A estabilidade não é um valor em si. A democracia é. A falta de alternância no poder, mesmo que a apelidem de estabilidade, nem sequer é um valor democrático, nem forma de melhorar a vida das pessoas. Nuno Santos para o Observador:
Nos
últimos anos visitei países onde a democracia não existe. China, Qatar,
Omã, entre outros. E estive noutros, onde se finge a democracia, como a
Rússia ou a Turquia. E passei por outros onde se simulam novas
tentações ditatoriais, como a Polónia ou a Hungria. Confrontei-me com um
dilema abstrato: estará a democracia esgotada? Vivemos melhor em
ditadura? Será melhor abdicarmos das estranhas escolhas populares, que
sempre são instáveis, para nos entregarmos ao valor absoluto da
“estabilidade”?
É
que tem sido em países onde vigoram ditaduras que se têm registado
crescimentos económicos e de qualidade de vida exponenciais,
ultrapassando os padrões europeus em muitos aspetos. Ao mesmo tempo,
sociedades democráticas ocidentais viram sucessivas crises económicas e
sociais colocarem em causa a ideia do crescimento garantido, do elevador
social acessível para todos e do estado social como garante dos
desprotegidos.
As
alterações climáticas, o terrorismo, os fenómenos migratórios e o
poderio económico do oriente, colocaram tudo o que parecia estar
socialmente garantido no “ocidente” em causa. Tudo, menos – temos
acreditado – a democracia, que tem permanecido como o pilar das
sociedades ocidentais e europeias.
Recentemente,
fenómenos extremistas, de esquerda e de direita, vieram levantar
questões sobre a solidez dessas democracias. Das nossas democracias.
Ora,
aparentemente, esses fenómenos, em particular os mais recentes de
extrema direita, em França, Hungria, Polónia e noutros países em que se
chegaram ao poder, mas também de esquerda, como aconteceu em Espanha,
não são a única nem, porventura, a maior ameaça à democracia.
Basta
ver a agenda recente de governos supostamente moderados em países como
Portugal e outros, com democracias supostamente consolidadas durante os
último ano e meio e perceber como, num ápice, direitos constitucionais e
primários foram suprimidos aos cidadãos. E se, muitas vezes, isso
aconteceu por razão plausível do ponto de vista sanitário, outras houve
em que os próprios procedimentos legislativos foram atropelados, sem
justificação.
Isto
é, parece ter havido, por vezes, um atropelo às constituições e às
legislações, não apenas pela urgência e ausência de regulamentação
adequada a uma pandemia, mas porque os governantes, de certa forma, se
encantaram com um novo poder. O poder de impor um recolhimento
obrigatório, o poder do controlo da livre circulação e até o poder do
domínio monopolista da agenda mediática.
O
poder político foi o que mais gostou e quem mais ganhou com a pandemia.
Ou como justificar que em Portugal o mesmo poder político que em ano e
meio não conseguiu fazer uma lei de emergência sanitária, tenha
rapidamente, no fio da navalha constitucional, legislado para
flexibilizar a contratação pública e atropelar a rigidez orçamental que,
nas últimas décadas, era a “vaca sagrada” do pacto europeu?
Aqui
chegados, não admira, pois, que as consequências desta tentação
antidemocrática se tenha enraizado na nomenclatura político-partidária,
já não apenas nos extremos e nem só nos donos do poder, mas já em todo o
espectro político, por exemplo, em Portugal.
A
pandemia já serviu para se proporem adiamentos de eleições
constitucionalmente bem definidas no calendário, mas até aí ainda se
poderia compreender as razões. E a isso ainda fomos resistindo. O
problema é que esta tentação anti-democrática, acelerada e falsamente
legitimada pela pandemia, surge agora já a propósito de nada e de falsos
valores que sempre esbarram no chavão da “estabilidade”.
Os
casos das eleições internas do PSD, mas sobretudo do congresso do CDS,
mas também do processo democrático dentro do PS, com adiamentos de
congressos e eleições primárias adiadas ou a decorrerem de forma quase
anónima e sem debate, com jogos de convocatórias e chapeladas para
evitar o funcionamento da democracia são paradigmáticos do novo
ambiente, já não das extremas, mas do próprio centro direita e esquerda
democráticos.
E
já nada disto tem a ver com a pandemia, mas apenas com a perceção
enraizada por parte da elite política da democracia, de que poderia
fazer mais ou menos o que quisesse, uma vez banalizada a violação dos
princípios e dos direitos fundamentais, fossem eles os constitucionais
ou os estatutários, decorrentes da “simples” vivência interna dos
partidos.
Para
isso muito contribui o discurso do Presidente da República, a postura
do Primeiro-Ministro e o spin que infetou a elite comentadeira e
analista da vida política portuguesa, que, a propósito de um objetivo
financeiro, económico que, supostamente a “estabilidade política”
fornece, por obra e graça não se sabe de quem, tudo legítima.
A
estabilidade não é um valor em si. A democracia é. A falta de
alternância no poder, mesmo que a apelidem de estabilidade, nem sequer é
um valor democrático, muito menos pode ser invocado, em sociedades
livres, como uma forma de melhorarmos a vida das pessoas. A estabilidade
nunca melhorou a vida de ninguém, a alternância democrática, o espectro
de eleições, sempre o fez.
Se
o mal, seja ele sanitário, ambientalista, económico, social ou de
segurança serve para cancelarmos a democracia ou para a diabolizarmos,
então estamos a criar uma sociedade deprimentente em que a máxima do
quanto pior melhor acrescenta a quem governa. Pois se quem governa tiver
em mais crises em mãos para resolver e for invocando a necessidade de
delas sair com estabilidade, então eterniza-se no poder. Ou seja,
estamos perante o caldo de cultura da ditadura.
E,
questiono a terminar: não foi sempre assim que se instauraram
ditaduras? Através de uma aparente escolha ou movimento popular,
salvítica e regeneradora para, de seguida, invocando a necessidade de
estabilidade, se impor através de um qualquer viés constitucional?
Não
foi assim com Salazar e com o Estado Novo que, para que não se
estragasse a recuperação económica, que efetivamente o então ministro da
finanças operou, nos impôs de seguida 48 anos de “estabilidade”
governativa?
Era
ou não era, no início do Estado Novo, tão ou mais do que agora
necessária estabilidade governativa? E valeu a pena abdicarmos da
alternância em função dessa estabilidade, eternizando, através de falsas
eleições, o poder salvítico de Salazar?
E
não terá sido assim com as antigas ditaduras aderentes ao Pacto de
Varsóvia, em que a necessidade da implementação de uma organização de
sociedade a longo prazo, se suprimiram as liberdades sine die?
E
não terá sido (e será ainda) assim, por exemplo, em Cuba, onde se
invoca há sete décadas estar em curso um processo revolucionário, para
amassar um povo e suprimir-lhe todos os direitos?
Sim,
e foi assim em todo o lado, desde a Alemanha Nazi à Coreia do Norte de
hoje. Sempre em nome da estabilidade se evitaram eleições para governar
“bem” e proteger o povo da oposição. E sempre assim começaram a
ditaduras.
Por
isso, meninos do CDS ou senhores que se reunam em Belém para aconselhar
o guardião da Constituição, nunca se esqueçam disto: a estabilidade e a
necessidade de estabilidade são, sempre e apenas, as mais esfarrapadas e
ilegítimas razões para adiar a democracia e, uma vez adiada, adiada de
forma permanente. Porque é sempre esse o princípio do fim da liberdade. E
isso, não sendo admissível sequer em pandemia, é pornográfico para além
dela.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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