BLOG ORLANDO TAMBOSI
Moral da história: se uma mulher jovem não bebe e transa com qualquer macho que vê pela frente, é porque há algo de errado com ela. É uma carola reprimida. Mas se ela beber e transar com todo o mundo, trata-se de uma evidência de que ela é sexualmente liberada, empoderada, livre. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Saiu
ano passado The Case Against the Sexual Revolution: A new guide to sex
in the 21st century, que em português seria algo como “A peça de
acusação contra a Revolução Sexual: Novo guia do sexo no século XXI”. A
autora é a feminista inglesa pós-liberal Louise Perry. Pós-liberal, como
ela explica, se deve tanto ao fato de ela ter sido liberal, quanto ao
de ela se filiar a uma nova corrente política chamada pós-liberalismo.
Sabemos
que nos EUA “liberalismo” tem um significado bem atípico, pois concebe a
liberdade individual por meio de bens e serviços a serem dados pelo
Estado, ao passo que no mais das vezes o liberalismo, dentro e fora do
mundo anglófono, é entendido como a defesa da limitação do poder do
Estado. Mas Louise Perry, que nem é dos EUA, faz questão de eliminar
essa ambiguidade: “Não estou usando ‘liberal’ como abreviação de
‘esquerdista’ – longe disso. O teórico político americano pós-liberal
Patrick Deneen descreve o liberalismo econômico e o liberalismo social
como entrelaçados, com a elite cultural liberal e a elite empresarial
liberal trabalhando de mãos dadas […]. Pós-liberais como Deneen chamam
atenção aos custos do liberalismo social, um projeto político que
procura libertar os indivíduos das limitações externas que nos são
impostas pela localização, família, religião, tradição, e até (mais
relevante para as feministas) o corpo humano. Nesse sentido, estão de
acordo com muitos conservadores sociais. Mas os pós-liberais também
criticam o outro lado da moeda liberal: uma ideologia de livre mercado
que busca libertar os indivíduos de todas essas limitações a fim de
maximizar sua capacidade de trabalhar e consumir. O trabalhador
atomizado sem compromisso com nenhum lugar ou pessoa é o trabalhador
mais capaz de responder rápido às demandas do mercado. Esse sujeito
ideal liberal pode se mudar para onde quer que os empregos estejam, pois
não tem conexão com nenhum lugar em particular; pode fazer qualquer
trabalho que lhe peçam, sem objeções de fé e tradição; e, sem cônjuge ou
família para cuidar, nunca precisa pedir folga nem agenda flexível. E
então, com o dinheiro desse trabalho sem raízes, a mulher é capaz de
comprar bens de consumo que irão suavizar quaisquer sentimentos de
infelicidade, alimentando assim a engenhoca econômica de máxima
eficiência.”
Eu
pus um itálico no “mas” porque essa adversativa só é óbvia para o mundo
de língua inglesa. Por lá, conservadorismo se confunde com
anticomunismo e acaba misturado com liberalismo econômico. No entanto, a
própria Inglaterra serve para mostrar que ambos os liberalismos –
econômico e social – se entrelaçaram pelo menos no século XX: Margaret
Thatcher era uma defensora da descriminalização da sodomia
(homossexualidade masculina) e do aborto. E recuando mais um pouco no
tempo, o J. S. Mill, um grande nome do liberalismo inglês, morreu
socialista. Ou seja: a ideia de que o liberalismo deve libertar o
indivíduo, pelo menos desde a época de Mill (século XIX) já é usada para
aumentar o Estado.
No
livro de Louise Perry, Thatcher é lembrada pela sua afirmação de que
não existe sociedade, mas sim somatório de indivíduos. A autora
considera que essa é a premissa falsa sobre a qual se assenta o
liberalismo. É uma cegueira quanto à importância das relações sociais
para a vida do indivíduo.
Vamos
enfim à acusação dela contra a revolução sexual. Sua teoria é simples: a
Pílula (ela escreve com maiúscula) tornou viável a criação de um “livre
mercado sexual”; por analogia, o casamento e os tabus contra o sexo
casual eram regulações que traziam proteção às mulheres contra a
predação masculina. Por ser uma lógica de mercado, traz os mesmos
problemas que o livre mercado; mas, por ser um assunto intimamente
ligado à preservação da espécie, precisa ser avaliado à luz das
diferentes naturezas do homem e da mulher.
