Em sua coluna na FSP, Luiz Felipe Pondé fala na nova moda do "desapego":
Não
acredito na possibilidade de desapego no mundo contemporâneo, em que
desapego é em si um produto. Por exemplo: que tal desapegar um pouco no
Butão? Ou em Noronha? Belo espaço natural. Nunca um mosquito custou tão
caro.
Desapegar
no mundo da eficácia e do resultado é coisa de gente fina. Mortal mesmo
vende a mãe para desapegar um pouco no domingo. Sei que está na moda o
desapego e que os tontos ficam nas redes sociais falando disso. Como
falam também que "Gratidão!" (com as mãozinhas juntas) faz você dormir
bem à noite.
Qualquer
pessoa minimamente treinada no repertório das grandes religiões e suas
distintas formas de espiritualidade (das quais vêm ideias como gratidão e
desapego) sabe que, se você pratica uma dessas virtudes "para dormir
bem à noite", você não as está praticando de verdade. Ninguém é grato
para conseguir algo ou desapega viajando de "business class".
A ideia
de desapego é bem séria, seja na espiritualidade, seja na filosofia, a
começar pela grega. No grego, "aphalé panta" significa essa ideia de
"desapegar-se de tudo que é ou tudo que existe" no chamado
neoplatonismo.
Palavras
como "apathéia" ou "ataraxia" estão muito próximas dessa noção de
desapego no estoicismo e no ceticismo. No budismo, no cristianismo, no
hinduísmo, a mesma temática. Na mística medieval cristã ou islâmica,
ideias como "desprendimento" ou "aniquilamento" também retomam a mesma
temática do "prazer" que seria se desapegar das coisas do mundo. Na
literatura de peso, Liev Tolstói (1828-1910) é um representante
importante dessa busca. Em seu último romance, "Ressurreição", o
personagem principal, Nerhliudov, passa todo o romance em busca do
desapego, sonho do próprio Tolstói.
Quando
se fala de desapego das coisas do mundo, a primeira ideia que vem à
mente é o desapegar-se das coisas materiais. E, aí, em se tratando de
nosso mundo contemporâneo, já fica difícil, uma vez que quase tudo que
importa passa pela aquisição de um bem material, mesmo que este seja uma
passagem para a Mongólia. Ou uma pousada na praia. Tudo pago em
diárias, o que significa que você tem que pagar para desapegar. Porque,
lembremos, quem mora embaixo do Minhocão não é um desapegado.
A busca
do desapego deita raízes no fato de que o mundo cansa. Numa sociedade em
que o cansaço é um grande "passivo psicológico" como a nossa, desejar o
desapego é absolutamente normal. O problema é que, como em toda demanda
de verdade, o mercado captura a própria demanda "natural" e devolve
como commodity. Precifica a busca e vende para você de volta.
A
literatura de autoajuda é a forma mais banal desse processo, prometendo a
você que, na compra do livro X ou na participação no workshop Y, você
conseguirá o tal do desapego. Evidente que mentem. O desapego é um
processo doloroso que implica, na maioria dos casos, perdas profundas.
Não é coisa que sirva ao papinho da "vida é feita de escolhas". Está
mais para experiência avassaladora do fracasso do que para o tédio do
sucesso. Desapegar-se é próximo da "calma trágica", descrita em
personagens como Etéocles (filho de Édipo), da trilogia tebana de
Ésquilo, ou Antígona (filha de Édipo), da tragédia que carrega seu nome
no título, de Sófocles. Ésquilo viveu entre os séculos 5 e 6 a.C. e
Sófocles no século 5 a.C..
O
desapego fala do cansaço do desejo. E nosso mundo gira ao redor do
desejo. Fala do perder-se, não da obsessão por uma alimentação
balanceada. O "objeto" mais importante no desapego (aquilo de que você
deve desapegar-se se quiser pensar a sério em fazê-lo) é o próprio Eu.
E, aí, a coisa pega. "Ser você mesmo" cansa mais do que escalar o
Everest. O Eu é um eterno adolescente chato em busca de autoestima.
Aliás, a economia da autoestima é sinal de apego.
O
filósofo Emil Cioran (1911-1995) escreveu em seu diário "tornar-se
modesto por cansaço, por falta de curiosidade". Isso é desapego. Algo a
que você chega não pela vontade soberana, mas pela exaustão fisiológica.
Aliás, parafraseando o próprio Cioran sobre a preguiça, eu diria que
desapego "é o ceticismo da matéria". Boa semana.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário