraram nas castas indígenas não deixa dúvidas: a
esquerda que há três anos tomou conta disto é extrema nas políticas, na
mentira, na manipulação, na força, no descaramento e na gula. Ainda que,
por milagre, o famoso “espectro partidário” trouxesse um dia a
alternativa que a actual União Nacional não consente, não me parece que
os senhores no poder abdicassem jovialmente deste por via de processos
democráticos ou mariquices afins. Hoje como ontem, sentem que o regime é
deles. A diferença é que hoje têm razão, e não estão dispostos a
perdê-la. Custe o que custar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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