A
analogia com o livre mercado é a mais óbvia: num mercado totalmente
desregulado, o ambiente social limita a liberdade de escolha do
trabalhador. Afinal, se há gente disposta a trabalhar por um prato de
comida, a liberdade de pedir um salário decente se torna um formalismo
vazio, irrealizável. E se aparecer gente disposta a trabalhar por meio
prato de comida, aquele que trabalhava por um prato de comida não terá
mais a liberdade real de trabalhar por um prato de comida inteiro. A
regulação do trabalho, então, serve para aumentar a liberdade do
trabalhador, que não será mais forçado pelas circunstâncias a trabalhar
por um pagamento aviltante.
Com
a revolução sexual, as mulheres passaram a ser duramente pressionadas
para liberar o sexo. À medida que a propaganda feminista liberal foi
aumentando, alegando que o consentimento era a única questão moral
importante, as mulheres foram sendo coagidas a consentir contra a
própria vontade. Sem dúvida, hoje há muito menos liberdade para uma
mulher casar virgem do que antes da revolução sexual.
Isso
nos leva, é claro, ao fato natural de que homens e mulheres são
diferentes. O feminismo radical criou a ficção, adotada também pelo
liberal, de que homens e mulheres são iguais do pescoço para cima. É
como se as pressões evolutivas não tivessem tido nenhum impacto sobre a
forma como os homens e as mulheres sentem desejo sexual. Assim, o
feminismo liberal deu trela à ideia de que ambos são iguais nesse
aspecto, e propagandeou que todo desvio feminino da norma masculina se
devia a repressão subconsciente. Moral da história: se uma mulher jovem
não bebe e transa com qualquer macho que vê pela frente, é porque há
algo de errado com ela. É uma carola reprimida. Mas se ela beber e
transar com todo o mundo, trata-se de uma evidência de que ela é
sexualmente liberada, empoderada, livre. Não é de admirar, portanto, que
haja tanta acusação de estupro em festas regadas a álcool e drogas.
E,
de fato, as mulheres empenhadas em se empoderar bebem e usam drogas
(lícitas ou ilícitas) para se entorpecer e se sujeitar ao sexo sem
intimidade. Louise Perry traz algumas matérias do mundo anglófono dando
conselhos sobre como transar sem se apaixonar. A pior talvez seja a do
site lacrador Vice, que recomenda
evitar contato visual e usar cocaína ou metanfetamina (uma epidemia
equivalente à do crack nos EUA). Não é preciso ser um Sherlock Holmes
para detectar que algo errado não está certo, e que talvez a mulher que
se sujeita a isso seria mais feliz fechando as pernas.
Bom,
mas e por que as mulheres são capazes de se submeter a tal ponto? Outra
vez voltamos às diferenças inerentes ao sexo. Está na moda os
psicólogos falarem da “agradabilidade” (agreeableness), como
característica oposta à assertividade. Tomados em conjunto, os homens
são mais assertivos do que as mulheres. E, tomadas em conjunto, as
mulheres tendem a se esforçar mais para agradar do que os homens. Assim,
é inerente à população feminina, tomada em conjunto, não gostar de sexo
casual, e também lhe é inerente se submeter à vontade do homem pelo
qual se interessa. Por isso, para Louise Perry, o consentimento não é o
bastante para uma relação sexual.
Um
exemplo extremo usado por Louise Perry são atrizes pornôs como Linda
Lovelace, de Garganta Profunda. No auge da fama, ela dizia cheia de
orgulho que era tudo consensual e que era uma mulher sexualmente
liberada. Na verdade, a produção do filme sabia que ela apanhava do
marido/cafetão; e, depois de velha, ela passou a ver com outros olhos a
situação degradante em que se colocara quando jovem. Uma coisa que
acontece com gente que está na pior é usar de todos os recursos
possíveis e imagináveis para se convencer de que está por cima da carne
seca. No caso particular das mulheres com síndrome de Estocolmo que
vivem apanhando de marido, Perry adota a psicologia evolutiva como
explicação: as mulheres sofreram pressão ambiental para se integrar com
as tribos dos seus estupradores. Ademais, valorizam o interesse
masculino como indício de que não serão largadas; por isso, à falta de
uma aliança no dedo, qualquer sinal de interesse do parceiro (olho roxo
incluso) é computado como garantia de não ser largada.
