Aldo Vannucchi foi preso em 5 de abril, de batina e com a Bíblia na mão.
Perseguição e vigilância colaboraram para que ele deixasse de ser padre.
Ex-padre preso pela ditadura militar mostra documento feito pela igreja para ajudar em sua libertação
(Foto: Roberta Steganha/ G1)
(Foto: Roberta Steganha/ G1)
Além de padre, Vannucchi era professor e diretor de uma faculdade da cidade, escrevia para um jornal e fazia programa diário em uma rádio. “Minha atuação não era ligada a um partido político. Era minha vocação de educador e de padre. Eu tinha a missão de mostrar a justiça como fruto da paz”, explica. Para levar essa mensagem, Vannucchi fazia reuniões com pequenos grupos de operários e universitários. “Com os universitários, eu criei a frente dos três Is, ‘os indóceis, os inconformados e os insubmissos’. Reuníamos-nos para estudar o personalismo, que prega o valor de toda e qualquer pessoa. A gente atuava para mexer com a cidade e tentar melhorar a situação.”
Já com os operários, a estratégia era diferente. "Era o ver, julgar e agir. Sempre perguntava da vida deles, procurava ver a realidade. Eles me contavam o que acontecia dentro das empresas. Eram desabafos de opressão e exploração que eles passavam e a gente tirava uma conclusão do que deveria ser feito na semana ou mês para resolver”, conta.
Segundo Vannucchi, um dos momentos onde seu trabalho era mais visado pelas autoridades militares era no feriado de 1º de Maio, pois a data era vista como dia de comunistas. O comunismo era temido no Brasil nessa época e em Sorocaba a situação não era diferente. “Corria um boato na cidade que se os comunistas sentissem que a situação para eles ficou insustentável, eles explodiriam a represa de Itupararanga, construída pela Light. Se isso acontecesse, Sorocaba ficaria debaixo d’água. As pessoas ficavam com medo”, relembra o ex-padre.
Prisão
Aldo Vannucchi relembra noite que passou na
cadeia com outras personalidades sorocabanas.
(Foto: Roberta Steganha/ G1)
No dia 1º de abril a população sorocabana se a surpreendeu com a
notícia. “A vida continuava, mas aos poucos foram aparecendo os traços
concretos do que é uma ditadura, como a censura, a proibição de quase
tudo e a presença militar forte no cotidiano”, explica o ex-padre.cadeia com outras personalidades sorocabanas.
(Foto: Roberta Steganha/ G1)
De acordo com o professor de filosofia Daniel Lopes, o Golpe Militar foi sentido na cidade na mesma intensidade que nas capitais. "Aqui tivemos um jornal que durou só seis meses, o 'Sorocaba Urgente'. Ele foi duramente censurado e os jornalistas, perseguidos. Peças teatrais também foram modificadas pela censura e havia até uma 'lista negra' de pessoas que não deveriam ser contratadas, que era enviada aos empregadores da cidade. Dessa forma, eles achavam que barrariam o avanço do comunismo", explica Lopes.
Para o ex-padre, a força da ditadura instaurada foi sentida cinco dias após o golpe. No dia 5 de abril de 1964, após celebrar uma missa na Vila Assis, na Zona Leste da cidade, ele recebeu um ‘convite’ para ir até a delegacia. “Eu falei nessa missa contra o golpe e contra a ditadura que estava se instalando. Voltei para casa, morava com a minha mãe. Depois do jantar, vieram dois policiais dizendo que o delegado queria conversar comigo. Eles queriam que eu fosse de carro com eles. Eu fui com o fusquinha. Peguei a bíblia, ainda estava de batina e fui até lá assim mesmo”, recorda.
Ao chegar à delegacia, o que o ex-padre mais queria saber era o motivo de estar lá e se surpreendeu com a resposta. “O delegado disse que tinha que me prender porque meu nome estava nas atas do Partido Comunista Brasileiro (PC do B) de Sorocaba.” Junto com Vannucchi, foram presos naquela noite o vice-prefeito da cidade Agrário Gilson Antunes Teixeira e o vereador Antônio Santa’Anna Marcondes Guimarães.
O delegado mandou o ex-padre escolher se queria ficar na cadeia pública ou no quartel da polícia. Ele escolheu ficar na cadeia, então, passou a noite na mesma cela que as outras duas personalidades políticas da cidade. " Foi uma noite muito agradável na cadeia, apesar do susto no começo da noite. Ficamos conversando. Falamos de religião e também do mundo político”, conta.
No dia seguinte, por volta das 8h, com a ajuda da igreja, Vannucchi foi solto. No entanto, ele passou mais dez dias em prisão domiciliar no Seminário Arquidiocesano. “Não posso nem dizer que essa noite na cadeia foi de sofrimento porque só me engrandeceu e a ditadura só mostrou o seu ridículo”, destaca o ex-padre.
