BLOG ORLANDO TAMBOSI
Enquanto a liberdade está sob fogo cruzado, intenso e cotidiano, a corrupção passa por incrível arquitetura de narrativa visando à demolição da verdade e reconstrução da história. Carlos Alberto Di Franco para o Estadão:
A
sociedade assiste, atônita, a um fenômeno surreal patrocinado por altas
autoridades da República. A liberdade de expressão, fortemente
protegida no capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais da
Constituição, vem sendo fustigada e solapada. O constituinte, certamente
movido por uma compreensível reação aos anos da ditadura militar, quis
dar à liberdade um valor essencial e inegociável. O que se observa, no
entanto, é a frequente negação do espírito e da letra da Constituição.
Sempre em nome da defesa da verdade e da democracia.
O
combate à mentira factual, que deveria se pautar pelo que Alexandre de
Moraes chamou de “intervenção mínima”, com a posse do ministro na
presidência da Corte Eleitoral acabou não tendo rigorosamente nada de
mínimo. Em vez da ação pontual, destinada então a remover da propaganda
eleitoral e das mídias sociais as informações factuais comprovadamente
falsas, dezenas – talvez centenas – de cidadãos brasileiros tiveram
tolhido o seu direito de se manifestar sobre qualquer tema, graças à
exclusão de suas contas em mídias sociais, violando tanto a liberdade de
expressão quanto o princípio de proporcionalidade. E este tipo de
intervenção desproporcional cresceu muitíssimo, mesmo depois da
realização do pleito.
Estamos
assistindo, em nome do combate às fake news, à desconstrução programada
da liberdade de expressão e à destruição das próprias normas
constitucionais. Atualmente, qualquer ofensa, real ou imaginária, passa a
ser resolvida em clima de rito sumário. O ministro “ofendido”, como se
não fizesse parte de um Poder democrático, assume o papel de polícia,
promotor e juiz da própria causa. É exatamente isso que estamos vendo no
eterno inquérito das fake news.
Por
outro lado, o ministro da Justiça reúne representantes das mídias
sociais para dizer sem qualquer sutileza que a liberdade de expressão
não existe mais. Está sepultada. Assume o papel de defensor da verdade,
da liberdade e da democracia. Ele é, juntamente com o ministro Moraes,
mais um tutor dos brasileiros. Julga-se responsável pelo que podemos ou
não ler, falar ou comentar. O ministro, juiz e político, é um bom
orador. Deveria, no entanto, medir as consequências das suas palavras e
conter os arroubos de uma oratória claramente intimidatória.
Enquanto
a liberdade está sob fogo cruzado, intenso e cotidiano, a corrupção
passa por uma incrível arquitetura de narrativa com o objetivo de
demolição da verdade e de reconstrução da história. Alguém duvida de que
a cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol, ex-procurador da
Lava Jato, é mais um capítulo do desmonte da operação e um precedente
preocupante na Justiça Eleitoral?
Uma
decisão surpreendentemente unânime, que consumiu cerca de um minuto,
foi vivamente comemorada por um governo que tem como projeto a vingança e
como visão estratégica o olhar fixo no retrovisor. Ao longo de mais de
30 anos como ministro, Marco Aurélio Mello foi presidente do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) em três períodos diferentes. Para ele, o
julgamento de Deltan deixa a Justiça Eleitoral “muito mal”. E
prosseguiu: “Enterraram a Lava Jato, agora querem fazer a mesma coisa
com os protagonistas. Isso, a meu ver, não é justiça, é justiçamento”,
avaliou o ministro, conhecido pela franqueza. Eles esquecem algo que
Machado de Assis ressaltou: o chicote muda de mão. É isso. Festejar o
arbítrio hoje pode ser chorar o abuso amanhã.
Independentemente
das razões jurídicas esgrimidas, a cassação de Deltan Dallagnol foi a
cassação de 345 mil eleitores. Foi, sem dúvida, um triste capítulo na
sequência de politização da justiça brasileira. Protegem-se os
corruptos, sobretudo o líder inconteste da criminalidade.
Descaradamente. Usam-se artifícios formais para deformar a justiça. Mas
os que combatem os crimes são perseguidos e punidos. Trata-se de recado
claro: o crime compensa.
Agora,
numa tentativa de recuperação da imagem e depois de anos de silêncio,
apresentam o julgamento do ex-presidente Fernando Collor como um troféu
de firmeza contra a corrupção. Serão implacáveis. Como se isso apagasse
uma história de assustadora leniência.
Armados
de um cinismo cortante, argumentam que a Operação Lava Jato, “com sua
sanha punitiva”, destruiu empresas, criminalizou a política e condenou
inocentes. Como se não existissem confissões documentadas, provas
robustas e milhões devolvidos aos cofres como resultado de acordos. Quem
devolve, por óbvio, reconhece o roubo. Para esta gente, no entanto,
tudo precisa ser apagado. Mentem. Compulsivamente. Mentem com voz
melíflua, sem ruborizar e mover um músculo do rosto. São exímios na arte
da falsidade.
O
Brasil, não obstante os reiterados esforços de implosão da verdade,
ainda conserva importantes reservas éticas. Apelo, por isso, aos homens
de bem, aos cidadãos que têm brilho nos olhos. Eles existem. E são mais
numerosos do que podem imaginar os voluptuosos detentores do poder.
Apelo,
mais uma vez, aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Respeito-os. Não julgo suas intenções. Conversem, façam uma autocrítica,
revejam posições e pensem no bem maior do Brasil.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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