Será o
Bloco tão inofensivo como parece? Serão os seus arrufos com o PS apenas
sinais de há diferenças de grau, mas não de fundo, nas políticas que
propõe? E até onde é nos deixámos enfeitiçar pela aparente doçura de
Catarina Martins?
Em 2011 o
Bloco aprendeu uma lição: para ter sucesso tinha de se disfarçar de “PS
de esquerda”, ma non troppo. É que nas eleições desse ano o castigo foi
duro: depois de se ter recusado a reunir com a troika, assim vincando o
seu lado radical e anti-sistema, o partido que ainda era de Francisco
Louçã perdeu metade do seu grupo parlamentar. Um desastre. Mas agora,
com Louçã transformado em mais um venerando senador do regime, o Bloco
de Catarina e Mariana passou a ter a aparência de um partido do regime,
bem comportado, ma non troppo. Ou seja, um pouco mais intransigente do
que os outros, um pouco mais “de esquerda” que aquela parte do PS que
até podia ser do Bloco, mas já sem grandes complexos sobre confundir-se
com o PCP ou ser ultrapassado pela esquerda por Jerónimo de Sousa.
O Bloco
tornou-se tão aparentemente civilizado que não só recuperou facilmente o
seu grupo parlamentar em 2015 (numas eleições em que o PS se quis
apresentar como a única forma de afastar Passos Coelho do poder), como o
fez beneficiando da transferência de votos não só de eleitores
socialistas, mas de eleitores que tinham votado antes no PSD e no CDS.
Curiosamente, ou talvez não, como mostram estudos pós-eleitorais como
aquele de que resultou o gráfico que reproduzo a seguir, quase não
existe troca de votos entre o Bloco e o PCP.
Matriz de transferências de votos entre partidos e abstenção considerando as eleições de 2011 e 2015
Muitos
ficarão surpreendidos com estes dados – eu não fico. O PCP é um partido
comunista ortodoxo, clássico e previsível até na sua implantação social,
muito assente numa ampla base sindical e que mantém (até onde é
possível manter) as suas características de partido de classe, mesmo não
sendo já o “partido operário” que quis ser no passado.
jà o
Bloco é um animal político completamente diferente e muito mais
dissimulado. Quase não tem base sindical e recolhe sobretudo um voto
urbano, de classe média. O voto de muita gente que nem sabe muito bem o
que é realmente o Bloco, qual o seu programa político, só lhe conhece as
manifestações sobre temas mais fracturantes e não se assusta com o
discurso de Catarina Martins, mesmo quando ela sobe o tom de voz. São
lobos com pele de cordeiro.
É por
isso uma delícia olhar para o programa do acampamento de Verão do Bloco,
que vai ter lugar no final de Julho, e que é muito revelador do tipo de
partido que realmente é. E do que representa. Não resisto por isso a
comentá-lo.
A
primeira originalidade que nos salta à vista é que, num programa
arrumado em torno de 29 debates e 4 workshops (não exagero e nem sequer
incluo os momentos mais políticos, como as intervenções de abertura e
encerramento e os plenários para estudantes do Secundário e do
Superior), apenas uma-sessão-uma tem alguma coisa a ver com
trabalhadores, mas mesmo esta não foge à centralidade da precariedade, o
único problema que para o Bloco parece existir no mundo do trabalho.
A
segunda originalidade é só aparecerem identificados dois tipos de
espaços: o Espaço Feminista e o Espaço Queer (para quem não souber,
queer é a designação que se dá a todos os que não são heterossexuais
normativos, o que significa que ´e um conceito pós-moderno que abrange
ainda mais variedades que o de LGBTI e evita continuar a acrescentar
indefinidamente à sigla as restantes letras do abedecedário). Quem for
homem e heterossexual no acampamento do Bloco arrisca-se porventura a
carregar o fardo da culpa da sua hétero dominância, tal como ser branco
na Europa e nos Estados Unidos é, para os bloquistas, viver em
permanente necessidade de expiação dos pecados daquilo a que no passado
chamávamos “expansão” ou “descobertas”.
Entrando no detalhe da programação deparamo-nos com verdadeiros mimos.
Logo a
abrir, para destrunfar, discutir-se-á “Saída do Euro: há outra saída?”,
uma interrogação que é uma resposta mas que, estou certo, não terá
tradução visível no programa eleitoral do Bloco, pois sair do euro é
anátema para a esmagadora maioria dos que vão ao engano votar nas
carinhas larocas das suas dirigentes.
Depois
haverá muito por onde escolher – isto se aceitarmos escolher de entre as
causas marginais que se tornaram o modo de vida destas novas esquerdas
mais identificados com a vida dos bares nocturnos do que com os relógios
de ponto de uma fábrica.
Alguns exemplos:
*Legalizar (e regulamentar!) todas as drogas. Isso mesmo: todas.
*Veganismo e Antiespecismo. Um dia destes ainda acabamos a comer sementes e raízes em nome da bondade da “dieta do paleolítico”.
*Trabalho sexual: o direito ao corpo. O que antes víamos como exploração sexual das mulheres, agora foi transformado em direito.
*Direito
à boémia: necessidade de vida noturna para produção e radicalização
cultural. Confesso que já tinha visto justificações menos sofisticadas
para ir para os copos.
*Ciganofobia.
O Bloco adora fobias, pois dão-lhe causas e indignações. Num
acampamento ao ar livre só espero que tenham também tratamento para a
aracnofobia, isto se porventura a defesa contra as aranhas não cair nos
pecados do antiespecismo
*Boicote
a Israel e celebração da Palestina. Será que para assistir terão de ir
todos com aqueles lenços aos quadrados que tanto gostam de usar?
*Linguística e linguagem inclusiva. Ou seja, lições de politicamente correcto e de como o impor mesmo aos recalcitrantes.
*A
propriedade é o roubo: socialização dos meios de produção. Ora aqui está
uma pitada de marxismo puro e duro, à moda antiga. Só espero que, de
caminho, não socializem o motão da Mariana Mortágua.
*Desobediência
civil. Curioso este debate num partido que faz parte do acordo que
suporta o Governo. Quererão desobedecer a eles próprios?
Quanto
aos workshops, para além de um misteriosamente dedicado ao tema de
“suporte básico de vida” (sonharão com entrar em Medicina ou estarão
mais a treinar primeiros socorros para o caso de um dia terem a
oportunidade de um “assalto ao Palácio de Inverno”, naturalmente que à
nossa pequena escala?), há dois sobre “vídeo-activismo: teoria e
prática”, o que até vai bem com a única abordagem prevista à cultura:
falar de contracultura.
Mas a
cereja em cima do bolo deverá mesmo ser o workshop sobre “desconstrução
da masculinidade tóxica”, onde não sei se se falará de hormonas ou
apenas das vantagens de os meninos vestirem cor-de-rosa e brincarem com
bonecas, mas juro que gostava de saber.
No meu
tempo chamava-se a estes acampamentos sessões de endoutrinação política,
mas nos meus tempos os partidos de extrema-esquerda não andavam
disfarçados a fingir que eram aquilo que não eram, como continuam a não
ser mas querem que se saiba. De facto aquilo que o Bloco não é, não
será, nem quer ser a ajuizar pelo programa deste acampamento, é um
partido pacificamente integrado no nosso sistema democrático, com uma
economia de mercado e vivendo pacificamente no seu espaço natural que é o
da União Europeia.
O que o
Bloco é, continua e continuará a ser, é um partido revolucionário que
aprendeu com Gramsci que é ganhando as batalhas culturais que se
conquista o poder. E isso eles estão a fazer e com competência, já não
em nome dos trabalhadores, mas do seu desprezo pela vida tranquila e
livre das odiadas sociedades burguesas, como são as sociedades
ocidentais. Por isso tanto lhes faz o veganismo como a “masculinidade
tóxica”, o que conta é ir destruindo o sistema de valores que nos tem
permitido viver em concórdia.
E concórdia é mesmo o que não querem. Tanto que até já treinam primeiros socorros.
PS.
Juro: gostava de ser mosca para assistir a alguns destes debates e
workshops. Deve ser imensamente divertido, mesmo sendo trágica a nossa
indiferença relativamente à verdadeira natureza do partido que se senta
mais à esquerda no Parlamento.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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