BLOG ORLANDO TAMBOSI
No fim da vida, o ditador português assinava documentos sem saber que estava destituído do poder, recebendo só fake news. Paulo Nogueira para o Estadão:
O
que é o fascismo? Quem é fascista? Segundo as redes sociais, todo mundo
que discorda de nós. Mas o totalitarismo foi um fenômeno histórico,
social e político. Só que continua um conceito evasivo, como admite
Stanley G. Payne, o mais respeitado especialista atual no assunto:
“Fascismo permanece o mais vago dos termos políticos importantes”.
Escrutinar a vida de líderes fascistas assumidos ajuda a elucidar o
conceito. É o caso de António Salazar, o Ditador Que Morreu Duas Vezes,
de Marco Ferrari. Que confirma outro expert, Gilbert Allardyce: “Nós
concordamos em usar a palavra sem havermos concordado com a definição”.
Como
nota Ferrari, o hino da Juventude Fascista Italiana, de 1939, excluía
Salazar: “Mussolini, Hitler, Franco, / três chefes uma determinação, /
marcharão sempre a par / para salvar a civilização”. Ferrari é italiano,
mas conhece Portugal como a palma da mão. Assim como seu compatriota
Antônio Tabucchi, que viveu anos em Lisboa, onde morreu em 2012,
deixando um memorável retrato do salazarismo: o romance Afirma Pereira.
Claro que os ficcionistas portugueses, sobretudo depois da censura,
também abordaram o tema, como José Cardoso Pires e seu Dinossauro
Excelentíssimo, do qual o ditador luso é o herói epônimo.
António de Oliveira Salazar nasceu
em 28 de abril de 1889, na liliputiana aldeia do Vimieiro (580
habitantes), numa família de camponeses. Mais tarde, dirá: “Devo à
Providência a graça de ser pobre”. Foi mandado para o seminário, e
depois entrou na Universidade de Coimbra, no ano da Proclamação da
República (1910). Ingressou na política em 1928, como ministro das
Finanças, para em 1932 assumir o poder na condição de presidente do
conselho (primeiro-ministro), instalando-se no Palácio de Belém, em
Lisboa. Começava o Estado Novo, o regime autoritário que por quase meio
século governará Portugal com punho de ferro. Um império que ainda
incluía Cabo Verde, Angola, Moçambique (na África), Goa, Damão e Diu (na
Índia), Timor-Leste (no sudeste asiático) e Macau (na China).
A doutrina de Salazar era arcaica, ruralista e, mais do que provinciana, tacanha e paroquial: a nação-aldeia. Era tímido e taciturno, detestava viajar para o estrangeiro (morria de medo de avião) e odiava o cosmopolitismo. Chegou a proibir a Coca-Cola, então uma novidade (e que a esquerda, por sua vez, chamava pitorescamente de “a água suja do imperialismo”). Fernando Pessoa, improvisado em publicitário, ainda teve tempo de criar um slogan para aquele exótico refrigerante: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.
Salazar,
apesar de monástico, incentivava o consumo do vinho, pela importância
econômica do produto: “Beber vinho é dar de comer a um milhão de
portugueses”. Fernando Pessoa, que fazia a sua parte emborcando tintos e
brancos, publicou um único livro em vida, Mensagem, em 1934,
concorrendo a um prêmio do Estado Novo. Ficou num estapafúrdio segundo
lugar, com a vitória da obra de um padre chauvinista. O poeta, que
morreria no ano seguinte, continuou a ironizar o ditador, em versinhos
impagáveis: “Este senhor Salazar / É feito de sal e azar. / Se um dia
chove, / A água dissolve / O sal, / E sob o céu / Fica só azar, é
natural”. Ou: “Coitadinho / do tiraninho! / Não bebe vinho. / Nem sequer
sozinho… / Bebe a verdade / E a liberdade. / E com tal agrado/ Que já
começam / A escassear no mercado”.
Era
um regime de partido único, a União Nacional. Foram criados o
Secretariado de Propaganda Nacional, para a doutrinação política, e a
Mocidade Portuguesa (obrigatória dos 7 aos 25 anos), no modelo da
Juventude Fascista Italiana. A repressão coube à infame Pide (Polícia
Internacional de Defesa do Estado), que montou um campo de concentração
em Cabo Verde. O primeiro médico da colônia penal do Tarrafal, logo no
primeiro dia rosnou aos prisioneiros: “Não estou aqui para vos curar,
mas para emitir vossas certidões de óbito”. Em solo português a prisão
política mais sinistra era em Caxias, nos arredores de Lisboa, onde hoje
há uma placa: “Hei de passar nas cidades como o vento nas areias / E
abrir todas as janelas / E todas as cadeias”.
