Hoje dou uma de memorialista. Nasci num local felizmente atrasado no que concerne à produção literária, me moldei para um mundo em extinção (o do letrado à moda antiga) e vim a cair noutro que ninguém esperava (o da internet). Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Às
vezes ser atrasado é uma boa coisa. Quando as inovações são ruins, por
exemplo, ser atrasado é uma boa coisa. Resta ser atrasado tanto tempo
quanto possível e torcer para que os ventos mudem ao seu favor – o que
não nos exime de dar uma sopradinha, claro, que nos assuntos humanos as
tendências não são tão implacáveis quanto nos assuntos naturais. Isso de
tomar progresso como algo bom em si mesmo é coisa de
maria-vai-com-as-outras, uma gente perigosa quando numerosa, pois é
incapaz de fazer juízos morais.
Assim
sendo, hoje dou uma de memorialista. Nasci num local felizmente
atrasado no que concerne à produção literária, me moldei para um mundo
em extinção (o do letrado à moda antiga) e vim a cair noutro que ninguém
esperava (o da internet).
O homem de letras à moda antiga
Lá
no começo do século XX, Max Weber, erudito de mão cheia, capaz de
versar sobre aspectos sociológicos de diversas civilizações antigas, de
analisar os impactos culturais de religiões contemporâneas e de
dissertar sobre a economia industrial, detectava a extinção do
generalista, como ele, e a sua substituição pelo especialista da era
industrial. Enquanto o generalista era o dono de sua biblioteca e o
produtor de obras inteiriças, à maneira do artesão dono de sua oficina
que desempenhava cada etapa do processo produtivo, o intelectual da era
industrial, à maneira do operário, não era dono dos meios de produção e
desempenhava apenas um pedacinho do processo de conhecimento. Em vez de
ter a sua biblioteca, valia-se da biblioteca da universidade. E, em vez
de visar obras de fôlego, fazia artigos especializados. Esses artigos
eram como que peças de montagem no grande processo de produção de
conhecimento.
A
universidade, de fato, consagrou esse modelo no século XX. Acadêmicos
são especialistas, especialistas fazem papers. Se eu enxergasse as
coisas assim, jamais teria posto os pés na universidade. Mas o pior é
que é isso mesmo: até se eu fizesse letras e não filosofia, eu seria
levada a me especializar num único escritor e seria uma acadêmica de
sucesso caso produzisse uma série de papers sobre um dado autor e um
punhado de especialistas me citasse. Isso talvez funcione nas ciências
duras. Nas humanidades, porém, me parece um convite ao niilismo.
Naquele
lugar atrasado que era a Bahia do começo do milênio, o meu referencial
de atividade literária eram o jornal e o livro, ambos associados à
Universidade (como era chamada a UFBA) e aos institutos de humanidades,
tais como o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) e a
Academia de Letras da Bahia (ALB). Convinha não ser ignorante em latim
nem em História da Bahia e do Brasil (nesta ordem). A política
partidária não era dotada de importância.
A Universidade pré-Reuni
O
Reuni foi o processo de centralização das universidades federais sob o
jugo de Brasília, iniciado em 2008 por Fernando Haddad. Quando fiz o
exame admissional para a Universidade, por exemplo, ainda não era o ENEM
feito lá em Brasília para regular o acesso a todo tipo de universidade.
Era o vestibular, elaborado dentro de cada federal. Dando uma olhada no
material sobre a repressão de Getúlio aos falantes de alemão, vi que a
provável principal referência do assunto, “O guarda-roupa alemão”, de
Lausimar Laus, era leitura obrigatória para o vestibular da UFSC. Com o
advento do ENEM, deixou de ser. É difícil dimensionar a perda da memória
histórica no Brasil causada pelo novo ENEM. É muito mais fácil
preservar a memória confiando em cada estado como guardião de um quinhão
do que criar um conteúdo minimalista a ser decorado uniformemente no
país inteiro.
Mas
voltemos à Bahia. Me lembro de a UFBA ter em sua lista obrigatória
“Equador”, o best-seller do escritor português Miguel de Souza Tavares,
passado na remota ilha de São Tomé dos primeiros anos do século XX.
Embora não fosse conexo diretamente com a história do Brasil, mostrava a
fase mais decadente do Império Português que já integramos e ao qual
devemos muito de nossa identidade. Outro best-seller na lista
obrigatória era “Viva o Povo Brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro. Que eu
leria de qualquer jeito, mesmo que não estivesse na lista obrigatória
da UFBA, porque João Ubaldo Ribeiro já era leitura rotineira no jornal A
Tarde. João Ubaldo Ribeiro estudou na UFBA e foi professor de lá. Por
outro lado, Antonio Risério, outra figura que eu lia no jornal, não era
professor, embora fosse um ensaísta de humanas.