Sobrinho morto
Em 1973, mais uma vez a ditadura militar se faz presente na vida de Vannucchi, agora com a morte de seu sobrinho Alexandre Vannucchi Leme, aos 22 anos de idade. O jovem estudante de geologia da Universidade de São Paulo (USP), que integrava a Ação Libertadora Nacional (ALN), foi preso, torturado e morto pelo regime. “Ele era o filho que eu ainda não tinha. Ele se formaria naquele mesmo ano. Ele foi morto em 17 de março de 1973. Mas a gente só ficou sabendo no dia 23, por um telefonema anônimo. Ele ficou preso no DOI-Codi, centro do Exército que funcionava em São Paulo. Os jornais contaram que ele foi atropelado por caminhão quando fugia da polícia, na realidade ele foi preso e torturado”, afirma.
Alexandre Vannucchi Leme, estudante
sorocabano morto pela ditadura militar em
1973 (Foto: Acervo pessoal/Aldo Vannucchi)
Segundo Vannucchi, foram dez anos de sofrimento pelo luto em suspenso e
pelas constantes buscas a hospitais, prisões militares e cemitérios
para descobrir onde estava o corpo de Alexandre. “Depois de dez anos a
gente conseguiu saber que o Alexandre tinha sido enterrado no cemitério
Perus, numa vala comum comum e a gente conseguiu identificar porque um
cunhado meu é dentista e o Alexandre tinha terminado um tratamento
dentário. O meu sobrinho guardou o molde. Com isso, identificamos a
arcada dentária dele.”sorocabano morto pela ditadura militar em
1973 (Foto: Acervo pessoal/Aldo Vannucchi)
Ex-padre
Vannucchi conta que ficou abalado com a morte do sobrinho e começou a sentir uma pressão para se posicionar menos politicamente por parte da igreja. “Falavam 'Aldo, acalme-se, não fale mais, você vai ser o próximo'. Essa conversa, às vezes, era ameaçadora”, relembra.
Depois da morte do sobrinho, Igreja queria que
padre se posicionasse menos (Foto: Fernando
Cesarotti/G1)
Depois disso, o ex-padre resolveu ir para Genebra, na Suíça e ficou na
casa de ex-alunos até arrumar emprego. “Consegui um emprego no Conselho
Mundial de Igrejas, onde trabalhava com o Paulo Freire. Trabalhei com a
colônia espanhola de lá. Rezava missas para a colônia no subsolo de uma
igreja. Minha última missa foi em 1974, no Dia das Mães”, conta.padre se posicionasse menos (Foto: Fernando
Cesarotti/G1)
Essa foi a última missa, porque antes de ir à Europa, Vannucchi estava passando uma crise, segundo ele, política, eclesial e existencial. “De um lado sentia apoio da igreja, de outro lado não. A outra crise era sobre meu celibato, seriamente mantido por 20 anos, e ficava indignado com o que via dentro da igreja, ou seja, colegas que tinham vida conjugal ou quase. Me lembro de um colega padre que dizia ‘casar está proibido, mas namorar não está’. Então, antes de eu viajar decidi que estava na hora de me casar. Me declarei para uma ex-aluna minha, já formada na época”, conta.
Da Europa, Vannucchi continou conversando com a sua futura esposa através de cartas, usando um pseudônimo. No mesmo ano, ele pediu dispensa ao Vaticano. No entanto a liberação só chegou no final de abril de 1974. Por isso, a última missa como padre foi realizada no domingo do Dia das Mães e o casamento ocorreu em Genebra, no mês de julho do mesmo ano. “São quase 40 anos de vida juntos e temos dois filhos”, declara.
Além do amor pela ex-aluna, Vannucchi afirma também que a ditadura militar colaborou na sua decisão em deixar de ser padre. “Me seguiam, me perseguiam. Chegaram ao ponto ridículo de nas 108 folhas que há contra mim no arquivo da polícia em São Paulo escrever até sobre quando eu ia a uma pizzaria. Então, era uma questão de sobrevida”, diz.
Outros casos na cidade
Além de Alexandre, a vida de outros sorocabanos também foi marcada pelos "anos de chumbo". "Aqui foram três desaparecidos contando o Alexandre. Foi ele, o Gerardo Magela e o Marcos Antônio Dias Batista, o mais jovem deles", afirma Lopes.
Marcos Antônio Dias Batista tinha apenas 15 anos na época do desaparecimento. Por isso, é o mais novo dos 362 nomes que integram a lista oficial da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos.
Outro caso mal explicado até hoje é o do estudante Gerardo Magela, quinto anista da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Sorocaba. Segundo a versão oficial divulgada pelos militares, o jovem de 22 anos teria cometido suicídio ao se atirar do Viaduto do Chá, em São Paulo. Por isso, seu nome não consta na relação oficial de mortos e desaparecidos políticos do Brasil.
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