Quando se diz a um indiano que um dia vai ter electricidade, tenho esperança que seja isso mesmo: um dia. Só. Depois, regressa a escuridão. José Diogo Quintela para o Observador:
Que
desilusão. Agora é que é: estamos mesmo, mesmo, mesmo quase condenados.
Depois do falhanço da COP26, a humanidade já só tem 2 anos, 9 meses e
18 dias para evitar a sua extinção daqui a 17 anos, 4 meses e 23 dias –
fiz a média entre todas as previsões catastrofistas e deu-me isto.
Quando tudo se encaminhava para um compromisso aceitável, chega a Índia e escangalha tudo.
O texto final ia referir a “eliminação progressiva” do uso de carvão e a
Índia obrigou a que substituísse essa expressão por “diminuição
progressiva”. Razão tinham os activistas que organizaram a cimeira
paralela à COP, a Co-COP. Acertaram quando disseram que isto não ia dar
em nada. Ah, fosse o nosso representante em Glasgow um Afonso de
Albuquerque e metia os indianos no seu lugar! Infelizmente, era apenas
um Matos Fernandes. Os indianos não têm medo do Matos Fernandes. Quando
muito, do motorista do Matos Fernandes, quando anda na bisga em estradas
nacionais.
Ao
que parece, a birra deveu-se ao facto de a Índia gerar a maior parte da
electricidade a partir do carvão e não querer acabar com isso antes que
toda a sua população tenha acesso à rede eléctrica – neste momento,
faltam ainda alguns 200 ou 300 milhões. Confio que o plano seja então
continuar com carvão, deixar os indianos terem a capacidade de manter um
frigorífico e televisão a funcionar, verem que é giro, e nessa altura
desligar tudo. Quando se diz a um indiano que um dia vai ter
electricidade, tenho esperança que seja isso mesmo: um dia. Só. Depois,
regressa a escuridão.
Isto
é ainda mais frustrante porque toda a gente sabe que os indianos não
têm necessidade nenhuma de electricidade. Na Índia, por causa da
sabedoria milenar do hinduísmo, abunda a iluminação interior. Usem isso
para ler à noite. Mas, se querem mesmo ter electricidade, então não
precisam de queimar carvão. A Índia tem imenso vento. Sempre que vejo
stories no instagram de pessoas em retiros de ioga, há sempre uma brisa
agradável que faz esvoaçar cabelos, quando estão a fazer a saudação ao
sol (essa é outra, também têm sol!). Basta montar umas ventoinhas e uns
painéis e está feita a festa.
A
situação é dramática, precisamos agir. Noutras ocasiões, a humanidade
foi capaz de tomar atitudes drásticas para combater alterações
climáticas por si causadas. É repetir. Há 4 mil anos, por sua culpa, o
Egipto foi confrontado por uma grave calamidade climática que incluiu
horríveis tempestades de granizo, poluição no Nilo, nevoeiro cerrado que
encobriu o Sol por três dias e mortandade, nomeadamente de carneirinhos
e primogénitos. Só passou quando o Faraó concordou em realizar a
transição energética, deixando de usar a energia gerada por judeus.
Infelizmente, “deixar partir o Povo de Deus para travessia do deserto”
não é uma solução que possamos utilizar agora. Primeiro, teríamos de o
prender. E basta ver as notícias para perceber que os israelitas não são
para brincadeiras.
Houve
outras alturas em que também actuámos em defesa do clima. Apresento
aqui dois exemplos, retirados do livro “A Pequena Idade do Gelo”, do
arqueólogo Brian Fagan, sobre as mudanças climáticas ocorridas durante o
período de arrefecimento, entre os séculos XIV e XIX.
Em
meados do séc. XVII, numa pequena localidade alpina ameaçada pelos
avanços de um glaciar (imagine-se que houve épocas em que os glaciares,
em vez de recuarem, avançavam!), os aldeões organizaram-se para parar
aquela alteração climática. «Em 1653, os alarmados habitantes de Naters
enviaram uma delegação à comunidade jesuíta de Siders com um pedido de
ajuda, afirmando estar prontos para fazer penitência e praticar outras
“boas obras cristãs”. Os padres Charpentier e Thomas passaram uma semana
a pregar em Naters, liderando depois uma procissão até ao glaciar, a
quatro horas de marcha. O povo lá foi, com grande dificuldade, cabeças
descobertas à chuva, a cantar salmos e hinos durante todo o caminho.
Chegados ao local, os jesuítas celebraram uma missa e pregaram um
sermão: “Os exorcismos mais importantes foram usados”. Aspergiram o gelo
com água benta e instalaram uma efígie de Santo Inácio nas
proximidades. “Parecia uma imagem de Júpiter, ordenando um armistício
não às suas tropas vencidas, mas ao próprio glaciar faminto”. A
argumentação jesuíta surtiu efeito. Segundo se dizia, Santo Inácio “fez o
glaciar aquietar-se”.»
Nem
só com rezas se serenava o clima. Por vezes era necessária uma
mitigação mais musculada: «A ortodoxia luterana afirmava que a nevasca
fria e intensa que atingiu Leipzig em 1562 era um sinal da ira de Deus
perante o pecado humano, mas a resistência da Igreja às acusações de
bruxaria começou a vacilar quando as alterações climáticas causaram más
colheitas, falta de comida e doenças no gado. 63 mulheres foram
queimadas como bruxas na pequena cidade de Wiesensteig, na Alemanha, em
1563, numa época de aceso debate a respeito da autoridade de Deus sobre o
clima.»
Neste
momento, nenhuma destas opções é uma solução viável. À Igreja não vale a
pena recorrer. Como se tem visto pelo que o Papa diz, o clero já não
crê que Deus possa ajudar, acha que o Homem é que manda no clima. E
também não se devem queimar bruxas, porque as fogueiras iam aumentar as
emissões de CO2 e isso atrasa ainda mais a neutralidade carbónica.