São versos do poeta Manuel Alegre, para a fadista Amália Rodrigues e
para Maria Bethânia. Os alicerces populistas do regime eram três Fs:
Fado, Futebol e Fátima. O salazarismo vampirizou ao máximo a devoção
nacional e internacional ao Santuário Mariano na cidade de Fátima, onde
em 1917 Nossa Senhora teria aparecido a três pastorinhos. Já na década
de 1960, o Benfica, clube popular de Lisboa, inflamou o orgulho
nacional, ganhando duas vezes a Liga dos Campeões e chegando a quatro
finais. Ao mesmo tempo, a ditadura tentou enquadrar o fado, por meio da
censura prévia das letras e da inscrição profissional dos intérpretes. O
gênero musical ganhou notoriedade mundial com Amália Rodrigues. Sem
querer, a cantora tornou-se um símbolo do Estado Novo, apesar de cantar
grandes poetas portugueses oposicionistas, como Davi Mourão Ferreira,
Alexandre O’Neil e Manuel Alegre. Um dos principais letristas de Amália,
Alain Oulman, foi preso pela Pide e deportado. Com a Revolução dos Cravos, que em 1974 restaurou a democracia, Oulman defendeu Amália das acusações de conivência com a ditadura.
Salazar tinha afinidades com o ditador vizinho, o espanhol Francisco Franco (até
a redemocratização em 1975, as mulheres espanholas precisavam da
autorização do marido para trabalhar, tirar passaporte, comprar carro e
abrir conta bancária – e o esposo ainda podia receber o salário da
esposa). Havia também diferenças: nos seus sete encontros, pareciam o
Gordo e o Magro. Ambos mantiveram seus países neutros durante a 2.ª
Guerra – uma decisão que lhes permitiu morrer na cama, ao contrário de
Hitler (que se matou no bunker de Berlim) e de Mussolini, fuzilado e
pendurado de cabeça para baixo numa praça de Milão. Como consta no filme
Casablanca, Lisboa tornou-se uma rota de fuga para judeus (100 mil
passaram por lá) e antifascistas, como Marc Chagall, Béla Bartók e
Hannah Arendt – que depois se exilariam nos EUA. O azarado Walter
Benjamin preferiu suicidar-se na fronteira dos Pirineus, quando seguia
para a capital portuguesa.
Salazar
era severo e seco como bacalhau. Morreu solteiro e sem filhos.
Aparentemente (há controvérsias) teve amantes e sem dúvida foi
loucamente (botem louca nisso) amado pela inefável d. Maria, a fiel
Maria de Jesus Caetano Freire, uma espécie de Cérbero de saias, que pelo
tirano viveu de corpo e alma, sem nunca confessar sua paixão – e morreu
virgem, em 1981. Passou de criada a governanta – para muitos,
governadora, “a mulher mais importante de Portugal no século 20″.
Falava
ainda menos que Salazar, e converteu o aristocrático Palácio de Belém
numa chácara, com galinhas e coelhos. Todas as manhãs barbeava o seu
amado com uma navalha. Analfabeta, fez o primário já adulta, mas
controlava as despesas da casa e o acesso das visitas a Salazar.
Salazar recebia jornais falsos no fim de sua vida, para pensar que ainda estava no poder
No
dia 3 de agosto de 1968, ao receber seu pedicuro, o ditador sentou-se
precipitadamente numa daquelas cadeiras tipo diretor de cinema, de
madeira e lona. E estatelou-se, batendo a cabeça no chão. Sofreu uma
hemorragia cerebral, com complicações que causaram sua morte quase dois
anos depois. A autoridade de Salazar era tal que ninguém teve coragem de
o informar de que já não estava mais no poder, sucedido por Marcelo
Caetano. Durante 23 meses, o ex-ditador continuou a assinar documentos
de mentirinha, a instruir ministros, a conceder audiências de faz de
conta.
Diariamente,
imprimia-se apenas para Salazar um único exemplar “especial” do Diário
de Notícias, então o mais importante jornal português, cuidadosamente
expurgado de notícias que desmascarassem a farsa (como menções ao novo
primeiro-ministro). O censor era agora vítima da censura que ele próprio
criara.
O
ditador morreu em julho de 1970, e foi enterrado na sua terra natal.
Indiscutivelmente parcimonioso e austero, a casa onde veio ao mundo tem
uma placa: “Aqui nasceu o dr. Oliveira Salazar, um senhor que governou e
nada roubou”. À 0h25 do dia 25 de abril de 1974, a Rádio Renascença
emitiu a canção Grândola Vila Morena, de José Afonso, a senha para a
sublevação de jovens oficiais militares que vai depor o regime. Ou a
Revolução dos Cravos, já que os canos das espingardas foram enfeitados
por populares com flores vermelhas. Hoje, Portugal é um país
democrático, moderno e dinâmico – e Lisboa, uma das mais fascinantes
cidades do mundo. Até certo ponto, porém, o salazarismo caiu de poder –
como o próprio Salazar ao cair da cadeira. Caso único de um déspota
derrubado pelo próprio trono.
Postado há 3 days ago por Orlando Tambosi
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