Sempre fiquei perplexo quando diziam que Chico Buarque “compreende a alma feminina”. Que compreensão é essa, e que verso exemplifica isso exatamente? Via Crusoé, a crônica de Alexandre Soares Silva:
Esse
é o escândalo atual (um pequeno escândalo, um escandalinho) do mundo
literário espanhol. É compreensível que seja um escândalo, em alguma
medida – ninguém mais hoje em dia fica chocado quando uma mulher é, na
verdade, um homem, mas quando são três talvez seja um pouco demais.
Carmen
Mola era supostamente uma professora universitária de álgebra e mãe de
três filhos que, nas horas vagas, escrevia thrillers ultraviolentos de
caráter feminista. Era elogiada por “entender a alma feminina” e
considerada a Elena Ferrante da Espanha (um exagero, os livros de Elena
Ferrante são bem melhores). O Instituto da Mulher de Espanha disse que
os livros de Mola “ajudam a entender a realidade e as experiências
femininas nos dias de hoje”.
Mas
quando um livro de Mola foi escolhido para receber o Prêmio Planeta
deste ano, no valor de 6,42 milhões de reais, três roteiristas homens se
identificaram como os autores verdadeiros por trás do pseudônimo
feminino. Esses roteiristas, Jorge Díaz, Agustín Martínez e Antonio
Mercero foram chamados pela imprensa e pela internet de golpistas e
estelionatários: o crime deles, parece, foi vender o produto artesanal
chamado “sensibilidade feminina” com a garantia de que era feito por uma
autêntica nativa do sexo feminino da tribo indígena das mulheres, mas
aparentemente era só um produto falsificado.
A
autora que “desvendava a sensibilidade feminina” era na verdade três
dudes. Mas a sensibilidade feminina é uma invenção masculina, digo eu.
Não.
Espera. Eu não penso isso de verdade. Eu pensaria isso de verdade se
fosse mais corajoso, se não fosse irritar ninguém nem nada – mas neste
clima atual, quem quer irritar alguém? Até uns dez anos atrás era
considerado ok provocar as mulheres, vê-las ficando furiosas e tal, ou
pelo menos era considerado ok entre os homens e entre as duzentas
mulheres com senso esportivo que existiam no mundo. Mas agora é
considerado vil, então nem em pensamento eu penso isso que eu escrevi aí
em cima.
Mas,
digamos, se eu fosse outra pessoa, se fosse mais corajoso, diria não só
isso como também o seguinte: não só a sensibilidade feminina é uma
invenção masculina, como a sensibilidade masculina é uma invenção
masculina também.
O
crítico literário Harold Bloom disse que Shakespeare criou o ser
humano, “a personalidade tal como a entendemos”. Parece um exagero, eu
sei. Mas, se é assim, quais escritores criaram a sensibilidade feminina?
Evidentemente Shakespeare, Flaubert e Tolstói. Grandes autoras como
Jane Austen parecem ter estado mais preocupadas com a sociedade do que
com a “sensibilidade feminina”.
Sempre
fiquei perplexo quando diziam que Chico Buarque “compreende a alma
feminina”. Que compreensão é essa, e que verso exemplifica isso
exatamente? Ninguém me diz com clareza, então vou chutar. É só a
percepção de que, sei lá, mulheres têm facetas e desejos conflitantes?
São fortes mas vulneráveis, e essa papagaiada toda? Acho que sim, porque
acabei de ver num reality show uma mulher chorando e dizendo: “Foi
muito bom pra mim passar por essa experiência (uma experiência banal
qualquer de reality show) porque eu descobri que eu tenho, sim, uma
força enorme, sou uma guerreira… mas que também tenho um lado frágil,
menininha…” Isso não é meio óbvio para todo mundo? Até um caracol tem
esse nível de compreensão da alma feminina.
De
modo que quão difícil é “desvendar a alma feminina” num romance?
Fazendo força pra lembrar aqui, as únicas vezes que um romancista foi
acusado de criar personagens femininas inconvenientes, foi quando elas
eram boas demais. Esse, aparentemente, é o único tipo de mulher
implausível.
Para
ser justo, também se reclama quando a personagem feminina é má demais.
De modo que mais uma vez chego à conclusão de que, para “desvendar a
alma feminina”, só é preciso fazer um esforço mínimo para colocar alguma
coisa conflitante ou muito levemente complexa na personagem. Mas é
assim com personagens masculinos também, não?
Um
dos autores espanhóis que escrevia como Carmen Mola, Antonio Mercero,
disse ao El Pais que não escreveu com esse nome para ganhar mais
dinheiro: “Não sei se um pseudônimo feminino venderia mais do que um
masculino. Não tenho a menor ideia, mas duvido.”
Sim, certo: eles escolheram se passar por uma autora porque achavam que venderiam menos.
A
verdade é que sempre se reclama do machismo do mercado literário,
jornalistas escrevem editoriais furibundos, leitoras fazem campanhas,
criam slogans e hashtags do tipo “leiam mulheres” (as amigas que sigo em
aplicativos de leitura quase só leem mulheres), mas é evidente que faz
muito tempo o mercado literário é dominado pelas mulheres, seja
escrevendo, editando ou lendo. Há muito tempo é uma vantagem ser mulher
no mercado literário, e talvez na sociedade como um todo.
Mas
quando as mulheres vão reconhecer isso? Quando vão confessar que
ganharam esse jogo já há algumas décadas? Nada pior que ser um mau
ganhador que trapaceia para dizer que não ganhou uma partida.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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