A
Tarde foi por muitas décadas o principal jornal da Bahia, e já foi um
dos jornais mais importantes do Brasil. Seu período áureo coincidiu com a
direção de Jorge Calmon, pertencente a uma família tradicional que
migrou da política para as letras. No século XVII o primeiro Calmon
influente era um funcionário da Inquisição descendente de índios e
franceses; no século XIX existiam os “calmonistas”; com a queda do
Império, no século XX, a família passou a ser conhecida pelas
realizações de Pedro Calmon (1902 – 1985) no campo da História do
Brasil. Vocês podem dar uma olhada na dimensão da obra dele na página da
ABL. Mas não é lá, hoje, dos autores muito editados. (Os paranaenses
também têm um colosso da historiografia esquecido: Rocha Pombo. Ao menos
nominalmente as instituições baianas honram a memória de Pedro Calmon;
Rocha Pombo parece esquecido dos seus conterrâneos.)
Pois
então: Jorge Calmon (1915 – 2006) era irmão mais novo de Pedro Calmon,
também historiador. Professor da UFBA de História da América, acumulava a
função de redator-chefe do jornal A Tarde. Exerceu a função de repórter
e tinha uma sensibilidade de cronista que faz da sua “Grã-Colômbia
vista e comentada” ao mesmo tempo uma leitura leve e um documento humano
muito rico da Colômbia, Venezuela e Equador de 1979. A experiência de
primeira mão, a bagagem de historiador, a sensibilidade de cronista e as
informações de jornalista operaram de maneira harmoniosa para produzir
um relato cativante.
Já
na pós-graduação, aprendi, na UFBA, que “jornalista” era xingamento,
porque no departamento de filosofia da USP jornalista era xingamento.
Hoje até pode ser; mas na Bahia de Jorge Calmon não era. Como Giannotti
xingava Merquior de jornalista, podemos depreender que “jornalista” é
simplesmente o erudito que sabe escrever.
O ecossistema das humanidades pré-Reuni
Havia
então uma simbiose entre jornal e universidade. Destaco que figuravam
no jornal colunas do Arcebispo Primaz do Brasil (a Igreja não acompanhou
a Coroa quando a capital mudou de Salvador para o Rio) e da principal
mãe de santo da cidade, que se tornou membro da Academia de Letras da
Bahia tendo escrito livros. Fazia parte da cultura geral dos eruditos um
conhecimento mínimo dos orixás, bem como o reconhecimento de uma certa
nobreza de matriz africana. Na unificação da UFBA, por influência do
filósofo português Agostinho da Silva, criou-se um Centro de Estudos
Afro-Orientais com o fito de estudar e preservar a cultura iorubá viva
na Bahia.
A
ideia de tratar os negros ora como pobres coitados, ora como animais
exóticos, é um bocado repulsiva ao ambiente cultural que os tem tanto
como muito importantes do ponto de vista cultural e, ao mesmo tempo,
como muito familiares. A cultura negra é também a minha cultura, da qual
me orgulho.
Como
Salvador é a capital mais antiga do Brasil e ainda tem o segundo maior
arquivo público do Brasil, faz perfeito sentido criar um centro para
estudar toda essa papelada que remonta ao século XVI. A UFBA tinha,
portanto, o CEB, Centro de Estudos Baianos. Daí saíram estudos
biográficos e descobertas de códices de Gregório de Mattos. Nisso foi
pioneiro o historiador Fernando da Rocha Peres. A maior façanha, porém,
ficou para James Amado (irmão caçula de Jorge), que editou a obra de
Gregório de Mattos pela primeira vez. Em vida, Gregório jamais viu seu
trabalho impresso. James Amado era da ALB e não da UFBA.
Outro
ponto de simbiose era o Instituto Geográfico e Histórico, cuja
composição chegou a ser mais ou menos a mesma que a do Centro de Estudos
Baianos da UFBA. O Instituto fora criado pelo grande polímata do
Império Theodoro Sampaio tupinólogo, engenheiro, arquiteto, geólogo,
geógrafo e cartógrafo – uma espécie de precursor de Rondon, já que ele
ficou encarregado do mapeamento e da infraestrutura de áreas
desconhecidas pelo “homem branco” no Brasil Império. (Aspas, porque
Theodoro Sampaio era um mulato bem escuro, filho de escrava preta.)
Nisso se meteu com os índios e acabou os estudando também. Sua urna
funerária está no próprio Instituto, um prédio eclético que ele projetou
no Centro de Salvador.
Foi
por muito tempo presidente do IGHB Consuelo Pondé de Senna, professora
de Antropologia da UFBA e diretora do CEB. Antes da rigidez burocrática
imposta mais pro fim do período militar, ela pôde ter a ideia de
convidar o antropólogo paulista Luiz Mott para dar aulas na UFBA.
Independentemente de sua orientação sexual pública e notória, seu
trabalho historiográfico sobre a Inquisição, que incluía vasculhar
papéis da Bahia na Torre do Tombo em Lisboa, granjeou o respeito da
elite intelectual baiana, e o próprio teve a honra de apresentar perante
Pedro Calmon o passado da família na Inquisição. Enquanto isso, as
atividades do GGB davam azo a inúmeras polêmicas de jornal.
No
começo deste milênio, ao menos na Bahia, existia a noção de que a
atividade intelectual era um fim em si mesmo, alheio a mecanismos de
citação burocráticos, presente porém nos jornais e no ensino médio.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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