BLOG ORLANO TAMBOSI
Os anos pandêmicos já tinham dado o cheirinho dos novos tempos: a disponibilidade fácil que as sociedades demonstraram para aceitar a limitação das liberdades por decisões pouco justificadas. Patrícia Fernandes para o Observador:
1 O princípio do dano
Um livro incontornável na história do liberalismo político é o publicado por John Stuart Mill em 1959: Sobre a Liberdade. O filósofo Richard Rorty
considera que Mill faz nesta obra a última revolução conceptual de que o
pensamento social e político ocidental necessitava: “A sugestão de J.
S. Mill de que os governos se dedicam a otimizar o equilíbrio entre
deixar em paz as vidas privadas das pessoas e evitar o sofrimento
parece-me ser a última palavra.” Quase dois séculos depois de John Locke, Mill consolidou conceptualmente o liberalismo político como o paradigma político moderno.
Em
que se traduz este paradigma liberal? O liberalismo político surge como
resposta aos regimes absolutistas que marcaram a primeira modernidade e
tem como âmago a limitação do poder político. Só a limitação do poder
político garante liberdade individual e foi visando essa liberdade
individual que os autores liberais prescreveram a divisão de poderes,
eleições regulares e uma permanente fiscalização interna e externa, em
mecanismos previstos constitucionalmente. É a partir desta tradição que
Mill se propõe identificar “a natureza e os limites do poder que pode
ser legitimamente exercido pela sociedade sobre o indivíduo” e oferecer
um princípio filosófico para essa limitação:
“O
objetivo deste ensaio é asseverar um princípio muito simples, que se
destina a reger em absoluto a interação da sociedade com o indivíduo no
que diz respeito à coação e controlo, quer os meios usados sejam a força
física, na forma de punições legais, quer a coerção moral da opinião
pública.” (itálico meu)
Esse
princípio filosófico é o princípio do dano e diz-nos que “o único fim
em função do qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer
membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de
prevenir dano a outros.”
De acordo com este princípio:
“Uma
pessoa não pode corretamente ser forçada a fazer ou a deixar de fazer
algo porque será melhor para ela que o faça, porque a fará feliz, ou
porque, na opinião de outros, seria sensato, ou até correto. Estas são
boas razões para a criticar, para debater com ela, para a persuadir, ou
para a exortar, mas não para a forçar, ou para lhe causar algum mal caso
ela aja de outro modo. Para justificar tal coisa, é necessário que se
preveja que a conduta de que se deseja demovê-la causa um mal a outra
pessoa.” (itálico meu)
Encontramos
aqui o espírito emancipatório por excelência que dá forma ao paradigma
liberal e que já tinha sido estabelecido por Immanuel Kant no opúsculo Resposta à pergunta: Que é o Iluminismo? (1784):
“lluminismo
é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A
menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a
orientação de outrem. (…) Sapere aude! Tem a coragem de te servires do
teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.”
A consequência desta dimensão emancipatória é a recusa kantiana do paternalismo, em ensaio de 1793:
“Um
governo que se erigisse sobre o princípio da benevolência para com o
povo à maneira de um pai relativamente aos seus filhos, isto é, um
governo paternal (imperium paternale), onde, por conseguinte, os
súbditos, como crianças menores que ainda não podem distinguir o que
lhes é verdadeiramente útil ou prejudicial, são obrigados a comportar-se
apenas de modo passivo, a fim de esperarem somente do juízo do chefe do
Estado a maneira como devem ser felizes, e apenas da sua bondade que
ele também o queira – um tal governo é o maior despotismo que pensar se
pode (constituição, que suprime toda a liberdade dos súbditos, os quais
não têm, portanto, direito algum).”
Os
regimes liberais são, então, fundados nesta tradição de liberdade
individual, que passa por uma escolha autónoma do indivíduo sobre como
viver a sua vida, com a salvaguarda de não provocar dano a terceiros.
2 A lei do tabaco
Quando
me debruço sobre o princípio do dano de Stuart Mill na sala de aula, a
discussão torna-se sempre mais rica em situações-limite ou de grande
complexidade. É o que acontece no que diz respeito ao uso do cinto de
segurança (trata-se de um paternalismo aceitável?), aborto (há ou não
terceiros afetados?) ou consumo de drogas (que envolve as duas questões
anteriores). Mas é o exemplo do tabaco a permitir um maior
esclarecimento do princípio do dano.
De
facto, a legislação sobre o tabaco deve comportar três dimensões de
reflexão, todas elas pensadas a partir do enquadramento liberal que Mill
consolidou: 1) em que medida deve a legislação proteger terceiros? 2)
como deve considerar a situação dos menores? 3) que previsão deve ser
pensada para adultos?
A
primeira pergunta não tem oferecido grandes dúvidas: considerando os
dados fornecidos pela ciência, e que afirmam a possibilidade de dano a
fumadores-passivos, a legislação deve proteger terceiros dos malefícios
do tabaco (notemos, no entanto, que se trata de proteger o dano, não o
incómodo). Deste modo, parecem legítimas as medidas que limitam o
consumo de tabaco em espaços fechados (possibilitando que se criem
espaços para fumadores).
No
que diz respeito aos menores, devemos considerar que o princípio
emancipatório liberal (de Kant e Mill) se aplica apenas a indivíduos
maiores: os menores devem ser alvo de proteção por não terem ainda
atingido condições de emancipação cognitiva que lhes permitam tomar
decisões conscientes e informadas. Nessa medida, parece admissível que o
Estado intervenha no sentido de os proteger, nomeadamente impedindo a
compra de tabaco ou mesmo o seu consumo.
E
no que diz respeito a adultos? De acordo com o princípio do dano, o
Estado pode alertar, informar e tentar persuadir o consumo de tabaco por
adultos – mas não pode impedir as pessoas de fumar ou tomar a decisão
de se tornarem fumadores. Mill até admitiria uma cobrança de impostos
específica para este produto, mas não teria dúvidas de que uma crescente
limitação (legal e moral) do direito a fazermos o que queremos com o
nosso corpo assume a forma de um paternalismo inaceitável (recordemos
que Mill recusa a própria ideia de “coerção moral da opinião pública”).
Assim, de acordo com princípios liberais, não cabe ao Estado determinar como devemos conduzir a nossa vida, mesmo que “dois
terços das causas de morte nos fumadores [sejam] atribuíveis ao consumo
do tabaco e, em média, um fumador [viva] menos 10 anos do que um não
fumador”. Oferecida essa informação, uma sociedade não despótica garante ao cidadão o seu espaço de liberdade e decisão.
Ora,
é este o lado problemático não só das alterações propostas à Lei do
Tabaco em Portugal, mas também da tendência que tem vigorado nas
designadas democracias liberais e que se traduzem no objetivo
apresentado pelo governo: “diminuir os estímulos ao consumo e contribuir
para uma geração livre de tabaco [sic] até 2040.” Seremos livres de
tabaco, mas não livres para ter vícios: quão orwelliana é esta
redefinição de liberdade?
E
a linguagem usada dificilmente poderia ter um espírito mais
paternalista: os documentos do governo não referem “menores”, mas
“gerações mais jovens” (em que idade termina esta categoria?) e o
objetivo é criar uma geração livre de tabaco…mesmo depois de essa
geração atingir a maioridade. Ou, nas palavras do Ministro da Saúde:
“Começaremos hoje a proteger os adultos de amanhã”. Meu caro senhor, em
sociedades de democracia liberal os adultos de amanhã não precisam de
ser protegidos. Agradecidos estamos pelo seu paternalismo, mas não o
desejamos.
Ou será que desejamos?
3 Uma nova norma social
Os
anos pandémicos já tinham levantado o véu sobre o cheirinho dos novos
tempos: a disponibilidade fácil que as sociedades demonstraram para
aceitar a limitação das suas liberdades, decididas com justificações
mal-amanhadas e pobremente fundamentadas, já nos tinha feito convocar a nostalgia das sociedades fechadas.
Parecemos, de facto, cada vez mais predispostos a aceitar políticas
paternalistas. E a lição da pandemia, que o Ministro da Saúde convocou
na conferência de imprensa, não deve ser esquecida: em democracias
liberais devemos ouvir os especialistas e considerar a informação médica
que nos é disponibilizada, mas não podemos adotar a palavra do médico
como lei sob pena de nos tornarmos uma ditadura sanitária – aí poderemos
ter saúde, mas não nos restará qualquer liberdade.
Por
outro lado, o argumento económico regularmente convocado nesta
discussão coloca-nos numa perigosa rampa escorregadia: sim, é verdade
que os fumadores significam um impacto não negligenciável nas despesas
dos sistemas de saúde. Mas quem está realmente disposto a jogar este
tipo de jogo? Aquele fuma, esse consome álcool, outro abusa de comida de
plástico, tu usas demasiado sal, tu não fazes exercício físico, tu não
lavas as mãos, tu passas a noite sentado no sofá – tu, tu, tu… Afinal,
quem de nós vive uma vida pura? Como dizia sabiamente Manuel Serrão,
diga-me um!
Este
jogo de fiscalização dos vícios privados dos outros é ainda mais
perigoso com o admirável mundo novo tecnológico que nos vai cercando: já
temos aplicações que controlam os nossos dados biométricos, registam as
nossas alterações físicas, verificam as nossas atividades. Estaremos
realmente interessados em jogar com as hipóteses de uma vida totalmente
higienizada? É que o perigo vai para lá da dimensão sanitária, pois o
paternalismo não tem limites: ontem foi a comida que te faz mal, hoje é o
tabaco que te faz mal, amanhã serão os livros que te fazem mal
(amanhã?). Enquanto vivemos rodeados de câmaras de vigilância, que estão
a ser instaladas em pequenas cidades do norte do país pelas próprias
autoridades municipais…
Vivemos
tempos estranhos, em que quase parece normal que o estado decida como
devem viver as gerações futuras. Restam-nos as lições dos clássicos, que
nos permitem sempre compreender melhor os nossos tempos. Vejamos como
Stuart Mill fecha o seu argumento:
“um
Estado que inferiorize as suas pessoas, de modo a que sejam
instrumentos mais dóceis nas suas mãos, até com fins benéficos,
descobrirá que com pessoas pequenas nada de grande se poder[á] alguma
vez alcançar.”
PS: O facto de estas propostas assentarem em contradições evidentes e muitas delas parecerem resultado de insanidade (como a de proibição de fumar ao ar livre no perímetro dos estabelecimentos de ensino superior:
teremos polícia nas universidades a fiscalizar o incumprimento? ou
caberá aos seguranças da Universidade perseguir pelos campi estudantes e
professores incumpridores?), ao
ponto de alguns deputados do Partido Socialista se terem manifestado
contra a proposta que será agora discutida na Assembleia da República,
não deixa de levantar a suspeita: estaremos perante a repetida
estratégia de António Costa de apresentar medidas polémicas com o
objetivo de ocupar o espaço de discussão pública e desviar a atenção do
que verdadeiramente importa?
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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