Mas
não há dúvida que alguma coisa tem de ser feita. A Terra já aqueceu
1.1°C desde 1880, não podemos deixar que aqueça outro tanto até 2100. Há
que agir. Porém, sejamos ambiciosos. Não nos contentemos com parar
aqui, estabilizando num aumento de apenas 1.1°C. Melhor do que viver com
apenas mais 1.1°C em relação a 1880, é viver com a temperatura de 1880.
Se essa é a temperatura que se definiu como a ideal, é essa a
temperatura a que devemos almejar.
Para
isso, só vejo uma solução. Orientar todo o avanço tecnológico de que
dispomos para a construção de uma máquina do tempo que transporte até
1880 um grupo escolhido de boas pessoas com as convicções certas sobre o
clima. Assim de repente lembro-me de António Guterres, Leonardo Di
Caprio, Greta Thunberg e Al Gore, por exemplo. Lá chegados, cabe-lhes
convencer os nossos antepassados a pararem imediatamente de queimar os
combustíveis fósseis com que irão iniciar a inaudita era de
desenvolvimento humano que lhes permitirá escapar da pobreza. Não será
fácil. Não que a causa não seja justa, a audiência é que não vai ser a
mais brilhante. Em 1880 os nossos enviados estarão em grande parte a
pregar a camponeses iletrados e subnutridos, cansados de jornas
intermináveis e de enterrar filhos. É natural que os bons argumentos
demorem a entrar naquelas cabecinhas meio lerdas. Mas, se há quem
consiga persuadir os avoengos a sacrificarem melhorias na sua condição
miserável para que nós, seus descendentes, não nos angustiemos com o
clima, é este grupo de elite. Podem ter de lá ficar uns tempos até
alcançarem o objectivo, mas de certeza que não se vão importar de viver
com o nível de vida de 1880. Afinal, estarão a experimentar o clima
ideal pela primeira vez! Sortudos.
É
um facto: se estamos nesta situação periclitante, é porque em 1880 os
nossos antepassados não eliminaram emissões e optaram antes pelo
progresso. Se os tivessem avisado, eu agora não estaria aqui, no meu
escritório aquecido por ar condicionado, em frente ao computador, a
comer os restos do arroz de pato que mandei vir ontem pela Glovo,
guardei no frigorífico e aqueci no micro-ondas, aflito com a situação do
mundo que me chega através da internet. Não, antes estaria sereno na
minha assoalhada partilhada com outras três famílias, a pensar se não
deveria mandar o meu filho aparelhar a carroça para ir buscar lenha para
o borralho.
Precisamos
de viajar no tempo para tratar do tempo. Em vez de perguntar “que
futuro queremos para os nossos netos”, a pergunta correcta é “que
passado quereríamos para os nossos avós?”
Normalmente,
quando se aborda a hipótese teórica de viajar no tempo, costuma
falar-se na possibilidade de viajar até à Alemanha de 1933 para matar
Adolf Hitler. A minha sugestão, de ir a 1880, é moralmente superior, uma
vez que salva o planeta e, com sorte, ainda mata o bebé Hitler com uma
daquelas doenças que dizimavam crianças e que o crescimento económico
foi erradicando.
Se,
no final do século XIX, tivéssemos abdicado à partida da energia
abundante, acessível e barata, não estaríamos nesta situação. Não
teríamos carros, aviões, cargueiros e comboios. Nem vacinas. Nem os
antibióticos e medicamentos que salvam crianças. Não teríamos
fertilizantes sintéticos que alimentam milhões. Não teríamos levado um
homem à Lua. Não o teríamos trazido de volta. Não teríamos internet,
televisão, cinema ou telemóveis. Não teríamos electrodomésticos. Não
teríamos luz a qualquer hora. Não teríamos aquecimento e refrigeração
instantâneas.
E
ainda bem. Porque é por termos estas coisas que nos reproduzimos em
excesso e não morremos tão facilmente, contribuindo para a
sobrepopulação do planeta. Egoisticamente, optámos pelo aumento da
produção alimentar, pela saúde, pela baixa mortalidade infantil (era 40%
em 1880, agora é 3,4%, no mundo inteiro), pela longevidade (esperança
de vida era 42 anos em 1880, agora é 72), pela riqueza (o PIB per capita
era de 1498 dólares em 1870, em 2016 eram 15.212 dólares) pelo
bem-estar de cada vez mais de pessoas. Mas não valeu a pena, pois
perdemos a temperatura média perfeita.
Às
vezes, quando brinco com os meus filhos no Jardim da Estrela em dias de
canícula, penso: “Ó maldita revolução industrial! Quem me dera que
nunca tivéssemos feito este caminho de desenvolvimento. Agora, em vez de
uns abrasadores 33°C, estariam uns frescos 31.9°C e já não me
aborreceria tanto brincar com as crianças. Até porque uma estaria a
trabalhar (já tem 10 anos) e a outra teria morrido na infância. Não sem
antes matar a mãe no parto”. Penso nisso enquanto como um gelado, outra
coisa que, felizmente, não existiria. É uma chatice ter de resistir à
deliciosa, porém açucarada, combinação avelã e chocolate belga, que, ao
engordar-me, obriga-me a andar mais a pé em vez de levar o carro. Outra
opção que, graças a Deus, me seria retirada.
Para
que a equipa que vai viajar no tempo se possa habituar às condições de
vida que encontrará em 1880, sugiro duas semanas de estágio numa das
aldeias indianas que queremos manter sem electricidade. São mais ou
menos as mesmas condições de vida.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário