MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Discurso sobre a servidão desejada

 

BLOG  ORLANO  TAMBOSI

Os anos pandêmicos já tinham dado o cheirinho dos novos tempos: a disponibilidade fácil que as sociedades demonstraram para aceitar a limitação das liberdades por decisões pouco justificadas. Patrícia Fernandes para o Observador:


O princípio do dano

Um livro incontornável na história do liberalismo político é o publicado por John Stuart Mill em 1959: Sobre a Liberdade. O filósofo Richard Rorty considera que Mill faz nesta obra a última revolução conceptual de que o pensamento social e político ocidental necessitava: “A sugestão de J. S. Mill de que os governos se dedicam a otimizar o equilíbrio entre deixar em paz as vidas privadas das pessoas e evitar o sofrimento parece-me ser a última palavra.” Quase dois séculos depois de John Locke, Mill consolidou conceptualmente o liberalismo político como o paradigma político moderno.

Em que se traduz este paradigma liberal? O liberalismo político surge como resposta aos regimes absolutistas que marcaram a primeira modernidade e tem como âmago a limitação do poder político. Só a limitação do poder político garante liberdade individual e foi visando essa liberdade individual que os autores liberais prescreveram a divisão de poderes, eleições regulares e uma permanente fiscalização interna e externa, em mecanismos previstos constitucionalmente. É a partir desta tradição que Mill se propõe identificar “a natureza e os limites do poder que pode ser legitimamente exercido pela sociedade sobre o indivíduo” e oferecer um princípio filosófico para essa limitação:

“O objetivo deste ensaio é asseverar um princípio muito simples, que se destina a reger em absoluto a interação da sociedade com o indivíduo no que diz respeito à coação e controlo, quer os meios usados sejam a força física, na forma de punições legais, quer a coerção moral da opinião pública.” (itálico meu)

Esse princípio filosófico é o princípio do dano e diz-nos que “o único fim em função do qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de prevenir dano a outros.”

De acordo com este princípio:

“Uma pessoa não pode corretamente ser forçada a fazer ou a deixar de fazer algo porque será melhor para ela que o faça, porque a fará feliz, ou porque, na opinião de outros, seria sensato, ou até correto. Estas são boas razões para a criticar, para debater com ela, para a persuadir, ou para a exortar, mas não para a forçar, ou para lhe causar algum mal caso ela aja de outro modo. Para justificar tal coisa, é necessário que se preveja que a conduta de que se deseja demovê-la causa um mal a outra pessoa.” (itálico meu)

Encontramos aqui o espírito emancipatório por excelência que dá forma ao paradigma liberal e que já tinha sido estabelecido por Immanuel Kant no opúsculo Resposta à pergunta: Que é o Iluminismo? (1784):

“lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. (…) Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.”

A consequência desta dimensão emancipatória é a recusa kantiana do paternalismo, em ensaio de 1793:

“Um governo que se erigisse sobre o princípio da benevolência para com o povo à maneira de um pai relativamente aos seus filhos, isto é, um governo paternal (imperium paternale), onde, por conseguinte, os súbditos, como crianças menores que ainda não podem distinguir o que lhes é verdadeiramente útil ou prejudicial, são obrigados a comportar-se apenas de modo passivo, a fim de esperarem somente do juízo do chefe do Estado a maneira como devem ser felizes, e apenas da sua bondade que ele também o queira – um tal governo é o maior despotismo que pensar se pode (constituição, que suprime toda a liberdade dos súbditos, os quais não têm, portanto, direito algum).”

Os regimes liberais são, então, fundados nesta tradição de liberdade individual, que passa por uma escolha autónoma do indivíduo sobre como viver a sua vida, com a salvaguarda de não provocar dano a terceiros.

2 A lei do tabaco

Quando me debruço sobre o princípio do dano de Stuart Mill na sala de aula, a discussão torna-se sempre mais rica em situações-limite ou de grande complexidade. É o que acontece no que diz respeito ao uso do cinto de segurança (trata-se de um paternalismo aceitável?), aborto (há ou não terceiros afetados?) ou consumo de drogas (que envolve as duas questões anteriores). Mas é o exemplo do tabaco a permitir um maior esclarecimento do princípio do dano.

De facto, a legislação sobre o tabaco deve comportar três dimensões de reflexão, todas elas pensadas a partir do enquadramento liberal que Mill consolidou: 1) em que medida deve a legislação proteger terceiros? 2) como deve considerar a situação dos menores? 3) que previsão deve ser pensada para adultos?

A primeira pergunta não tem oferecido grandes dúvidas: considerando os dados fornecidos pela ciência, e que afirmam a possibilidade de dano a fumadores-passivos, a legislação deve proteger terceiros dos malefícios do tabaco (notemos, no entanto, que se trata de proteger o dano, não o incómodo). Deste modo, parecem legítimas as medidas que limitam o consumo de tabaco em espaços fechados (possibilitando que se criem espaços para fumadores).

No que diz respeito aos menores, devemos considerar que o princípio emancipatório liberal (de Kant e Mill) se aplica apenas a indivíduos maiores: os menores devem ser alvo de proteção por não terem ainda atingido condições de emancipação cognitiva que lhes permitam tomar decisões conscientes e informadas. Nessa medida, parece admissível que o Estado intervenha no sentido de os proteger, nomeadamente impedindo a compra de tabaco ou mesmo o seu consumo.

E no que diz respeito a adultos? De acordo com o princípio do dano, o Estado pode alertar, informar e tentar persuadir o consumo de tabaco por adultos – mas não pode impedir as pessoas de fumar ou tomar a decisão de se tornarem fumadores. Mill até admitiria uma cobrança de impostos específica para este produto, mas não teria dúvidas de que uma crescente limitação (legal e moral) do direito a fazermos o que queremos com o nosso corpo assume a forma de um paternalismo inaceitável (recordemos que Mill recusa a própria ideia de “coerção moral da opinião pública”).

Assim, de acordo com princípios liberais, não cabe ao Estado determinar como devemos conduzir a nossa vida, mesmo que “dois terços das causas de morte nos fumadores [sejam] atribuíveis ao consumo do tabaco e, em média, um fumador [viva] menos 10 anos do que um não fumador”. Oferecida essa informação, uma sociedade não despótica garante ao cidadão o seu espaço de liberdade e decisão.

Ora, é este o lado problemático não só das alterações propostas à Lei do Tabaco em Portugal, mas também da tendência que tem vigorado nas designadas democracias liberais e que se traduzem no objetivo apresentado pelo governo: “diminuir os estímulos ao consumo e contribuir para uma geração livre de tabaco [sic] até 2040.” Seremos livres de tabaco, mas não livres para ter vícios: quão orwelliana é esta redefinição de liberdade?

E a linguagem usada dificilmente poderia ter um espírito mais paternalista: os documentos do governo não referem “menores”, mas “gerações mais jovens” (em que idade termina esta categoria?) e o objetivo é criar uma geração livre de tabaco…mesmo depois de essa geração atingir a maioridade. Ou, nas palavras do Ministro da Saúde: “Começaremos hoje a proteger os adultos de amanhã”. Meu caro senhor, em sociedades de democracia liberal os adultos de amanhã não precisam de ser protegidos. Agradecidos estamos pelo seu paternalismo, mas não o desejamos.

Ou será que desejamos?

3 Uma nova norma social

Os anos pandémicos já tinham levantado o véu sobre o cheirinho dos novos tempos: a disponibilidade fácil que as sociedades demonstraram para aceitar a limitação das suas liberdades, decididas com justificações mal-amanhadas e pobremente fundamentadas, já nos tinha feito convocar a nostalgia das sociedades fechadas. Parecemos, de facto, cada vez mais predispostos a aceitar políticas paternalistas. E a lição da pandemia, que o Ministro da Saúde convocou na conferência de imprensa, não deve ser esquecida: em democracias liberais devemos ouvir os especialistas e considerar a informação médica que nos é disponibilizada, mas não podemos adotar a palavra do médico como lei sob pena de nos tornarmos uma ditadura sanitária – aí poderemos ter saúde, mas não nos restará qualquer liberdade.

Por outro lado, o argumento económico regularmente convocado nesta discussão coloca-nos numa perigosa rampa escorregadia: sim, é verdade que os fumadores significam um impacto não negligenciável nas despesas dos sistemas de saúde. Mas quem está realmente disposto a jogar este tipo de jogo? Aquele fuma, esse consome álcool, outro abusa de comida de plástico, tu usas demasiado sal, tu não fazes exercício físico, tu não lavas as mãos, tu passas a noite sentado no sofá – tu, tu, tu… Afinal, quem de nós vive uma vida pura? Como dizia sabiamente Manuel Serrão, diga-me um!

Este jogo de fiscalização dos vícios privados dos outros é ainda mais perigoso com o admirável mundo novo tecnológico que nos vai cercando: já temos aplicações que controlam os nossos dados biométricos, registam as nossas alterações físicas, verificam as nossas atividades. Estaremos realmente interessados em jogar com as hipóteses de uma vida totalmente higienizada? É que o perigo vai para lá da dimensão sanitária, pois o paternalismo não tem limites: ontem foi a comida que te faz mal, hoje é o tabaco que te faz mal, amanhã serão os livros que te fazem mal (amanhã?). Enquanto vivemos rodeados de câmaras de vigilância, que estão a ser instaladas em pequenas cidades do norte do país pelas próprias autoridades municipais…

Vivemos tempos estranhos, em que quase parece normal que o estado decida como devem viver as gerações futuras. Restam-nos as lições dos clássicos, que nos permitem sempre compreender melhor os nossos tempos. Vejamos como Stuart Mill fecha o seu argumento:

“um Estado que inferiorize as suas pessoas, de modo a que sejam instrumentos mais dóceis nas suas mãos, até com fins benéficos, descobrirá que com pessoas pequenas nada de grande se poder[á] alguma vez alcançar.”

PS: O facto de estas propostas assentarem em contradições evidentes e muitas delas parecerem resultado de insanidade (como a de proibição de fumar ao ar livre no perímetro dos estabelecimentos de ensino superior: teremos polícia nas universidades a fiscalizar o incumprimento? ou caberá aos seguranças da Universidade perseguir pelos campi estudantes e professores incumpridores?), ao ponto de alguns deputados do Partido Socialista se terem manifestado contra a proposta que será agora discutida na Assembleia da República, não deixa de levantar a suspeita: estaremos perante a repetida estratégia de António Costa de apresentar medidas polémicas com o objetivo de ocupar o espaço de discussão pública e desviar a atenção do que verdadeiramente importa?
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