Que
fazer? No próximo texto, pretendo expor e criticar a solução dela, que é
uma espécie de direito natural baseado na teoria da evolução. Por hoje,
é preciso pontuar algumas diferenças conjunturais entre o Brasil e o
mundo anglófono. Por exemplo, um problema muito grave apontado pela
autora não acontece aqui, mas acontece nos países de língua inglesa e é
importante para mostrar os desdobramentos lógicos do feminismo liberal.
Esse problema é o da normalização jurídica da violência doméstica por
meio de um expediente conhecido como “rough sex defence”, algo como
“defesa do sexo selvagem”. Isso parece ter tido início em 1994 na
Inglaterra com o caso R. v. Wilson. Um homem chamado Alan Wilson marcou a
ferro quente as suas iniciais nas nádegas de sua esposa. “Wilson alegou
que a esposa se excitava ao ser ferrada como uma vaca. A esposa se
recusou a testemunhar. A corte acreditou no marido”, resume Perry.
Aberto o precedente, a coisa progressista e politicamente correta tem
sido os tribunais presumirem que as mulheres andam em busca de sexo
selvagem até com estranhos. Ela cita três casos de 2018 que resultaram
em manslaughter (homicídio culposo) com base na defesa do sexo selvagem:
um homem cuja namorada morreu com hemorragia vaginal após ser penetrada
com a garrafa de um limpador de carpete; outro que matou a namorada
cortando-lhe a garganta com uma faca que estava sob o travesseiro e até
um homem que deu carona a uma bêbada e estrangulou-a em casa. Como as
mulheres estavam mortas, usa-se a declaração do homicida de que essas
mulheres sexualmente liberadas consentiram com o sexo selvagem, de modo
que não houve intenção de matar. Segundo Louise Perry, tal “fenômeno
oferece evidências contundentes das consequências em larga escala da
normalização do sadomasoquismo.”
Outra
questão conjuntural é a explicação da liberação do aborto no Ociente,
coisa que não aconteceu no Brasil. A liberação do aborto seria uma
consequência do sexo casual normalizado pela pílula. Se a pílula falha
para uns 10% de mulheres, isso é 90% de eficácia, mas é também um número
absoluto muito grande de gravidezes indesejadas. Por isso o aborto é o
plano B. Assim, em países de aborto liberado, o ônus da gravidez recai
sobre a mulher, que escolheu não abortar depois de escolher fazer sexo
casual. No Brasil, as mulheres podem dar golpe da barriga à vontade,
tanto de um ponto de vista moral quanto legal.
A
última questão conjuntural é que o feminismo liberal é muito mais
arraigado no mundo de língua inglesa do que no Brasil. Por aqui, creio
que tenhamos contato apenas por meio de slogans. Os mais famosos são
“Não é não” (que aceitariam o “sim” de Linda Lovelace e das jovenzinhas
no Only Fans) e “Ensinem os homens a não estuprar”. No Brasil, isso são
só umas cartolinas e hashtags; eu não acredito que as feministas
acreditem no que dizem. Louise Perry, porém, foi uma feminista liberal
sinceramente preocupada com a questão do estupro. O que as demais
acadêmicas lhe diziam para fazer para acabar com o estupro no mundo eram
“oficinas de consentimento”, porque o consentimento é o que vai acabar
com o estupro no mundo. Assim, o livro é uma tentativa real de impedir,
por meio de aconselhamento, que mulheres sejam estupradas. Não se trata
mais de acabar com o estupro no mundo, porque ela considera que
estupradores não estupram por questões racionais e não são passíveis de
persuasão. Ao que parece, as feministas liberais se guiam por uma
concepção do homem puramente racional. Não é à toa, portanto, que
consideram os homens iguais às mulheres. É como se só houvesse
inteligências etéreas discutindo se vão deixar o meu cachorrinho cruzar
com o seu, e não machos com tesão.
Não
pude deixar de notar que ela explica em inglês de um jeito muito
elaborado o que em português sabemos por bordão: os homens dividem as
mulheres em “para casar” e “para trepar”. Em inglês, ela usa as
expressões cad (cafajeste) e dad (papai), e faz uma incursão na
psicologia evolutiva para explicar que os homens funcionam às vezes no
cad mode (modo cafajeste) e às vezes no dad mode (modo papai).
E
as questões culturais me fazem crer que o ponto de vista brasileiro é
melhor para lidar com o problema que a preocupa, a saber: que há poucas
mulheres realmente dispostas a atender os anseios sexuais masculinos, e
que os homens continuarão a fazer pressão.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário